quarta-feira, 25 de março de 2015

Arte e Liberdade

A partir da arte, criamos diversas fontes de entretenimento, como filmes, videogames, espetáculos teatrais, literatura, etc. Infelizmente, muitos indivíduos são levados ao engano de reduzir a arte ao entretenimento, assim como muitos reduzem o conhecimento à ciência, por prestarem atenção apenas aos benefícios práticos, particulares e previsíveis da racionalidade.

Dessa redução resulta o que Adorno e Horkheimer chamaram de "indústria cultural", um modelo de produção de obras de arte como mercadorias. É evidente que se o lucro é a finalidade principal de um artista, suas obras serão tão próximas quanto possível daquilo que já é consumido pelo público, e nunca irão conter nenhuma mensagem que possa questionar esse público. Enquanto a arte é respeitada entre os filósofos como uma forma de trazer ao público novas experiências impactantes, a arte enquanto mercado dá ao público aquilo que a propaganda o ensina a querer.

Qualquer um que já assistiu uma seleção de videoclipes em algum canal de televisão sabe que alguns músicos são apenas fenômenos passageiros e intensos gerados pela propaganda enquanto outros são verdadeiros artistas,embora não alcancem um público tão amplo quanto os artistas comerciais. As músicas mais consumidas são justamente as de menor qualidade, produzidas por artistas claramente sem talento e sem nada de interessante a dizer, com letras e melodias vergonhosas. O gosto do público parece ser controlado pela propaganda, tanto quanto as características dos artistas medíocres.

A industria dos videogames também sofre semelhante fenômeno. As franquias que mais repetem clichês tanto nos roteiros quanto na jogabilidade são as mais lucrativas e com maior publicidade. "Homem virtuoso tem a família morta por alguma espécie de terrorista e parte em uma jornada para se vingar do principal responsável, No meio do caminho, percebe que está salvando o mundo. Trata-se de um jogo de tiro. " Acredito ter descrito com poucas perdas mais de dez mil jogos recentes.

Quanto mais criativo for um artista, maior será a influência de sua personalidade, de suas experiências e de suas ideias em suas obras. Disso resulta que não é possível que um trabalho artístico profundo toque a alma de todo o público, ou mesmo da maioria do público, por uma questão de afinidade. Por isso a arte que reproduz e recicla aquilo que o público já contém gera enormes lucros em comparação com a arte criativa. É evidente que a indústria cultural favorece mulheres seminuas e pseudo-gangsters cantando idiotices sobre o amor, por exemplo. Esses esteriótipos sempre ganham atenção, seja por amor ou por ódio.

Essa manipulação e massificação da arte gera uma perda ainda maior que a redução no número dos grandes artistas. Você, leitor(a), talvez conheça que Goethe foi reconhecido por inúmeros intelectuais como um magnífico filósofo, embora não tenha escrito tratados filosóficos. Enquanto isso, os filósofos profissionais foram e são desprezados entre os profundos. Qual é a razão para isso?

Joseph Beuys, um artista do século XX, é famoso por algumas performances como passar horas trancado em um quarto com um coiote não domesticado e construir uma enorme parede de gordura animal.  Quando interrogado sobre seus motivos para tais atos, sua respostas frequentemente era que a arte liberta a humanidade elevando a criatividade e a intuição a partir de experiências. Mas como isso funciona? -- A propósito, você pode conferir ele mesmo se explicando neste link https://www.youtube.com/watch?v=Mo47lqk_QH0  , se quiser.

Tudo que nós pensamos depende em alguma medida de nossas experiências com o mundo. Nosso pensamento não é diretamente determinado pela experiência, mas é determinado a ser influenciado por ela. Isso significa que se mantemos contato sempre com as mesmas coisas, manteremos sempre as mesmas ideias, e que se temos contato com muitas coisas inesperadas, provavelmente mudamos nossas ideias. Além disso, a criatividade não é um talento ou uma anomalia, nem nada místico. A criatividade é simplesmente o conhecimento do mundo revelando aquilo que pode ser transformado, ou seja, a união do conhecimento com o desejo de transformação. Por isso afirmei que certos artistas, os que produzem arte e não mercadorias, são mais criativos que demais, porque eles criam usando experiências e ideias autênticas e pessoais, em oposição aos outros que criam com base em esteriótipos e em uma projeção do público alvo, igualmente estereotipada, uma projeção que visa apenas prever o lucro.

A partir disso podemos afirmar que quando um artista produz uma experiência sensorial como uma expressão artística de seu ser, seu público tem a oportunidade de ter uma experiência única. Ter tal experiência fornece elementos novos para o pensamento e, portanto, para a criatividade. Além disso, ter contato com o trabalho de pessoas que superaram a racionalidade fria que a humanidade instaurou sobre si mesma nos lembra de que isso é possível.

Como já defini em outros textos, a liberdade é o potencial de construir com a racionalidade algo diferente daquilo que atualmente existe ao nosso redor, possibilitando que transformemos nosso meio e a nós mesmos a partir de nossa vontade. Para tanto, é necessário que conheçamos esse meio, observando naquilo que é aquilo que poderia não ser, e também o inverso. Se nossa experiência é limitada, também é limitada nossa liberdade, porque desconhecemos a existência das possibilidades. Dessa forma, o trabalho artístico é capaz de libertar a humanidade, oferecendo a nós experiências cada vez mais repletas de ideias e emoções, além de um ímpeto criativo cada vez maior.

No desperdício desse potencial todo está a terrível perda causada pela indústria cultural. Em todas as épocas a humanidade foi libertada inicialmente, especialmente de suas próprias idealizações da natureza, não por filósofos e obviamente não por cientistas ou sacerdotes, mas sim por artistas, que criaram experiências que provocaram pensamentos e emoções de maneira não invasiva, diferentemente dos sistemas racionais que costumam pesar sobre nosso pensamento com um excesso informações e dogmas. O fato da maior parte da produção artística de hoje ser viciada de alguma maneira pelo mercado é a base para a perpetuação de nossa reprodução cega dos dogmas e da rotina, e a expressão máxima de uma racionalidade fria que nos reduz a algo menor.

A arte tem o potencial para ser a faísca da liberdade, e também aquilo que a preserva uma vez estabelecidas a ciência e a religião. A virtude depende essencialmente da liberdade, porque sem a capacidade de agir segundo ideais, não somos capazes de resistir ao meio que é frequentemente cruel e dominado por vícios sem absorver essas características. Sendo assim, não é surpreendente que em nossa época a maioria se vende com tanta facilidade e passividade. Fizemos de nossa arte um comércio e transformamos a contemplação em consumo. Estamos vendendo nossa alma a  Mefistófeles, e por muito pouco.  

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