segunda-feira, 11 de abril de 2016

A Definição de Poder

Na compreensão clássica e intuitiva que ainda é amplamente pressuposta nas mais diversas discussões políticas, " poder " se refere a uma espécie de relação " de cima para baixo ", como costuma-se dizer. Se um indivíduo tem poder sobre outro, o segundo indivíduo é de alguma maneira controlado pelo primeiro em uma relação de causa e efeito, entre a vontade do primeiro e as possibilidades do segundo. Quando trata-se de algum tipo de poder político ou afetivo que é considerado injusto ou malicioso, termos como " dominação " e " opressão " são utilizados. Nessa lógica, sempre existe um opressor e um oprimido, afinal o poder é uma simples relação de causa e efeito na qual a pessoa dominada é passiva e a dominadora é ativa... e má. Felizmente para quem quer ver essas questões sociais se resolvendo de alguma maneira e infelizmente para quem encontrou uma zona de conforto intelectual nos conceitos de dominação e opressão, essa noção simples de poder não explica os fenômenos que observamos nas relações políticas e afetivas.

Na afirmação de que a dominação constrange violentamente o oprimido limitando suas possibilidades e sua personalidade funda-se a lingua franca de incontáveis movimentos sociais. Mas, independentemente de sua posição diante de quaisquer um dos movimentos sociais contemporâneos, eu lhe convido -- tenho que lhe convidar -- a fazer uma pergunta que lhe poderá ser impalatável ou trivial ( ambos sendo sintomáticos ), " Quais são os benefícios da dominação para a pessoa dominada ? ". O discurso da opressão é dialético e motiva o engajamento político afirmando uma luta de classes entre dois tipos relevantes para o movimento em questão ( e.g homem e mulher, brancos e negros, etc ). Mas você deve saber que não existe dialética no mundo, apenas em nossas mentes. O mundo é único e infinito, a dialética falha em explicações da existência como um todo por ser incapaz de conter em seu sistema ao mesmo tempo todo o esplendor e todo o horror do mundo, e falha em explicações específicas de fenômenos por explicar algo a partir de dois tipos protagonistas, enquanto sempre existe na realidade ainda um terceiro, e ainda um quarto... e ainda um infinito. Mas existe algo motivador, algo que impulsiona na dialética -- a simplificação de um dado fenômeno social sob dois tipos, a " luta de classes ", cria um conceito a ser combatido, um conceito a ser colocado sobre indivíduos que serão então combatidos em nome da causa.

Por exemplo, o adepto dogmático do marxismo olha para a realidade buscando entender quem é o burguês e quem é o proletário, sem se perguntar antes se existem outros tipos relevantes ou se os mencionados existem de fato -- esse é o seu a priori. Uma vez que o burguês é identificado, seus interesses devem ser combatidos, seja quem for o burguês e seja quais forem os seus interesses ( afinal, certamente são " interesses burgueses " ), pois isso caracteriza o combate da ideia odiada de desigualdade econômica, assim o marxista encena na realidade concreta a narrativa de seu sistema dialético favorito. Outro exemplo é o feminismo quando se torna violento contra indivíduos ( associados com um conceito de dominação ) ou quando excluí transexuais ( porque são contra exemplos da simplificação dialética em questão ). A dialética não satisfaz intelectualmente. Sua simplicidade dogmática, inquisidora e desprovida de autocrítica não se passa por filosofia diante daqueles que almejam ideias supremas. A dialética não satisfaz o desejo por verdade mas, entretanto, satisfaz muito bem o desejo por certeza. No campo metafísico ela permite uma delimitação despreocupada do assunto, ela permite que uma série enorme e complexa de fenômenos seja abordada dentro do universo de referências estrito do dialético. No campo político, ela faz do indivíduo ao seu lado um tipo, um tipo amigo ou inimigo, um opressor mau ou um companheiro oprimido -- a dialética permite a solidariedade sem empatia e a violência sem antipatia. Será a dialética que atrai tantos adeptos uma simples alavanca psicológica? Um truque?

Talvez seja uma trapaça sem benefício. Que estranha ideia! O discurso da crítica dialética da dominação talvez não seja mais que um sintoma da " dominação ", ou, colocando em termos menos ludibriados, um sinal de confusão, de fúria, de sofrimento, de medo, de sensação de impotência... um sinal de fraqueza. Essa fraqueza política e afetiva é realmente causada pela cultura e isso por si confere valor às tentativas de compreensão e superação como as feministas, por exemplo. Mas a natureza e forma do diagnóstico feito por uns " intelectuais " e reproduzido por uma massa de " oprimidos " que se identificam com conceitos reproduzidos é um sinal de algo que não é em nada inédito na história humana. Posta em perspectiva histórica, não é estranha a enorme e violenta confusão na qual as " lutas " contemporâneas tão frequentemente incorrem. A simplificação do bem e do mal feita pela igreja católica em seus tempos sangrentos era persuasiva pelas mesmas razões pelas quais a simplificação da geopolítica feita pelo governo estadunidense em suas campanhas militares ainda é atrativa hoje. Esquecer de si mesmo e não criticar os próprios absurdos -- aquele que aponta o dedo e atira pedras alcança apenas essa finalidade. Unidos ao mesmo tempo pelo desejo de " melhorar o mundo " e sob o propósito covarde de fugir da fórmula socrática, os salvadores contemporâneos ocultam a monstruosidade e a futilidade intrínseca da violência que praticam ou apoiam, e culpam algum fantasma por não estarem buscando efetivas melhoras a partir de si mesmos.

Chegamos a esse nível de depravação quando somos prisoneiros do medo e da fúria cega -- falamos do sofrimento com palavras de ódio em vez de buscar nosso poder que foi ocultado a nós mesmos e de mostrar esse caminho a outros por amor. Nenhuma simplificação maniqueísta conduzirá a uma sociedade superior, e a dialética não é mais que um formato lógico para que essas simplificações pareçam valiosas. A dialética não fala sobre o mundo, ela fala sobre quem fala. Se aquela pergunta levantada lhe pareceu desagradável ou em si ofensiva, não foi pelo seu conteúdo político ( que lhe é inacessível ) mas pelo fato de que a questão derruba sua visão confortável da realidade como o castelo de cartas que de fato é. Se a pergunta lhe pareceu trivial e você imaginou imediatamente diversos benefícios práticos para a pessoa " dominada ", você também pensa em termos de " oprimido " e " opressor " ... e se identifica com o segundo tipo. O aspecto geral do que se observa nas reações de muitos indivíduos diante de qualquer ideia que possa complexificar a visão da realidade que os motiva mostra que o aspecto psicológico e afetivo do poder e seus fenômenos locais precedem seu aspecto político e seus fenômenos em massa. O indivíduo existe e age dentro da cultura antes de ter acesso às ideias que explicam essa cultura, que a explicam apenas a posteriori. A dialética, seja de Hegel ou de Marx, é um método filosófico invertido que explica o indivíduo e os pequenos grupos como se " o todo " ou " o estado " não fossem antes de tudo conceitos dependentes do indivíduo e de suas relações micropolíticas. Para falar na língua corrente, a dialética não empodera. Com a atenção voltada para esses tipos que inventados e imprimimos sobre as coisas e pessoas que vemos, deixamos de prestar atenção em nossas limitações e possibilidades efetivas. Se trata de um método filosófico fácil que quase sempre é expressado em linguagem difícil sem uma profundidade maior que aquela possível em outros métodos. Tais aglomerados de jargão e de enigma podem servir hoje como recurso heurístico, quando muito, e mesmo nesses casos as alternativas costumam parecer melhores.

As tentativas de explicar as relações de poder pela via da ciência objetiva comentem um erro semelhante, algo que é sinalizado na entediante redundância que se reinicia toda vez que alguém usa um argumento biológico para definir " homem " e " mulher ", desta ou daquela forma. Podemos falar sobre nós mesmos em termos de " macho " e " fêmea ", de sobrevivência, de genética, etc, mas não é assim que experimentamos e pensamos a política no seu aspecto imediato, efetivo e não é nesses termos que nossas relações de autoridade são definidas. As discussões políticas e culturais estão em um âmbito diferente daquele no qual as " evidências empíricas " podem ser utilizadas com alguma " objetividade ". As supostas contribuições científicas sempre se mostram demasiadamente interpretadas e selecionadas quando são empregadas no âmbito das discussões de poder e autoridade.  Posta nossa herança positivista, o discurso científico quase sempre surge nessas questões como uma forma de dissolver a opinião do indivíduo em um todo, assim como a dialética. Por exemplo, quando um homem que afirma os tipos do " homem dominador " e da " mulher submissa " discute com uma mulher que questiona essa tipologia, o homem frequentemente emprega a linguagem biológica de " macho " e " fêmea ", buscando na autoridade indevidamente conferida à ciência a certeza que foi tirada de seu discurso com boas razões. Outro exemplo foi a interação entre Marx e os anarquistas como Proudhon e Bakunin. Em toda ocasião na qual um anarquista questionou a posição de Marx sobre os rumos da internacional socialista e da " revolução ", Marx respondeu tratando seu crítico como se certamente fosse um ignorante completo, um socialista utópico e não científico, como ele se autodeclarou. Tão mal colocada e desastrada quanto a argumentação sexista de " macho " e " fêmea " foi a argumentação profética e proselitista de Marx nos momentos nos quais ele garantiu e definiu a revolução. Essa forma de argumento, seja qual for a referência de autoridade utilizada, sempre consiste em recusar qualquer possibilidade de contra argumento afirmando que existe um processo oculto e determinado que o crítico ignora, que o crítico tem uma natureza que refuta sua crítica. Se discordo de um marxista é porque sou burguês e minha consciência é invertida, se discordo de um neoliberal é porque sou comunista mesmo sem saber disso, se discordo de uma feminista é porque sou um " macho branco opressor ", e se discordo de um " macho branco opressor " é porque sou feminista. Se minha pele fosse azul esse seria o argumento principal por parte de todos para refutar minhas críticas. "Você não entende a verdade porque é azul, existe uma luta de classe entre vocês Smurfs e nós humanos. " Apelo à autoridade e aversão à empatia.

Realmente não tenho certeza se a dialética e o uso da ciência objetiva são em si mesmos métodos de argumentar falaciosamente se colocados no contexto em questão ou se isso ocorre com tanta frequência simplesmente porque somos muito suscetíveis à tentação de empregar falácias para refutar quaisquer pontos de vista que criticam nossos hábitos e forçam os limites de nossa zona de conforto. De qualquer forma sei que a tentação é presente e intensa, e que a dialética e a ciência são muito facilmente usadas como instrumentos de autoritarismo e de hipocrisia -- o aspecto sensacionalista de ataque pessoal que nossas discussões políticas e antropológicas frequentemente tomam não me deixa mentir. A estúpida simplicidade filosófica combinada com a estúpida complicação política cria um círculo vicioso que pode ser quebrado se um de seus aspectos melhorar. É dessa forma que exercícios filosóficos metafísicos são capazes de ter impacto no campo político. A elucidação daquilo que está sendo de fato dito e proposto funciona como um espelho que mostra sua face horrível e odiosa enquanto você acredita estar lutando por uma boa causa. Evidentemente não estou falando da aglomeração de jargões que domina a academia. Colocar exatamente os mesmos discursos que circulam na internet em termos de citações bibliográficas e de leituras anacrônicas das filosofias clássicas ( e.g " Aristóteles foi liberal " ) é um exercício absolutamente impotente e, no fundo, uma " dominação " dos movimentos sociais. Francamente acredito que as chamadas " feministas radicais " têm metade do caminho andado simplesmente pelo fato de terem entendido a futilidade daquela produção de jargões da academia para a academia na mudança de determinadas estruturas culturais. Entretanto, o afastamento de certas instituições intelectualmente empobrecedoras não é o bastante para se encontrar a riqueza necessária -- é preciso ainda que o indivíduo atinja ideias superiores para que sua atuação política possa conduzir a uma sociedade superior. Esse caminho para as ideias superiores necessariamente passa por todo tipo de pergunta, seja do tipo agradável ( ou politicamente conveniente ) ou não.

Aquilo que passou a ser chamado de dominação pode ter pontos positivos tanto quanto pode ter pontos negativos, " As coisas não são boas ou más em si mesmas ". Para que alguém permaneça na posição de " dominado ", é necessário que exista algo na " dominação " que possibilite essa permanência -- uma " opressão " absoluta e inequivocamente maligna provocaria um colapso psicológico em pouco tempo. Além disso, sabemos que a " dominação " acontece mesmo enquanto o " dominador " não está presente ou ciente, porque a relação de poder é interiorizada no domínio psicológico. A explicação para isso não pode ser tão simples quanto " a violência gera medo ", porque existe poder limitador sem violência ( como é o caso das celebridades e dos renomados especialistas ) e existem pessoas que servem não por medo. Mais do que isso, por diversas vezes as chamadas vítimas de opressão discordam completamente de seus " liberadores ", afirmando que não estão em nenhuma relação de opressão e tomando grande ofensa pela acusação daqueles que entendem como seus parceiros ou mestres que são chamados por outros de seus opressores.

Pessoas escolhem as relações que julgamos como limitadoras ou corruptas e muitas vezes consideram tais relações um grande bem. Disso podemos extrair duas lições: A primeira e mais simples é que a prática tão comum entre os " liberadores ", a prática de denunciar e criticar a " opressão " no outro, o taxando de vítima mesmo contra sua vontade, é verdadeiramente venenosa e mostra realmente desrespeito pelo indivíduo a ser " liberado ". A segunda e mais importante agora é que o poder não se dá de forma unilateral " de cima para baixo ", mas como algo mantido por todas as partes envolvidas. O poder de um imperador é mantido também por seus súditos, se as coisas chegam ao ponto no qual seu poder é mantido apenas através da inquestionável força da violência, sua própria cabeça logo é cortada ( afinal não é ele quem detêm a violência de fato ) e seu posto de poder é delegado a outro a quem o exército serve voluntariamente. Na guerra e na violência bruta, situações da sociedade nas quais o poder pode ser exercido como relação de causa e efeito e pela via de fato, no caso a ameaça à vida e o sofrimento físico, todo poder é frágil tal como a vida humana é frágil. Um tirano violento pode derramar sangue e dar ordens que serão seguidas por amor à vida, mas logo seu próprio sangue é derramado por outro. Não se sobrevive na " lei dos peixes " por muito tempo. Fora desses casos, entretanto, o poder não é frágil e chega a parecer eterno, como se criasse uma estrutura social efetivamente determinista -- " o sistema ". As estruturas de poder que temos na sociedade mantém os mesmos tipos de relações através dos séculos, enquanto a coerção violenta direta age sobre indivíduos e em casos particulares. Com isso em mente, está evidente que nossa questão não é entender ou denunciar a violência direta, mas refletir sobre a passagem da violência fatual para o plano das ideias. Nossa definição clássica de poder é insuficiente justamente na explicação da sociedade em relativo estado de paz, nos casos que mais vivenciamos e mais discutimos -- que discutimos com pouca eficiência e inteligência.

Poder, definido propriamente , é uma forma de influência. Podemos manter isso dos clássicos. Acrescento a isso que para que eu possa influenciar algo ou alguém, preciso ter em mim as propriedades necessárias para isso. Por exemplo, para que eu possa ameaçar alguém fisicamente, preciso ser suficientemente forte ou ter o sangue frio para que minha ameaça seja convincente, do contrário não tenho o poder de intimidação. Isso significa que quando intimido alguém, mostro também que tenho uma determinada característica em mim, mostro que sou determinado de uma certa forma. É principalmente por essa razão que o poder não pode ser unilateral. Para que eu mantenha um prisioneiro, preciso para isso me tornar um carcereiro, para que eu limite alguém com ameaças preciso com isso me limitar a ser um bruto -- eis o sentido da afirmação de Bakunin de que " se existe um escravo ao meu lado, eu não sou livre " . Também pela mesma razão, não é inteligente julgar os " oprimidos " como bons e os " opressores " como maus, porque o aspecto geral da relação de poder empobrecedora mostra que todos são pobres em decorrência dela em algum sentido. Por exemplo, a superação do machismo não seria apenas positiva para as mulheres, mas também para os próprios homens, especialmente aqueles que o adotam e tornam-se assim seres tolos, brutos e limitados tais como a ideia vigente de masculinidade prescreve. A ideia de que existe na sociedade algum grupo de dominadores que vive muito feliz em função do sofrimento de todos os outros é uma ideia cegamente otimista, que estabelece bem e mal muito claramente. A realidade, mais sombria mas com possibilidades efetivas de ação, é que ninguém está feliz. A ideia de que se um grupo " oprime " é porque isso o beneficia pressupõe que um humano não defenderia uma ordem que prejudica ele mesmo, pressupõe agentes racionais no sentido liberal e utilitarista, um sentido bastante ingênuo e simplificado. Cada ano que passa na história humana mostra com mais clareza que humanos frequentemente são simplesmente suicidas, espalhando a desgraça para si mesmos e para os outros sem nenhuma recompensa que não pudesse ser obtida por outros caminhos. Ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, todos somos tolos, somos fracos e sofremos em função dos mecanismos da sociedade e dos mecanismos de nossos próprios egos. Todos temos a tarefa de evoluir nossas ideias, ajudando uns aos outros a superar quaisquer barreiras para nossa evolução intelectual individual e coletiva. Se recusamos essa tarefa, nós não merecemos uma sociedade superior -- porque somos então " ainda mais macacos que todos os macacos ".

A associação de proporção entre poder e liberdade é amplamente presente no liberalismo clássico e no senso comum, mas essa associação é de fato inversamente proporcional. Mais liberdade significa menos poder, e mais poder significa menos liberdade. Ter mais poder significa ter mais influência, e ter mais influência significa ter mais características definidas ou ter características mais profundamente definidas. Poder requer determinação, e mais determinação significa menos liberdade. " Omni determinatio est negatio " -- a liberdade é uma afirmação de possibilidade, uma abertura, enquanto o poder determina em uma afirmação de fato. As promessas de obtenção de poder e liberdade ao mesmo tempo, como a promessa capitalista, são enganosas em todos os sentidos. Cada segundo que se passa restringe seu conjunto de possibilidades. O ser com o maior número de possibilidades é o recém-nascido. Entretanto, o recém-nascido é também o ser menos poderoso, aquele com menos força, menos amor, menos posses, etc. Com a restrição de possibilidades que ocorre a cada momento da vida, o indivíduo perde possibilidades mas ganha relações, memórias, traços de personalidade, etc -- perde possibilidades mas pode ganhar com isso valor. O processo de restrição de possibilidades é inerente à vida e termina na morte, onde o ser se torna passado. O que realmente faz a diferença entre uma vida mais ou menos livre é em que medida o morto, ao longo de seu processo de ser, se determinou ou foi determinado de forma externa. Fazer escolhas significa precisamente auto-determinação, em contraste com a determinação pela degradação natural do corpo ou pelo fato social. O ser que perde suas possibilidades sem ganhar poder se perde, sua história desaparece na infinitude do universo, esse ser se torna o nada. É dessa forma que consumimos nossa essência quando somos tratados como coisas. Somos determinados por indivíduos ou processos que querem de nós apenas um resultado específico, e que não querem que nós tenhamos nenhum poder desnecessário para esse fim.

O caminho para uma vida que pode ser chamada de livre -- no sentido de que as determinações foram escolhidas -- está na determinação voluntária das relações, dos afetos, da profissão, etc. Entretanto, quase toda determinação que não é dada pela coerção violenta óbvia nos parece ser voluntária, algo que se mostra falso quando consideramos o efeito da propaganda, da moralidade e das contradições em nossas mentes. É nesse aspecto que a crítica das ideias que circulam na sociedade é capaz de " empoderar ". A determinação da mente com a qual nós nos orientamos é em grande medida dada por ideias, e a determinação das ideias é a mais fraca e mais mutável. Com uma mudança nas ideias ocorre uma mudança de orientação. Dessa forma podemos purificar uns aos outros das ideias que nos orientam ao nada, das ações que gastam nossa energia com finalidades instrumentais alheias. Entretanto, deve ser claro que essa purificação consiste em libertar-nos uns aos outros dos obstáculos que nos mantém com pouco ou nenhum poder, pouca ou nenhuma determinação. O discurso tolo e relativista de que nós devemos abandonar os afetos, o trabalho ( no sentido de dedicação ), a identidade e tudo aquilo que nos determina é um discurso em todos os sentidos " dominado ", pois justamente convence o indivíduo a seguir um caminho sem auto-determinação, exatamente o mesmo que " o sistema " ou " a sociedade burguesa " incentiva aos que não se adequam aos tipos favoritos de suas respectivas sociedades. Um indivíduo que recusa a determinação, pensando apenas em possibilidades, isto é, em fantasias, não é um sujeito maravilhoso, uma obra de arte viva, não é o übermensch, mas apenas um fraco que perde seu valor a cada segundo de insistência nessa estupidez. O discurso de desconstrução total não é nenhuma crítica, pois afirma exatamente a mesma armadilha mental que a sociedade capitalista, a ideologia de que a liberdade é um bem em si que deve ser buscado em um código moral, uma das principais razões pelas quais a maioria de nossa população tem muito pouco poder, especialmente quando se trata de poder político.

Ser livre é uma característica humana, nós somos seres com possibilidades e podemos antecipar muitas delas em nossa orientação mental. Nosso problema certamente não é falta de liberdade, mas o fato de que somos quase sempre restritos a fantasiar com possibilidades em vez de agirmos e tomarmos o poder para nós. Seu valor está na forma e intensidade de seu poder, de sua determinação, não em sua liberdade ou em suas fantasias narcisistas. A liberdade não é o que está em disputa e não é aquilo que sociedade pode ou deve lhe prometer -- o poder é o que se disputa e o que revela a natureza da sociedade. A garantia da " liberdade de expressão " é muito frequentemente usada como propaganda do estado. Afirma-se que somos livres porque podemos questionar qualquer coisa. Certamente somos livres, isto é parte de nosso ser. Mas que poder temos sob esse estado ? Esse mesmo estado frequentemente usa da violência bruta e óbvia no instante em que o questionamos não em palavras fantasiosas mas em ações, em protestos, em transgressões, etc. Por exemplo, a crítica do machismo cai em uma armadilha se luta para poder afirmar que uma mulher pode escolher com quem quer se relacionar. Essa possibilidade simplesmente existe, afirmar isso é afirmar que essa liberdade essencial humana depende de algum reconhecimento. A verdadeira questão a ser feita é sobre o que acontece com a mulher uma vez que ela de fato se envolve com alguém. A exigência do reconhecimento da liberdade é um sinal de " dominação ", pois sugere que alguma autoridade detêm tamanho poder sobre aquilo que é simplesmente essência do ser humano.

Maquiavel, no século 14, já havia percebido que o segredo para uma ordem política duradoura está em permitir que os cidadãos subordinados esbravejem de alguma forma, em pequenos discursos de pequena agressividade contra o estado que os frustra. Eis porque o discurso da " denúncia da opressão " não é mais uma via para o poder. Você pode, por exemplo, denunciar que a história da filosofia é machista acreditando que questiona com isso o poder atualmente estabelecido ( o fato de que a esmagadora maioria dos reconhecidos como grandes filósofos são e serão homens ). Mas precisamente incentivando que você faça essa reclamação, lhe elogiando por isso, a sociedade lhe incentiva a ignorar a pergunta : " Por quê eu não sou uma grande filósofa ? ". Denunciar a situação social de qualquer grupo de uma forma que atribui ao fato social a " opressão " sem também responsabilizar o indivíduo por suas escolhas é uma grande concessão ao estado -- significa dizer que as autoridades vigentes podem decidir a natureza de nosso poder. Se trata de uma troca de nosso poder pelo nada. Sua impotência também é sua responsabilidade. Fugir dessa responsabilidade com desculpas é confortável para sua identidade mas perpetua sua fraqueza, principalmente quando a desculpa utilizada é algo que de fato existe. Quando você culpa seu oposto dialético e sua luta de classes pelo seu fracasso, você atribui a um processo a orientação do seu destino -- essa é precisamente a forma mais pura de coerção da mente . A razão certamente é o começo da crítica, mas o discurso é corrompido e se tona passivo se nos esquecemos da finalidade da crítica : Mudar nossa orientação mental para uma capaz de obter poder, de conquistar valor e de brilhar de forma esplendorosa na história, com ações em vez de simplesmente com palavras, fantasias e possibilidades.

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Notas :

*1 - Os intelectuais a quem me refiro com certo sarcasmo não são as pessoas que de fato levantaram questões sociais e filosóficas com suas obras criativas e profundas, mas os muitos acadêmicos que são resignados a usurpar o discurso alheio e que ensinam a seus estudantes que eles/elas devem fazer o mesmo, os que ensinam que ser inteligente significa reproduzir os conceitos da moda, que pensar com a própria autoridade e responsabilidade é em si um erro. No exemplo do feminismo, uma mulher que escreve obras filosóficas originais faz algo de grande valor que de fato contribui muito para a mudança das ideias na sociedade e, se sua obra singular aborda as questões sociais, traz força para os movimentos sociais -- e certamente não apenas no campo do feminismo. Entretanto, os acadêmicos que apenas repetem e ensinam a repetir as teorias das grandes feministas são tipos resignados, que não buscam o poder que suas autoras favoritas obtiveram. Assim como os comentadores de filosofia degeneram o espírito filosófico quando vendem a ideia de que citar autores clássicos é fazer aquilo que eles fizeram ( filosofia propriamente dita ) , essa prática no feminismo acadêmico não faz nenhum papel empoderador ou emancipatório. Veja, como exemplo, os " nietzschianos " acadêmicos, veja como eles são ortodoxos e desprovidos de criatividade, como eles não fazem nada que seja uma " ponte para o além-do-homem ". Ou então os " kantianos ", pregando a filosofia de Kant como dogma, incentivando a hipocrisia e a covardia intelectual em vez do " esclarecimento ". Ambos esses tipos de postura intelectual existem porque indivíduos, por um lado, se sentem atraídos a afirmar que são " kantianos ", " nietzschianos ", " feministas ", qualquer coisa interessante, enquanto, por outro, não estão dispostos a pagar o preço que as figuras fascinantes da história do pensamento pagaram. A demanda por mudança social se torna assim, ao longo do tempo constrangida dentro dessa estrutura, apenas uma tentativa narcisista de afirmação de identidade, uma fantasia de liberdade.

*2 - A expressão foi utilizada em" Assim falou Zaratustra ", onde Nietzsche compara a diferença entre o além-do-homem e a humanidade atual com a diferença entre a humanidade e os macacos. Por causa da foma como Nietzsche expressou sua ideia, a noção de além-do-homem pode parecer praticamente uma superstição, mas ela de fato chama a atenção para algo de grande valor, que foi compreendido no oriente muito melhor que no ocidente : O ser humano pode evoluir para além do que conhecemos hoje como a " humanidade ". Essa evolução não é biológica, técnica ou nazista, mas simplesmente filosófica -- e cultural, como consequência. Penso que uma pauta geral dos movimentos sociais atuais é conduzir-nos a uma sociedade, em vários sentidos, superior. Mas uma vida em sociedade superior requer uma cultura superior, e uma cultura superior não se faz com a soma de indivíduos que vendem suas riquezas do espírito com tanta facilidade como nós. O cultivo da profundidade do espírito é muitas vezes visto como algo " elitista ", como se fosse em si a afirmação de desigualdades sociais. Mas como nós, com nossa pobreza de espírito, poderíamos um dia viver em uma sociedade bem administrada ? Como nós, que não cultivamos nossa singularidade, a esplendorosa beleza que todos podemos ter em uma forma diferente, como nós poderíamos viver em uma sociedade que respeita todos os indivíduos ? Que tipo de " revolução " nós faríamos ?