terça-feira, 12 de março de 2019

Autoridade e Progresso

Cada indivíduo tem sua própria potência de ação e sua própria consciência. Apesar disso, um sujeito muitas vezes não é capaz de desenvolver em si mesmo qualidades que percebe em outros, assim como frequentemente não é capaz de realizar por conta própria algo que deseja. A autoridade se estabelece por causa de desigualdades nas virtudes, habilidades e possibilidades dos indivíduos. Por conta dessas desigualdades, frequentemente precisamos nos organizar em torno de certas figuras para que determinados fins sejam alcançados. Existe, portanto, um aspecto fatual nos vínculos de autoridade. Os fatos por si mesmos, porém, não estabelecem a autoridade tal como a vivenciamos nem a sustentam ao longo do tempo. Figuras de autoridade são construídas e mantidas através de interpretações, símbolos, expectativas e outros elementos que envolvem fundamentalmente a imaginação e a cultura. Nenhum indivíduo é capaz de vencer conflitos infinitamente, nem de ter permanentemente a razão em um tipo qualquer de assunto, nem de agir sempre de forma moralmente exemplar ou de atingir a realização de todos os seus planos. Se considerarmos as potencialidades humanas de um ponto de vista estritamente factual, são todas passageiras e imprevisíveis. Um indivíduo que é reconhecido como um grande sábio, por exemplo, pode a qualquer momento cometer um equívoco grosseiro. Nós confiamos que esse equívoco não acontecerá apesar de racionalmente ser perfeitamente possível, esperando obter dessa autoridade alguma certeza que não encontramos em nós mesmos. Aquele que promete essa certeza depende de seus seguidores para atingir um determinado fim. Nesse vínculo de dependência, o seguidor oferece sua ação e cede seu juízo, enquanto a autoridade oferece sua virtude e uma promessa de progresso.

Aquele que segue uma autoridade não é, portanto, tão passivo no processo quanto as aparências costumam sugerir. Seguimos um indivíduo porque desejamos obter disso a realização de algum objetivo, ou porque percebemos na figura em questão algo de valor que queremos cultivar fora de nós mesmos. Essa espécie de relação desenvolve grande parte da identidade de um sujeito. Embora a autoridade possa ser pensada e explicada a partir de razões, o processo básico de identificação é na sua maior parte irracional. Um indivíduo tende a proteger a reputação de suas autoridades em um movimento de autopreservação – que frequentemente se torna agressivo. A princípio, esse vínculo e o respectivo impulso defensivo podem ser desconstruídos pela via da razão. Por exemplo, um indivíduo pode compreender que associa potencialidades suas a alguma figura externa, deixando de ter autonomia em uma situação na qual isso é possível e desejável. Quando um sujeito se permite questionar as razões ou os planos de uma figura de autoridade a relação de poder se enfraquece, pois a sensação de desigualdade entre as partes diminui. Na prática, porém, esse processo costuma ser bastante difícil e depende de muitos fatores além da razão e das evidências. Existe na consciência daquele que segue uma autoridade um desejo, uma ideologia, um sistema de valores, algo que permite que a relação entre as partes se estabeleça. Essa relação pressupõe e reforça diversas definições nas consciências e nos desejos dos indivíduos envolvidos. A consciência de um sujeito é moldada por suas relações de autoridade e grande parte de seu raciocínio crítico é assim suspenso, substituído por um sentimento de confiança ou humildade diante de certas figuras.

Autoridades não são principalmente seguidas por humildade, reconhecimento, confiança ou qualquer sentimento do gênero. O indivíduo projeta na figura de autoridade seu próprio sistema de valores e suas próprias expectativas, e por isso defende através de sua servidão seus próprios interesses e, acima de tudo, sua identidade. O desejo pela autoridade em si mesma frequentemente consta entre esses interesses. Por exemplo, um soldado pode defender a autoridade de seus superiores em grande parte por desejar tais posições de poder, defendendo a ordem da instituição como subordinado para ser obedecido pelas gerações seguintes. O mesmo ocorre em diversos outros contextos, como em universidades ou em igrejas. Os indivíduos mais obedientes costumam ser ao mesmo tempo os mais sedentos por poder, pois investem grande parte de suas energias em vínculos de dependência. Oferecendo a uma autoridade o reconhecimento que a figura deseja para si, o indivíduo ganha a atenção de seus superiores na hierarquia em questão. A partir dessa atenção e da contribuição para a ordem vigente, o indivíduo passa a ser percebido como alguém que pode eventualmente ser o sucessor de tais posições de poder. Em muitos contextos, como no caso das universidades, o desejo por poder é mascarado por ambas as partes. A competência de uma figura qualquer é frequentemente declarada como justificativa para o reconhecimento privilegiado que recebe de seus seguidores, apesar de outros indivíduos de capacidades semelhantes ou superiores não serem respeitados da mesma forma por estarem fora da hierarquia em questão. Da parte daqueles que ocupam alguma posição de poder, frequentemente ouvimos justificativas como “apenas sigo a palavra de Deus”, “esta metodologia que eu ensino é objetivamente superior às outras”, “estou aqui representando a vontade do povo”, etc. A disputa por poder é o elemento central dessas relações, e o poder em questão costuma ser nocivo ou dúbio quando os indivíduos não assumem responsavelmente aquilo que desejam ou esperam por algo irrefletidamente.

A autoridade se prolonga não por direito nem por virtude, mas essencialmente por um jogo de poder desenvolvido em torno de desejos e símbolos – ou seja, se trata principalmente de um jogo estético. No que diz respeito à realização dos objetivos enfeitados pelo discurso, os resultados são bastante variáveis. Em algumas ocasiões o poder simbólico de uma autoridade conduz seus seguidores ao desenvolvimento ou facilita a realização de alguma finalidade importante para todos os envolvidos. Em outras, se trata de uma projeção supersticiosa baseada em confusões e imposições inconscientes que perpetua nos seguidores um estado de dependência inútil ao mesmo tempo nocivo e confortável para todos os envolvidos. Portanto, o valor social de uma autoridade pode e deve ser discutido racionalmente pela medida dos benefícios que proporciona em comparação aos custos que provoca. Posto que a falibilidade é um aspecto da natureza humana, nenhuma autoridade tem valor intrínseco, e qualquer figura ou relação do gênero deve ser submetida de tempos em tempos ao juízo da razão. Se assumimos que uma relação de autoridade se justifica como um fim em si mesma o fazemos por esquecimento e irracionalidade, geralmente motivados pelo medo ou pelo conforto cego. No caso de autoridades tradicionais, podemos buscar a compreensão de suas origens e podemos avaliar que espécie de valores, finalidades e benefícios existem nessas relações. O poder da razão sobre os vínculos de autoridade é limitado – e precisamente por isso deve ser usado ao máximo, para equilibrar nossas tendências autoritárias. Aquele que segue uma autoridade fazendo pouco uso da razão corre o risco de ceder suas energias a um parasita que não cultiva nada de valor e demanda cada vez mais servidão. A distinção entre autoridades úteis e inúteis nos aproxima de hierarquias honestas, enquanto valores sentimentais convidam a superstição e o exagero no poder.

Autoridades intelectuais costumam ser do tipo supersticioso. De um ponto de vista lógico, a autoridade da figura que faz uma proposição nunca é um fator relevante para a verificação de sua validade. Se o sistema conceitual apresentado por um indivíduo contém erros como contradições e etapas argumentativas que não se seguem umas das outras, nenhuma posição de autoridade o exime de estar incorreto. De um ponto de vista empírico, apenas a verificação e o registro rigoroso dos fenômenos podem servir de “autoridade”. Quando confiamos em uma autoridade intelectual, tomamos um atalho para o conhecimento, que julgamos ser seguro em função do histórico ou da reputação da figura em questão. Por exemplo, se sou um leigo em química, confio no parecer de um doutor na área em vez de procurar por conta própria os conhecimentos relevantes. Se trata de um processo natural e útil quando utilizado nos contextos adequados. Porém, a autoridade intelectual frequentemente assume aspectos impertinentes, supersticiosos e preguiçosos. Quando assumimos que o título de autoridade de uma figura garante que suas afirmações e orientações são verdadeiras e seguras, confiamos supersticiosamente. Confiamos corretamente na autoridade quando adotamos suas orientações ou opiniões como as mais racionais até que razões ou evidências melhores sejam encontradas. Essa condição é de extrema importância. Note também que a expectativa de certeza não existe nesse caso. É muito comum que figuras de autoridade rejeitem bons argumentos quando contrariadas em um debate, pois o próprio indivíduo tende a exagerar o significado de sua posição simbólica. O público, por sua vez, costuma aceitar a desmoralização do caminho mais racional e as afirmações circulares e soberbas de autoridade intelectual, pois esse estado de dependência intelectual é mais fácil que a constante pesquisa que as questões complexas e importantes exigem.

Uma relação de autoridade deve ser avaliada de acordo com sua finalidade e sua eficiência nessa direção. Por exemplo, a posição de um mestre se mantém justificada enquanto os estudantes se desenvolvem intelectualmente sob seu direcionamento. Uma vez que tal autoridade se torna um peso sobre o verdadeiro potencial dos estudantes – já desenvolvidos o suficiente para a autonomia intelectual – a relação deixa de fazer sentido. É natural que os estudantes mantenham uma relação de respeito e gratidão com o mestre, mas não é proveitoso que continuem dependendo de suas orientações ou que se mantenham estritamente ligados ao sistema de ensinamentos sob o qual se desenvolveram para a autonomia – que pode produzir novos conceitos, novos ensinamentos, etc. Se uma relação de autoridade atinge sua finalidade, deixa de ser necessária. Se caminha indefinidamente sem atingir seu fim, é inútil, uma falsa promessa que deve ser abandonada. Entendida racionalmente, a autoridade é útil ou inútil, nada além disso. O prestígio, a reverência e os demais sentimentos do gênero são saudáveis na medida em que não impedem a observação racional e constante das finalidades e da eficiência da autoridade em questão, e essa observação raramente é preservada diante da idolatria. A autoridade cria um sentimento de identidade segura que havia sido perdido ou ameaçado na imaginação dos seguidores. A servidão é preferível a muitos quando comparada com as inseguranças causadas pela liberdade, como o peso da responsabilidade, a dúvida, a imprevisibilidade, etc. A figura autoritária que busca compulsivamente a afirmação da própria imagem costuma sofrer também dessa insegurança. Desse encontro só se pode obter um desperdício cíclico de energia, posto que o medo produz ameaças à identidade infinitamente.