sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Saber é poder?

Você já ouviu ou leu a frase "saber é poder"? Essa pequena frase estabelece uma identidade
entre seu conhecimento do mundo e sua capacidade para dominá-lo.

Perceba que essa forma de pensar depende de uma noção antiga de poder, que ainda hoje domina
o senso comum. É a noção de que um sujeito contém o poder e o exerce sobre os outros e sobre
os objetos inanimados. Assim,  "ter poder" se tornou idêntico a "ser livre". Mas, aparentemente,
o poder não funciona assim. Para ganharmos um tipo de poder precisamos ter ou ganhar as
características necessárias, e ter certas características nos impede de ter outras. Isso significa
que ter poder para algumas coisas limita nossas possibilidades em relação a outros tipos de
poder. Afinal, exercer influência exige tempo e nosso tempo é curto.

Por exemplo, se eu quiser me tornar um grande pianista, terei que passar muito tempo pensando
sobre música, praticando, apreciando obras clássicas, etc. Durante esse tempo, não poderei
sustentar outros planos, como me tornar um boxeador profissional, possibilidades que eu
tinha antes de optar por ser pianista. Não apenas sofro essa limitação no processo, mas também
depois que atingir meu objetivo. Uma vez que me torno um grande pianista, dediquei muito da
minha vida ao instrumento, e se eu quiser ter alguma espécie de sucesso em minha curta vida,
é irracional que eu mude de ideia, e racional que eu me dedique cada vez mais à carreira escolhida.
    
Nossa sociedade nos leva a crer que ter habilidades é sempre libertador. "Se eu aprendo a tocar piano,
me torno livre para tocar piano". O correto seria " Se eu optar por aprender a tocar piano, terei que
que tocar piano." Igualmente, nossa sociedade digitalizada nos leva a crer que receber informação é
sempre libertador, sempre uma expansão de nossas possibilidades. Isso também é falso.

O poder da mente, a sabedoria, não é um caso muito diferente das habilidades como tocar piano.
A capacidade da mente para receber e registrar informação é limitada, assim como sua capacidade
de análise, de criação e de mudança. Além disso, a certas ideias são conectadas outras, de tal forma que pensar sobre algumas coisas significa pensar em outras, isso tudo consumindo tempo e exigindo dedicação. Conhecer não possibilita, conhecer determina.

Assim, da mesma forma que optar por um projeto material ou outros é uma escolha séria,
conhecer umas coisas ou outras e optar por um projeto intelectual também é uma escolha
com amplas consequências, raramente previstas de início. Schopenhauer percebeu isto quando
escreveu " Não ler os livros ruins é um pré-requisito para ler os bons, porque o tempo e a energia
são escassos e a vida é curta." Saber é poder e ter poder é ser determinado. Estamos, então.
condenados a ter nossas mentes ocupadas por toda a informação que chega a nós atualmente?

Nós estamos determinados a essa regra, de tal forma que uma vez que recebemos uma informação
e a aceitamos, aceitamos também uma série de outras, aceitamos gastar tempo pensando naquilo
e, em muitos casos, escolhemos nos comportar de uma certa forma. Mas não estamos determinados
aceitar tais informações, nem mesmo a aceitar buscá-las. Na essência humana está liberdade, que
não é idêntica ao poder. Liberdade é a extensão das possibilidades através do caos, da negação e
da destruição. Nossa capacidade de abstração nos permite perder ou distorcer o que sabemos.

Dessa forma, para quem pretende cuidar da própria mente e realizar alguma obra intelectual,
é muito importante recusar a grande maioria das trocas de ideias, e ter dedicação profunda às
conversas, pesquisas e reflexões que parecem dignas de uma mente nobre. A grande maioria
dedica tempo a descobrir e divulgar a trivialidades da vida alheia e da própria, à repetição
incessante de debates inconclusivos, à propagação de mentiras e, o caso que me desagrada
em particular, à produção de obras intelectuais com o objetivo de receber glórias e riquezas
não merecidas, com um ar de disciplina e sobriedade.

Em outras palavras, a grande maioria da população usa todo o tempo dedicado a lidar com
informações e a cuidar da mente da mesma forma que usa o restante da vida. Trata-se de uma
forma normal, confusa e amedrontada de viver. As pessoas são educadas para atribuir os grandes
objetivos a figuras distantes, passando pela vida repetindo discursos irracionalmente, ou melhor,
com uma racionalidade interesseira. Suas pesquisas e debates são completamente egoístas e,
na maioria dos casos, simplesmente reciclam o mesmo conteúdo várias e várias vezes.

Por esse motivo temos uma massa, um rebanho, de indivíduos que se consideram todos egoístas
e livres, talvez até felizes. O hábito de se entreter com as más ideias e com os maus debates
é hoje mais perigoso do que em qualquer outro tempo. Com o poder de transmissão de informação
que temos hoje, e com ferramentas como o Facebook, realmente temos a possibilidade de gastar
dias inteiros trocando boatos e julgamentos ou reciclando debates como "teísmo versus ateísmo",
buscando propositalmente as más ideias por medo dos desafios impostos pelo pensamento profundo,
que é por essência livre e portanto destrói as bases firmes e questiona a ordem vigente, além de, nas
últimas consequências, estabelecer outras bases para as quais a massa não está preparada.

Esses também são motivos para que aqueles que se dedicam ao ensino considerem com muito cuidado a quantidade e a qualidade das informações que transmitem a seus alunos. Replicar
discursos segundo o costume, de forma servil e covarde tende a formar os estudantes com esses
traços. Do contrário, uma educação minimalista, elaborada como uma obra de arte, seja ela
oferecida por um verdadeiro mestre ou buscada por conta própria, resulta naquilo que os medíocres
da posterioridade vão chamar de talento inato ou de genialidade.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Poder e Liberdade

Você pensa no poder como algo diretamente ligado com a liberdade?
Penso que devo explicar bem essa pergunta. Quado falamos em poder, geralmente nos referimos
a um potencial de influência, como poder econômico, poder político, carisma, força bruta, etc.
Quando falamos em liberdade geralmente falamos na extensão de nossas possibilidades,
como liberdade civil, libertação dos oprimidos, liberdade de expressão, livre-arbítrio, etc.

A relação entre a liberdade e o poder, definidos dessa forma, me parece mais misteriosa
que para a maioria das pessoas, aparentemente. Parece claro para a maioria das pessoas,
por exemplo, que dinheiro é poder e liberdade. Mas não será isso um resultado ideológico?
Nossa sociedade ainda carrega aquele cansado sonho americano de individualidade e vitória.

Vejamos. Para que tenhamos possibilidades em um contexto, não podemos ter algo que
determine esse contexto. Quanto menos determinantes temos, e quanto menos intensa
for a determinação em um contexto, mais possibilidades existem. Por "determinante" eu
me refiro a alguma entidade que influencie as outras. Por "intensidade da determinação"
eu me refiro a quantas possibilidades um determinante é capaz de eliminar.

Imagine um objeto sem  nenhuma propriedade conhecida, mas que pode ser reconhecido
e observado por nós. Pelo que sabemos, é impossível prever qualquer coisa sobre esse
objeto. Não sabemos nada sobre suas relações de causa e efeito, até onde sabemos ele pode
se mostrar o fim de todas as regras e previsões em que confiamos. Suas possibilidades são
infinitas até que suas propriedades comecem a ser desveladas. Na medida em que conhecemos
que influência aquele objeto pode exercer ou receber (sua massa, sua energia,etc.) aprendemos
também que suas possibilidades não são infinitas, e que existem certas reações que aquele objeto
não pode ter sem destruir aquilo que o caracteriza. Quando o conhecemos suficientemente, o que
antes era a Caixa de Pandora passa a ser mais um mecanismo útil e previsível à nossa disposição.

As possibilidades do objeto aumentam ou diminuem com base em nosso conhecimento de
suas propriedades porque a possibilidade é fundamentalmente um produto da mente humana.
Somos nós quem abstraímos aspectos da realidade com a imaginação para perceber no
presente aquilo que é ou poderia ser ausente. Por isso nós somos a referência para pensar
na liberdade. A determinação dos objetos inanimados e sem experiência psicológica é
quase completamente irrelevante para a discussão acerca da liberdade humana.

Penso agora que todo ser humano é capaz de fazer tais abstrações em sua consciência, e que,
até que nós façamos escolhas com base  -- ou não -- em possibilidades pensadas, nossas
possibilidades materiais correspondem as possibilidades imaginadas. Na medida em que
fazemos escolhas eventos são associados fisicamente e mentalmente a nós, nossas
possibilidades diminuem, porque uns eventos excluem outros. Se você imaginar, com
base em seu estado agora, que coisas você poderia estar fazendo na próxima hora, você
poderá pensar em diversas possibilidades e elas correspondem ao seu estado físico. Se
você optar por uma, ou por algumas conciliáveis entre si, você já não terá fisicamente
todas as possibilidades imaginadas. Depois de agir segundo suas ideias, as memórias
do vivenciado talvez façam com que as possibilidades imaginadas também se limitem.
 
Vamos pensar no poder. Para termos poder é preciso termos propriedades definidas que nos
permitam influenciar nosso meio e talvez a nós mesmos. Para que um humano tenha
alguma propriedade é preciso que eventos físicos e mentais sejam associados profundamente
ao indivíduo em questão. Se não for assim, ele poderá imaginar incessantemente possibilidades
e será sempre muito livre, mas sem nenhum poder.   Por exemplo, para que eu seja rico,
não apenas em uma fantasia mental mas de fato, eu preciso passar por uma série de eventos
que me validem como tal, para que eu possa exercer grande influência econômica.

O poder precisa de algumas determinações para existir, ele nunca poderia ser abstrato e
existe na natureza independentemente de nossas mentes. Animais pouco inteligentes podem ter
poder, elementos químicos podem ter poder, o  Sol tem poder. Para que a liberdade possa existir
é preciso que não sejamos completamente determinados pelo meio, é preciso que tenhamos a
capacidade de pensar em abstração e em atribuir ao meio físico os objetos dessas abstrações.
A liberdade nunca poderia ser concreta e não existe sem seres capazes de raciocinar, imaginar
e abstrair. A liberdade é nítida para aquele que experimenta e um absurdo para aquele que observa.

Se você acompanhou esse raciocínio como um todo, você percebe a complexidade da relação entre
o poder e a liberdade. O poder não gera a liberdade, ele é seu oposto metafísico.O poder é, porém,
uma pré-condição para a liberdade. Toda a série de eventos relacionada a algum poder
limita nossas possibilidades. Se me torno rico, minha vida se torna em grande parte
definida por esse status, e o mesmo pode ser dito sobre as outras formas de poder. O poder
traz uma série de obrigações relacionadas à sua manutenção e sua determinação dos eventos
é mais intensa conforme ele aumenta. Mas é com base no que está estabelecido que nós
imaginamos possibilidades. Se nossa mente e o mundo ao nosso redor fossem isentos de
determinações, eu duvido que nós seriamos capazes de pensar, considerando que o pensamento
tem ligação estreita com fenômenos físicos do cérebro. O que iríamos negar e abstrair se nada
estivesse afirmado ao nosso redor? Nós sequer existiríamos.

Não é coincidência que Deus seja frequentemente descrito como um ente absolutamente poderoso mas muito raramente como um ente absolutamente livre, e que a noção religiosa de liberdade seja
a de um livre-arbítrio concedido por tal entidade. A afirmação máxima do poder é uma ordem
absoluta. A negação máxima do poder é o caos total. O que é a razão humana se não a inteligência
animal mais capaz de encontrar fraquezas e outras possibilidades naquilo que está estabelecido?
Com essa inteligência , nós rearranjamos o poder na natureza, provocando caos e instaurando
ordem de acordo nossos desejos e convicções. Subjetivamente, somos capazes de destruir e desordenar aquilo que nos desagrada. Objetivamente, nada do que fazemos realmente perturba
a ordem da natureza, porque fazemos parte dela e é apenas nela que podemos pensar e agir.

Por partilharmos todos dessa essência caótica e por participamos todos da ordem da natureza
é que as nossas ações e ideias podem realizar muito contra ou em favor da humanidade mas nada
contra e, provavelmente, nada em favor da natureza.