terça-feira, 16 de junho de 2015

Teoria e Prática

Quando exatamente a teoria é capaz de afetar com precisão a prática? Você provavelmente já ouviu ou usou a expressão "isso é válido na teoria mas não funciona na prática". Mas você talvez não se tenha perguntado " como pode ser que uma boa teoria não diga nada sobre a prática?". Não há uma resposta obvia para isso. Alguns castelos japoneses, construídos com uma mistura de matemática e misticismo, são mais resistentes a terremotos que as construções contemporâneas e permanecem em perfeito estado até hoje. Enquanto isso sistemas políticos, econômicos e de ensino se arruínam diante de nossos olhos independentemente da coesão de suas teorias fundamentais,

É possível identificar alguns fatores que influenciam na falha ou sucesso das teorias. Parece claro que explicar e controlar uma reação química é mais fácil que fazer o mesmo com uma reação psicológica, por exemplo. Também é claro que quanto mais complexo e instável for um fenômeno, mais dificilmente uma teoria sobre ele atinge seu fim. Seguindo por esse caminho, concluiríamos que é o problema a ser resolvido que separa as teorias úteis na prática das inúteis. Mas isso não pode ser. Resolver o paradoxo de Russel é incrivelmente difícil para os matemáticos, e ele não envolve nada além de problemas causados por axiomas que podem ser formulados de outra forma de acordo com a vontade de quem estiver pensando sobre o assunto. Enquanto isso todos os lendários líderes militares do passado foram capazes de prever completamente as ações da maioria de seus inimigos, e é comum a opinião de que muitos empresários e publicitários fazem algo semelhante. Esse tipo de previsibilidade pode ser facilmente observado em menor escala em um jogo de xadrez.

Não pode ser o caso que uma teoria seja bem sucedida e outra não dependendo dos assuntos em questão. Esse parece ser o pressuposto implícito de quem usa aquela expressão em discussões de filosofia política ou de ética. Trata-se de uma comparação entre a beleza das ideias nobres e a corrupção que se enxerga na prática. Mas essa forma de pensar ignora que não existe apenas uma forma de conceber e utilizar a racionalidade. Talvez nunca exista um problema na abstração em si mesma, mas sim no processo pelo qual a abstração é feita. Se observarmos a metafísica de Aristóteles em comparação com a metafísica de Tomás de Aquino isso fica claro. O instrumento de conhecimento usado é exatamente o mesmo, mas o primeiro caso resolve inúmeras questões mesmo sem acrescentar nenhuma informação concreta, enquanto o outro acrescenta muitas informações abstratas e cria algo que não pode ser de grande serventia a ninguém, porque exige mais esforço mental que a investigação da natureza em si mesma.

A separação entre a racionalidade e o restante da vida não faz sentido, independentemente de suas convicções religiosas ou científicas. Se você admite que é parte da natureza, seja ela criada ou um maravilhoso acidente, você admite também que sua razão está ligada a essa natureza. Isso significa que o raciocínio abstrato não pode ser independente dos demais aspectos da fisiologia humana. Como Espinosa bem demonstrou, um erro não consiste em dizer algo que não existe na natureza, mas sim em julgar a natureza de forma confusa. Uma abstração não cria algo inexistente, mas simplesmente apresenta aquilo que é concreto de outra maneira.Assim o sucesso de uma abstração depende da forma como ela é construída com base em seus elementos constitutivos.

Se um raciocínio é uma conversão daquilo que se observa e vivencia para uma linguagem direta, ele pode explicar a prática. Por exemplo, denominar uma certa quantidade de superfície que vejo de "um centímetro" me permite calcular precisamente quantos centímetros um determinado espaço tem independentemente de seu tamanho ou complexidade, dada a infinitude dos números. Isso significa que de uma abstração sou a capaz de concluir coisas muito para além da experiência, desde que a base para essa abstração seja algo concreto. Se um raciocínio estabelece uma lógica própria independente dos fenômenos do mundo, seja com uma linguagem clara e regrada ou não, ele não pode explicar a prática e é questionável se ele explica a si mesmo. Os exemplos para esse tipo de erro são numerosos atualmente, por causa da forma como somos capazes de construir redes de informações selecionadas por nós mesmos ao nosso redor.

Quando um acadêmico marxista tenta prever ou realizar a revolução sem estudar nada além de literatura marxista, ele está fechado em um sistema que não contém um de seus principais objetos de interesse, o sistema capitalista e seus pressupostos tais como são pensados pelos capitalistas. O mesmo pode ser dito sobre a oposição, e sobre a própria ideia de oposição política, que geralmente se manifesta em grupos que não se conhecem e não estão dispostos a isso. A ideia de que a corrupção humana é generalizada geralmente aflige aqueles que deliberadamente buscam notícias relacionadas a atrocidades e tragédias. É claro que uma vez que um indivíduo cria essa fantasia, qualquer experiência vivenciada que seja coerente com ela irá fazer com que a fantasia pareça verdadeira como todo. Por causa do contexto acadêmico, a ciência contemporânea em todos os campos corre risco de se tornar um processo semelhante. O fato de que a filosofia acadêmica já está completamente perdida deveria servir como um aviso.

Nesse tipo de pensamento, no qual o sujeito é vendado pelas suas ideias, é utilizado o mesmo instrumento daqueles casos nos quais as ideias servem como um bom par de óculos. É difícil explicar a diferença, porque aqueles que entram no tipo circular de raciocínio não são muito transparentes ou abertos para um diálogo transparente. Se eu tentasse os explicar eu cometeria o erro que estou explicando, construindo uma imagem sobre esses sujeitos sem conhecê-los ou ouvi-los e fazendo um sistema retroalimentado de argumentos. Mas talvez justamente nessa dificuldade de diálogo esteja um bom critério para diferenciar os óculos das vendas. É bem fácil notar pela experiência comum que alguns sujeitos não querem sair de seus próprios sistemas conceituais mesmo quando o diálogo com outro sujeito exige isso. Novamente, marxistas acadêmicos são o exemplo clássico, quase um esteriótipo justificado, mas existem inúmeros outros casos.

Enquanto isso, outros constroem sistemas conceituais durante um diálogo, unindo perspectivas e argumentos sem um aspecto de competição e sem necessidade nenhuma de uma postura relativista. Isso porque todos nós percebemos a mesma realidade de perspectivas distintas, o que significa que exercícios de raciocínio que unem essas perspectivas estabelecendo entre elas algo em comum são mais próximos da verdade e naturalmente geram teses mais persuasivas que exercícios de raciocínio que tem um aspeto de competição. O fato de que "debate" é frequentemente um sinônimo de "disputa" é um fator a mais para estabelecer uma desconfiança geral sobre a racionalidade e sobre a filosofia. É apenas nesse estado de desconfiança que teoria e prática são universos completamente distintos.