sábado, 5 de dezembro de 2015

Verdade como objetividade

Existe uma distinção carregada de profundas implicações que está aceita quase que universalmente nos debates que envolvem alguma espécie de conhecimento científico ou filosófico. Trata-se da distinção entre subjetividade e objetividade. Essa distinção é adotada atualmente nos mais diversos espaços como se fosse algo intrínseco ao pensamento racional, uma compreensão auto-evidente e fundamental para a construção do conhecimento. Os adeptos dessas duas definições e dessa categorização do pensamento costumam, quando engajados em um debate, buscar evidências de que suas teses se baseiam em juízos objetivos e não subjetivos, enquanto seus adversários muitas vezes tentam provar o inverso, como uma estratégia de desqualificação do discurso em questão.

Tudo isso pode nos parecer, por hábito, muito natural. Mas se nos determos por um momento nessas duas importantes palavras e na forma como elas são usadas em distinção, podemos fazer algumas constatações importantes. Subjetividade, no uso corrente*1, significa a experiência da consciência tal como é para cada indivíduo em particular, ou seja, cada indivíduo tem uma subjetividade formada por sua experiência única do mundo, por suas sensações e por seus próprios conteúdos mentais. Objetividade, também no uso corrente, significa o conjunto de informações baseadas em fatos do mundo ou extraídas dos mesmos por um processo confiável de raciocínio, ou seja, a objetividade se refere ao conjunto dos juízos de conhecimento propriamente ditos, ou ao menos à capacidade humana de buscar a melhor aproximação possível disso. Nessa forma comum de pensar essas duas categorias, a subjetividade não constitui conhecimento porque cada indivíduo tem escolha ou a sensação de ter escolha sobre grande parte do que se passa em sua consciência, e nada impede que um indivíduo trate os produtos de sua imaginação como entidades reais. Em contrapartida, a objetividade constitui conhecimento porque é baseada em noções que não dependem da arbitrariedade da imaginação, seja porque essas noções correspondem diretamente a fatos observados no mundo por qualquer indivíduo com suas faculdades mentais intactas ou porque são formadas por um rigoroso procedimento que é aprendido socialmente através de um processo de disciplina intelectual que reprime os caprichos individuais de cada sujeito, os substituindo por "pensamento crítico", como se diz atualmente. A partir disso podemos constatar que as definições por si mesmas resultam na separação entre um domínio e outro. Reconhecemos que existe um domínio interior e reconhecemos que existe um domínio exterior . Uma segunda constatação importante é que esse uso corrente das noções em questão assume que podemos delimitar de alguma maneira esses domínios. Por exemplo, uma afirmação pode ser definida como objetiva e não subjetiva ou pode considerada subjetiva sem ser objetiva. Dessa forma fica estabelecido que a verdade é atingida através da objetividade, isto é, de um certo método lógico e empírico que se adapta a cada área do conhecimento e às suas demandas.*2

Penso que existe uma infinidade de preconceitos e dogmas contida na simples separação entre sujeito e objeto *3. As noções de subjetividade e objetividade são elas mesmas construções suspeitas independentemente de seus usos. Se acreditamos que existe um princípio espiritual onipotente, onipresente e onisciente no universo, que a inteligência humana tem um propósito especial nesse universo e que para que esse propósito possa ser atingido cada ser humano tem um poder intelectual de influência sobre si mesmo e sobre o mundo ao seu redor que chamamos de "livre-arbítrio", não pode existir sujeito nem objeto. Nessa perspectiva, a existência não é dada em dois planos, dentro e fora do indivíduo, mas apenas no plano de uma consciência absoluta e de uma vontade intrínseca ao universo em si mesmo. As ideias são nesse ponto de vista tão efetivas no mundo quanto os fenômenos da matéria, porque tanto a matéria quanto a inteligência, ou a alma, são criações da mesma vontade suprema e são intrinsecamente ligadas. Se acreditamos que não existe nenhum princípio oculto ou propósito geral no universo, que a inteligência humana é um desdobramento complexo da matéria e que, portanto, há tanta liberdade em nós quanto há no mar ou no céu, igualmente não pode existir sujeito nem objeto. A existência é dada aqui também em um único plano, o da matéria, e a conexão entre o interior e o exterior de nossas mentes é de causa e efeito simplesmente. Em outras palavras, se assumimos que existe livre-arbítrio, o universo e as mentes individuais devem estar intrinsecamente conectados, porque apenas assim a consciência individual pode ter poder sobre a matéria, sobre as ideias, sobre os indivíduos e sobre a realidade em geral, e se assumimos que existe apenas um universo material, a conexão entre a matéria exterior e a matéria interior deve ser necessária e direta, um mecanismo. Não existe nenhum abismo entre cada parte e o todo. A separação entre a consciência e o mundo é de qualquer maneira incorreta em qualquer visão de mundo consistente, e levanta uma série de problemas que são no fundo enganos possibilitados pela linguagem.*4Podemos nos servir dos termos "sujeito" e "objeto" para fins de comunicação, como formas de referência, mas não como descrições de uma separação que existe de fato.

Reconhecer que não podem coexistir uma realidade interior com suas regras próprias e outra realidade exterior com outras regras contraditórias com as primeiras elimina tanto o solipsismo quanto o determinismo, posto que os pensamentos , com isso admitido, são resultado do mundo e são partes atuantes no mesmo, nem completamente arbitrários nem completamente determinados. Como, porém, admitimos que cada consciência e seu respectivo exterior são discerníveis, os argumentos anteriores não são suficientes para colocar em questão a separação entre subjetividade e objetividade enquanto estratégia de pesquisa e de organização. Poderíamos ainda considerar que é positivo que afirmações baseadas em uma perspectiva subjetiva não sejam consideradas válidas na construção do conhecimento, e que apenas afirmações constituídas de um rigoroso trabalho de adequação do pensamento espontâneo ao pensamento disciplinado e precavido possam constituir o conhecimento, a objetividade, por razões de comunicação, instrumentalização e progresso.*5

Essa perspectiva pragmática de conhecimento se dissolve quando consideramos que, posto que a existência é dada em um único plano, seja uma criação divina ou um curioso acaso, não faz sentido afirmarmos que aquilo que é objetivo pode ser julgado como falso ou verdadeiro enquanto aquilo que é subjetivo não pode. Existe tanta realidade na sua crença de que você está lendo um texto quanto na sua crença de que a internet existe. De um ponto de vista filosófico e científico, desqualificar aquilo que se manifesta espontaneamente a cada consciência individual como se fosse irreal ou impossível de ser avaliado significa ignorar praticamente metade daquilo que podemos conhecer e falar sobre, dado que nós nunca nos separamos de nossa consciência até o momento da morte. Essa desqualificação da subjetividade é particularmente perigosa na ciência política, na antropologia, na psicologia e na neurociência. Quando se faz uma descrição científica sobre indivíduos tomando suas experiências subjetivas como irrelevantes, como ilusões ou como epifenômenos, não são emitidos juízos de conhecimento mas, simplesmente, preconceitos e imposições. Não se pode esperar nenhum progresso científico ou político dessa postura, apenas confusão e dispersão.

Para além da noção de que invalidar a subjetividade resulta em uma grande perda de informação, podemos considerar também as implicações éticas, políticas e até mesmo econômicas da valorização da objetividade como critério de verdade. A objetividade nada mais é que uma abordagem pragmática que admite como realidade aquilo que pode ser facilmente instrumentalizado e recusa a discussão acerca de tudo aquilo que não pode. Quando essa parte instrumentalizada da realidade se torna o critério de verdade ao qual cada sujeito deve aderir, se desprendendo tanto quanto possível de si mesmo, a verdade se confunde muito facilmente com obediência. Um indivíduo é julgado nas instituições de ensino com base na sua capacidade de obedecer e reproduzir, enquanto sua riqueza interior é ignorada pelas suas figuras de autoridade e por seus colegas, todos interessados apenas nos benefícios práticos de se aderir a uma determinada forma de discurso. Uma vez que o indivíduo nunca é recompensado pelo fortalecimento e aprofundamento de sua subjetividade, apenas pela sua adequação à objetividade, ele é formado pela sociedade como um indivíduo pouco criativo, com uma grande propensão a imitar (afinal, o objetivo é sempre externo) e uma grande dificuldade em conceber ideias e projetos originais. Não se cria nada de valor sem o conhecimento do mundo e não se conhece nada sobre o mundo sem construções e experiências próprias.

É muito comum atualmente que a subjetividade seja tomada como uma ilusão psicológica que deve ser, em todos os espaços sérios, corrigida de acordo com a objetividade. Essa objetividade é estabelecida politicamente e historicamente, e nem sempre racionalmente. Sendo corrigido por essa objetividade que esconde forças políticas, o indivíduo cede seu juízo politicamente. A partir disso se explica a perseverança do forte etnocentrismo europeu na filosofia brasileira, colocado em disputa apenas por um etnocentrismo norte-americano. A educação acadêmica em filosofia consiste no Brasil em um processo no qual o indivíduo aprende que deve louvar os autores norte-americanos e europeus, por consequência a louvar também a cultura da Europa e da America do Norte, e por última consequência a louvar o próprios europeus e norte americanos. Sendo a autoridade baseada principalmente em privações*6, conforme o indivíduo aprende a ceder seu juízo, ele aprende também a se submeter a autoridades. Inversamente, o indivíduo que não admite que sua consciência contém menos valor que as normas que lhe são impostas dificilmente encontra motivos para obedecer, apenas para respeitar e cooperar.

A ideia de objetividade como um critério de verdade organiza e operacionaliza certas noções como racionalidade, disciplina, esforço, eficiência e humildade de uma forma que parece de início bastante satisfatória. Mas eu observo que as consequências da aplicação social desse critério de verdade são uma redução drástica no número de espaços nos quais a criatividade e a riqueza interior são desenvolvidas, a perpetuação da autoridade de umas culturas sobre as outras e a formação de uma lógica corporativa nas universidades que se reflete na forma como o público em geral lida com debates. Se fosse verdade que o conhecimento se constrói objetivamente, a maior riqueza intelectual estaria na legião de comentadores de textos famosos e revisores de literatura científica, e não naqueles poucos indivíduos que criaram obras segundo seus critérios próprios e que testaram hipóteses originais com métodos originais. A separação entre subjetividade e objetividade no conhecimento ignora o principal conselho que a filosofia oferece à humanidade*7 e cobre a realidade com uma névoa de discussões e práticas vazias.


* 1 - O senso comum em relação a esses termos é observável tanto dentro quanto fora do meio acadêmico, e nas mais diversas áreas. Um físico, um antropólogo e um empresário não encontram motivos para divergir sobre a suposta importância de se separar subjetividade e objetividade.

* 2 - Cada grupo em questão encontra diferentes formas de lógica e de base empírica, mas o padrão pode ser observado quase como uma regra universal. Observe que nas ciência humanas não existe para muitos assuntos base empírica possível tal como se encontra nas ciências naturais, mas os acadêmicos em ciências humanas cobrem essa falta chamando a leitura e citação de textos clássicos de "embasamento". É curiosos notar que na neurociência, que une tanto assuntos investigáveis a partir das ciências naturais estritamente quanto assuntos que dependem do tipo de especulação que existe nas ciências humanas, podemos observar ambas as tendências em seus respectivos campos. Quando um neurocientista estuda a forma como os neurônios interagem uns com os outros, ele o faz a partir da observação experimental dos neurônios e daquilo que pode ser inferido dos dados correspondentes. Quando um neurocientista estuda um tipo de percepção (ex. percepção de distância), ele utiliza conceitos propostos por acadêmicos respeitados no meio, como "embasamento" para cobrir a parte de seus objetos que o método anterior não é capaz de acessar atualmente, e que talvez nunca o seja. De qualquer forma persiste a noção de que se está realizando um "trabalho científico objetivo", apesar da grande diferença entre um caminho e outro.

* 3 - Note que afirmar que existe separação entre dois objetos é algo mais que afirmar que existe distinção entre os mesmos. Por exemplo, podemos dizer que ondas e partículas são distintas querendo dizer com isso apenas que se tratam de duas entidades reconhecíveis e diferenciáveis, ou podemos dizer que ondas e partículas são separadas querendo dizer que aquilo que é uma onda não pode nunca ser também uma partícula. Igualmente, podemos dizer que a experiência individual e o mundo são diferenciáveis sem afirmarmos com isso que o indivíduo e o mundo exterior participam de domínios distintos da realidade, ou seja, que há separação entre sujeito e objeto.

* 4 - Visões de mundo que misturam diferentes metafísicas, ou que carecem de qualquer uma, colocam os objetos em questão em uma organização categórica contraditória ou incompleta. Por exemplo, a visão de Descartes de que alma e matéria são inteiramente distintas e não partilham do mesmo tipo de fenômeno. Essa visão aplica à natureza o mecanicismo e ao ser humano o cristianismo, embora o ser humano deva ser, necessariamente, parte da natureza. Dessa forma umas características humanas são explicadas de forma determinista enquanto outras são associadas ao livre-arbítrio, sem que seja possível que se estabeleça qual é o ponto de encontro ou mediação entre esses dois aspectos dos mesmo ser ( a hipótese da glândula pineal não resolve o problema). Disso surge uma distinção entre sujeito e objeto que contém em si o problema " como é possível que mente e matéria se comuniquem? ", ou o problema mente-corpo, como preferirem. Se trata de um problema que nunca teria surgido em uma metafísica consistente, como a de Schopenhauer.

*5 - Por exemplo, é muito comum nas universidades brasileiras o seguinte tipo de discurso por parte de professores: "Não aceito achismos, apenas argumentos embasados em referências bibliográficas e dados empíricos confiáveis.". Note, porém, que se um estudante apresentar em um trabalho um raciocínio extremamente interessante e singular, expressado simplesmente por um texto autoral excelente, seja uma impecável demonstração ou alguns belíssimos aforismos, esse aluno quase certamente terá seu trabalho reprovado, e essa probabilidade atinge 101 % se estivermos falando de um trabalho de doutorado. Isso porque o "embasamento" se refere a um conjunto específico de autores ( e portanto de argumentos) consagrados pela tradição acadêmica, além de dados aceitos pela academia. As regras de "embasamento" não são uma sábia cautela que almeja nos aproximar da verdade, mas apenas uma estrutura criada para padronizar e instrumentalizar obras filosóficas, científicas e artísticas. Nenhum acadêmico com o cérebro em atividade poderia negar que é possível que uma obra diletante supere de longe as obras acadêmicas, inclusive porque grande parte das referências acadêmicas é constituída dessas obras originais, mas é bastante raro encontrar um acadêmico que não utiliza a abordagem instrumental mencionada sob uma perspectiva pragmática, sob a justificativa de que a superioridade da originalidade é possível, mas é também pouco provável. Nisso se mostra uma preferência por poucos riscos e pequenos resultados.

*6 - Um indivíduo ou grupo chega a ser uma autoridade a partir do ponto em que é capaz de oferecer algo exclusivamente ou a partir do ponto em que é capaz de privar indivíduos daquilo que eles têm (ou impedi-los de oferecer algo). Por exemplo, um especialista passa a ser tratado como autoridade em um determinado campo porque ele oferece conhecimentos e serviços que especialistas de outro tipo não são capazes de oferecer. Quanto mais única for a especialização, maior será a sensação de autoridade do indivíduo. O outro tipo de autoridade pode ser exemplificado com a polícia ou com o exército, que realizam o monopólio da violência, através da qual diversas regras são mantidas em prática através das mais diversas sanções .

*7 - "Conhece-te a ti mesmo". Esse passo é anterior e posterior a todos os demais.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Sobre o corporativismo acadêmico (texto da apresentação)

O propósito desta apresentação é expor uma tese e propor um debate sobre a liberdade intelectual no meio acadêmico. A tese que venho apresentar é a de que o meio acadêmico contemporâneo é profundamente corporativista, que nas universidades existe uma estrutura de poder que racionaliza a reprodução cega de um determinado padrão através de noções dúbias de objetividade, subjetividade, rigor, racionalidade, etc. Para explicar essa tese, alguns passos são necessários.

Primeiramente, a definição de corporação. Uma corporação é um grupo de indivíduos ou um conjunto de instituições que partilha de interesses que são privados em relação ao público em geral. Em outras palavras, se trata de uma organização que defende os interesses de seus membros independentemente do que isso possa causar para aqueles que não são membros. A Coca-Cola, por exemplo, é uma corporação, porque é composta por um conjunto de empresas organizadas sob uma direção única. Essas empresas não concorrem entre si, como em um modelo de livre-mercado. Em vez disso, elas garantem que o grupo como um todo permanecerá bem sucedido no mercado através de medidas como a divisão de tarefas entre essas empresas, para que o grupo cubra uma grande quantidade de produtos distintos para ocupar o máximo possível do mercado, e também medidas como a compra de pequenas e médias empresas de fora do grupo que poderiam em algum momento concorrer efetivamente com algumas das empresas do grupo. Esse é o aspecto econômico de uma corporação, o monopólio de uma porção do mercado por parte de um determinado grupo que é capaz de exercer poder sobre o mercado em si. Grupos como esse não apenas atendem as demandas do mercado com seus produtos, eles influenciam a formação das demandas através da propaganda coordenada pelas diversas instâncias aparentemente autônomas que formam uma corporação. O fenômeno do consumismo não pode ser explicado sem a compreensão de que existem grupos de grande influência na esfera pública e no mercado que são interessados, por razões óbvias, na criação de uma cultura de consumo extremo.

Existe também o aspecto ideológico de uma corporação, que é frequentemente ignorado pelos estudiosos do tema. Isso ocorre porque se o lucro ou a obtenção de autoridade fosse o interesse único entre os membros de uma dada corporação, esse egoísmo forçaria esses indivíduos a alguma concorrência, cedo ou tarde. Corporações são mantidas na prática pelos benefícios exclusivos que essas associações oferecem, mas no discurso as corporações são mantidas por ideais homogêneos. Por exemplo, como poderíamos explicar a estranha mas comum associação entre uma determinada forma da religião cristã e uma determinada corrente de ideias liberais? O cristianismo chamado de fundamentalista e o neo-liberalismo são em seus fundamentos mutuamente exclusivos; No neo-liberalismo a caridade é facultativa e a desigualdade é considerada natural, enquanto no cristianismo a caridade é um dever e todos são nada mais e nada menos que filhos de Deus. No cristianismo a moral sexual e "os valores da família" são necessariamente um assunto público, enquanto no neo-liberalismo, muitas vezes chamado de anarcocapitalismo, todas essas questões devem ser deixadas por conta dos indivíduos e suas idiossincrasias. No cristianismo a propriedade é irrelevante diante dos bens do espírito, no neo-liberalismo o espírito somente se mostra em termos de propriedade. A explicação para essa associação que compõe os mais diversos grupos de políticos corporativistas ao redor do mundo variando da bancada evangélica no Brasil ao partido republicano nos EUA está no poder de união que existe em uma ideologia. Um grupo que é unido porque cada membro deseja lucrar e ganhar autoridade se desfaz assim que uns membros encontram uma oportunidade de ter sucesso sem os outros, enquanto um grupo que é unido também em torno de ideais como os cristãos muito dificilmente se dissolve, porque os lucros e os outros benefícios práticos conquistados pelo grupo passam a representar para seus membros e diante da sociedade o sucesso de uma visão de mundo. Assim o dinheiro é associado a uma supremacia moral e intelectual, e a profundidade dessa associação define a força das corporações que dominam o mercado e a política.

Mas como o meio acadêmico onde trabalham as nossas louváveis vanguardas intelectuais poderia ser comparado a uma corporação como a Coca-Cola? Como uma postura corporativista poderia existir na Torre de Marfim sem ser imediatamente criticada e repudiada pela nossa eminente classe de mestres e doutores? Um indivíduo começa a desconstruir a pureza do meio intelectual uma vez que percebe que as universidades são apoiadas em uma infraestrutura, tanto quanto quaisquer outras instituições. Uma universidade existe em um terreno, consome energia elétrica, contrata e rejeita profissionais, financia projetos, depende de parcerias econômicas e políticas, etc. No meio acadêmico ocorre circulação de capital, e esse capital é circulado em torno de determinados interesses – não poderia circular em torno de algo que fosse "um fim em si mesmo".

Qual é a finalidade de uma universidade? Não pode ser o cultivo do conhecimento como um fim em si mesmo, porque é inconcebível que tal finalidade seja financiada em uma sociedade capitalista. Uma instituição é financiada para produzir e regular. Uma universidade produz profissionais, produz tecnologia, produz teoria e produz arte. E que essa produção não seja subestimada! Uma das maiores fontes de renda dos EUA é justamente a propriedade intelectual. Uma produção de tamanha importância não poderia ser desorganizada, ninguém investiria uma quantidade enorme de recursos em uma instituição que apenas talvez alcance seus objetivos. Especialmente por estarmos tratando de uma produção associada ao conhecimento, qualquer instituição de ensino superior atual tem em sua estrutura uma burocracia e uma hierarquia destinadas a garantir os resultados dos cursos, das pesquisas, dos projetos de extensão, etc. Assim temos que um pesquisador deve garantir que seu projeto merece ser financiado, e também que um professor deve garantir que seus cursos resultem na formação de profissionais capazes de dar garantias tal como ele mesmo é.

Eu pergunto: como é possível que alguém dê garantias de que sua pesquisa trará resultados? Uma pesquisa é diferente de um estudo. Em um estudo um sujeito obtém conhecimentos que ele em particular não tinha, mas que já eram disponíveis a muitos outros indivíduos e grupos. Uma pesquisa, porém, tem como objetivo expor algo que até o momento não era conhecido. Se uma pesquisa realmente tem chance revelar algo desconhecido, ela também tem chance de não encontrar absolutamente nada – sua hipótese inovadora pode ser revelada tanto como imbecil quanto como genial, porque precisa ser afastada significativamente daquilo que já foi produzido na área em questão. Do contrário seria um estudo, uma retomada, uma revisão de literatura mas não uma pesquisa. A partir disso, eu repito a pergunta. Como alguém poderia garantir os resultados de sua pesquisa, se uma pesquisa é exatamente uma busca por algo novo, algo a acrescentar? Existem duas respostas, uma honesta e simples e outra que é desonesta e apenas soa complexa. A resposta honesta é que não é possível oferecer essa garantia porque a descoberta e a criação envolvem grande risco de fracasso. A resposta acadêmica é que através do estudo rigoroso das referências indispensáveis do meio intelectual um indivíduo se forma como um profissional metódico que avança o conhecimento sem chance efetiva de fracasso. Essa resposta é desonesta porque ela obscurece a distinção entre estudo e pesquisa; Um doutor em filosofia, por exemplo, publica um artigo comparando a filosofia política de Rousseau e a ética de Kant como se isso fosse o resultado de uma pesquisa. Não importa qual espécie de comparação seja essa, se trata de um estudo, de uma revisão, porque essas são teorias de autores que analisaram fenômenos, teorias já registradas no meio acadêmico. Porém, o fato dessa revisão conter um ou dois parágrafos de interpretação peculiar sobre os textos basta para que esse trabalho seja considerado uma pesquisa, uma pesquisa inovadora (interdisciplinar!) além de tudo. Pense por um momento nisto: Quem pagaria alguém para fazer uma pesquisa se uma pesquisa fosse apenas o estudo de algo já bem conhecido?

Um burocrata que não entende aquilo que está financiando. Nossa cultura, no que concerne ao trabalho e ao estudo, é uma cultura de especialistas. Especialistas se tornam autoridades em seus respectivos campos de atuação por uma questão de privação. Um determinado trabalho ou analise se faz necessário e apenas alguns indivíduos são capacitados para atender essa demanda. Uma vez que os administradores e os burocratas não são especialistas nas áreas que regulam, os critérios de racionalidade, objetividade, ciência, inovação e excelência são definidos pelos especialistas...

Chego com isso a outra pergunta: Como é possível que algum plano de ensino, seja lá qual for, garanta que ao menos um terço dos alunos submetidos a ele serão formados como intelectuais excelentes, criativos, metódicos e virtuosos? Acrescento ainda outra pergunta: Como alguém, seja lá quem for, seria capaz de definir em que consiste ou deve consistir a formação de inúmeros indivíduos? Assim como na pergunta feita anteriormente, existe para essa uma resposta honesta e uma resposta acadêmica. A resposta honesta é que não é possível que um plano de ensino tenha resultados previsíveis e que a própria ideia de formação é um tanto dúbia. Um professor que expõe seu conteúdo durante duas horas a uma turma silenciosa pode imaginar que inseriu determinados conteúdos nas mentes de todos os alunos que prestaram atenção e que um dos desdobramentos dessa inserção de conteúdos – pretensão que também existe em "dinâmicas dialógicas" – é a formação intelectual desses alunos. Pobres alunos e pobre professor! Para que tal transmissão ocorra ela precisa ser uma doutrinação e um esvaziamento, e é justamente a isso que professores e alunos se submetem, por covardia, ignorância e tolice. Como um indivíduo que conclui seu doutorado pode garantir que aquelas regras às quais se conformou durante tantos anos o transformaram em um intelectual do mais alto nível e não simplesmente em um reprodutor cego de uma estrutura de poder? Acredito que não preciso repetir o padrão.

Se a garantia de excelência que toda a estrutura de poder das universidades visa efetivar é fundamentalmente um erro, porque o fracasso faz parte do processo mas não pode ser reconhecido (financiado) o que essa estrutura está de fato garantindo? Qualquer coisa que seja conveniente aos especialistas encarregados de determinar o que significa objetividade e racionalidade em cada área de atuação. Em geral, aquilo que é mais confortável é aquilo que parece mais conveniente. Um sujeito com mestrado ou doutorado se submeteu durante um longo tempo a uma disciplina e a um esforço, sob a promessa explicita de que ele mesmo se tornaria como seus professores algum dia e sob a promessa implícita de que seus professores eram de fato competentes e bons exemplos. Por um lado, os resultados do envolvimento no meio intelectual são necessariamente incertos, sendo o intelecto diretamente conectado à vontade, e por outro a promessa que permeia esse meio intelectual é de uma garantia de que a excelência se encontra na academia.

Uma vez que o sujeito é colocado em uma posição (doutor) que não necessariamente merece ocupar, por ser um grande privilégio em relação a indivíduos que talvez sejam mais competentes, esse sujeito precisa, inclusive para manter a consciência em paz, garantir para si mesmo e para os outros que a hierarquia é válida e necessária e que ele merece sua posição. Como um sujeito, por exemplo, que não foi "formado" como um filósofo pode passar por filósofo? Trabalhando com indivíduos que foram enganados da mesma forma e que agora precisam enganar a próxima geração. Trocando seus trabalhos inférteis com colegas que também produzem trabalhos desse tipo. Formando alunos para que eles reproduzam essa estrutura. Recusando trabalhos que tenham qualidade mas que não se adequem aos critérios que regulam esse teatro. Construindo a ideia de que essa operacionalidade é prova de uma verdade. Mantendo uma posição de privilégio através de uma postura que se pretende como objetiva e científica. Em um conceito, corporativismo acadêmico. Um corporativismo baseado não no acúmulo de capital mas na ocupação de determinadas posições de autoridade intelectual, um corporativismo que faz o monopólio da ciência e da filosofia.

Um indivíduo qualquer que queira propor uma pesquisa de fato na universidade não irá encontrar um orientador, porque os professores irão recusar sua proposta inédita ou, pior, transforma-la em uma proposta comum através de "pequenos ajustes para que o projeto seja aprovado". A mercantilização do conhecimento, através das patentes no campo da tecnologia e da propriedade intelectual no campo das ciências faz com que a reputação e a sobrevivência de inúmeros indivíduos passe a depender, fundamentalmente, de mentiras, e disso se segue a conduta corporativa que preserva a qualquer custo a hierarquia obsoleta do meio acadêmico internacionalmente.