quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O Problema do Bem

O problema do mal é uma questão filosófica com a qual todos que já se perguntaram sobre o sentido da existência humana se defrontaram. Se existimos por alguma razão, seja por causa de Deus ou por alguma força semelhante, por que existiria o mal? Uma solução ingênua para esse problema é a interpretação de que o mal existe para nos ensinar, de que o mal é um bem indireto, "a twisted blessing". Porém, muitos seres humanos são esmagados pela natureza em enormes catástrofes nas quais um fenômeno físico simples devora centenas de subjetividades em instantes, sem nenhum aprendizado para as vítimas. Existe uma versão mais refinada daquela resposta que atribui aos seres humanos o "livre arbítrio", o que nos responsabiliza pela degeneração do mundo e de nós mesmos. Mas existe também uma versão refinada do problema do mal, que me parece decisiva. Arthur Schopenhauer argumentou uma vez que não é possível que a natureza tenha sido criada por uma força intrinsecamente benevolente se o processo de sobrevivência de todos os seres envolve a destruição de diversos outros, que sofrem terrivelmente com essa luta. As maiores soluções para o problema do mal pressupõe o livre arbítrio e a inferioridade (ou ausência) de espírito nos animais, duas pressuposições que fazem pouco sentido fora da tradição cristã, enquanto o problema do mal pode ser pressentido e formulado por qualquer indivíduo, independentemente de sua religiosidade.

Uma implicação psicológica e cultural da aparente impossibilidade de solução do problema do mal -- ou da consequência geralmente extraída de que não existe uma razão para a existência humana -- é o sentimento de indignação e espanto que muitos experimentam quando são testemunhas de tragédias, sejam de pequena ou larga escala. Quando um volume gigantesco de água surge no horizonte, quando um indivíduo decide matar quantas pessoas puder para depois cometer suicídio, quando uma criança nasce com um defeito cerebral, em ocasiões como essas a existência parece uma piada de mau gosto. Esse sentimento também pode ser observado em relação à civilização e suas catástrofes. Diante das guerras, acidentes e da violência constante muitos se perguntam "como é possível que isso esteja acontecendo?" ou "quem é o culpado?". Os acontecimentos que fazem parte do conjunto daquilo que popularmente se chama de mal quase sempre chocam, são motivo de discussão, são assunto durante muito tempo. A ocorrência constante desse "mal", somada à dificuldades filosóficas como a mencionada, fazem com que a interpretação do universo como um grande caos (ou como uma razão sem predileção pela humanidade) seja tomada mais frequentemente como um pessimismo, ou como um estado a ser amenizado pelos esforços humanos.

Mas, com um pouco de abstração, é muito estranho que a existência do bem não seja igualmente tomada como um problema filosófico. É curioso que uma circunstância reconhecida como um bem precise ser absolutamente extraordinária para ter a atenção que um mal relativamente comum receberia. Creio que nosso hábito com a ideia de civilização, somado à nossa educação que enraíza mais profundamente as noções clássicas de razão, nos leva a uma naturalização da expectativa de que o bem aconteça, de que o bem seja a regra. Ora, é evidente que a expectativa de previsão do mal e a expectativa de previsão do bem são equivalentes, em todo caso se trata da capacidade humana de prever e organizar os eventos do mundo, e quaisquer limitações nessa capacidade refletem tanto sobre a previsibilidade do mal quanto sobre a previsibilidade do bem. Se aquilo que conhecemos sobre o universo não nos informa nenhuma finalidade para nossa existência, o bem é tão estranho quanto o mal. Se a tradição teológica cristã teve que enfrentar o problema do mal, as interpretações materialistas do universo devem enfrentar o problema inverso.

Considere por um momento seu lugar diante do universo. Você, eu e a Terra somos menos que nada, poeira cósmica à deriva no nada, assim como tudo mais que existe. Como é possível que você, com seu corpo instável e que facilmente sofre ou até perece, em uma vida social na qual alguém facilmente mata ou morre, em um planeta no qual qualquer alteração maior extinguiria a maioria dos seres vivos, como é possível que nós aqui estejamos vivos e ainda tenhamos tempo e tranquilidade para olhar para a tela de um computador ou de um celular? Como é possível que tais aparelhos possam existir ? Como é possível que, aleatoriamente, todas as condições para esses e tantos outros de nossos caprichos estejam dadas? A resposta de que isso tudo prova que o universo é uma obra é entediante porque esconde uma verdade mais profunda: O problema do bem e o problema do mal são equivalentes e ambos não têm solução.

Uma das explicações mais comuns para o surgimento das religiões é a ideia de que os primeiros seres humanos, diante do desconhecido e daquilo que não se controlava, tiveram que projetar suas razões no universo, como figuras protetoras a serem louvadas ou figuras malignas que eram racionais, diferentemente do "mal" inerente à natureza. Disso se extrai frequentemente que medo e religião são intrinsecamente associados. É uma conclusão enganosa se considerarmos que o bem tem tantas razões para provocar espanto quanto o mal. Rituais como as festas de agradecimento aos deuses contemplavam o lado positivo da aleatoriedade, talvez melhor que as interpretações científicas contemporâneas baseadas nos avanços da biologia e da neurociência. Digo isso porque o aspecto misterioso da existência nunca foi solucionado. A interpretação de que aquele estado de desconhecimento era uma situação primitiva, da qual hoje estamos livres em alguma medida, é bastante enviesada. Nós avançamos muito em termos de conhecimentos particulares e de técnicas de manipulação, mas o estado essencial de desconhecimento não é afetado por tais avanços. Poderíamos conhecer o dobro do que temos confirmado hoje, e você ainda não teria certeza se está acordado(a) ou dormindo, se vai viver por mais cinco minutos ou por mais cinco décadas.

As expectativas de que alimentos estejam disponíveis, de que o corpo não seja ferido, etc têm bases fisiológicas, diriam alguns. Mas veja que desejar algo e ter a expectativa de que tal coisa seja possível são coisas diferentes. Além disso, nada obrigou a existência a nos dar essa base fisiológica que busca sua preservação e que é capaz de produzir prazer. Parece-me que as complicações filosóficas e pragmáticas nesse contexto surgem mais da expectativa do que do desejo, e isso se aplicaria também à interpretação de que existe um Deus ou uma razão suprema do universo com predileção por nós -- esperar coisas específicas de Deus seria muita pretensão. Algo semelhante parece razoável em relação à civilização. Se a maldade provoca escândalo, é porque ela não é esperada, e se a bondade dificilmente chama atenção, é porque sua expectativa é naturalizada. De um ponto de vista existencial nenhuma dessas expectativas é justificável. A causa maior do desespero é também a causa maior da alegria. Embora o uso de expectativas sejam importante de um ponto de vista pragmático, é notável que pessoas frequentemente baseiam suas expectativas em outras mais profundas acerca da existência, o que provoca muitos enganos.

A ideia de que a existência é intrinsecamente absurda, no sentido de que nossa razão não está em diálogo com outra maior, não é necessariamente um pessimismo, posto que o bem é tão absurdo quanto o mal. Disso decorre que a tentativa de amenizar esse aspecto absurdo não é necessariamente uma busca pelo bem ou algo do gênero, inclusive porque não sabemos o que será fixado com nossos esforços de organização e avanço técnico. Se as maiores tragédias dependem de um destino cruel muito maior que nós, as maiores comédias também devem ser obras do acaso, ou de uma razão oculta incompreensível para nós.

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Notas: 

*1: Note que existe uma grande diferença entre o conceito de liberdade, mais geral, e o conceito de livre-arbítrio, que é bem específico de algumas tradições monoteístas e expressa a possibilidade de contraste entre o pĺano divino e o plano de cada indivíduo, mais que a possibilidade de escolha em relação ao meio material. Quanto à consciência dos animais, a não ser que acreditemos que eles são criados por Deus para nosso uso, não existe nenhuma razão para acreditarmos que um animal não sofre nem sente alegria, ou que tais estados são desqualificados se comparados aos nossos.