quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O Problema do Bem

O problema do mal é uma questão filosófica com a qual todos que já se perguntaram sobre o sentido da existência humana se defrontaram. Se existimos por alguma razão, seja por causa de Deus ou por alguma força semelhante, por que existiria o mal? Uma solução ingênua para esse problema é a interpretação de que o mal existe para nos ensinar, de que o mal é um bem indireto, "a twisted blessing". Porém, muitos seres humanos são esmagados pela natureza em enormes catástrofes nas quais um fenômeno físico simples devora centenas de subjetividades em instantes, sem nenhum aprendizado para as vítimas. Existe uma versão mais refinada daquela resposta que atribui aos seres humanos o "livre arbítrio", o que nos responsabiliza pela degeneração do mundo e de nós mesmos. Mas existe também uma versão refinada do problema do mal, que me parece decisiva. Arthur Schopenhauer argumentou uma vez que não é possível que a natureza tenha sido criada por uma força intrinsecamente benevolente se o processo de sobrevivência de todos os seres envolve a destruição de diversos outros, que sofrem terrivelmente com essa luta. As maiores soluções para o problema do mal pressupõe o livre arbítrio e a inferioridade (ou ausência) de espírito nos animais, duas pressuposições que fazem pouco sentido fora da tradição cristã, enquanto o problema do mal pode ser pressentido e formulado por qualquer indivíduo, independentemente de sua religiosidade.

Uma implicação psicológica e cultural da aparente impossibilidade de solução do problema do mal -- ou da consequência geralmente extraída de que não existe uma razão para a existência humana -- é o sentimento de indignação e espanto que muitos experimentam quando são testemunhas de tragédias, sejam de pequena ou larga escala. Quando um volume gigantesco de água surge no horizonte, quando um indivíduo decide matar quantas pessoas puder para depois cometer suicídio, quando uma criança nasce com um defeito cerebral, em ocasiões como essas a existência parece uma piada de mau gosto. Esse sentimento também pode ser observado em relação à civilização e suas catástrofes. Diante das guerras, acidentes e da violência constante muitos se perguntam "como é possível que isso esteja acontecendo?" ou "quem é o culpado?". Os acontecimentos que fazem parte do conjunto daquilo que popularmente se chama de mal quase sempre chocam, são motivo de discussão, são assunto durante muito tempo. A ocorrência constante desse "mal", somada à dificuldades filosóficas como a mencionada, fazem com que a interpretação do universo como um grande caos (ou como uma razão sem predileção pela humanidade) seja tomada mais frequentemente como um pessimismo, ou como um estado a ser amenizado pelos esforços humanos.

Mas, com um pouco de abstração, é muito estranho que a existência do bem não seja igualmente tomada como um problema filosófico. É curioso que uma circunstância reconhecida como um bem precise ser absolutamente extraordinária para ter a atenção que um mal relativamente comum receberia. Creio que nosso hábito com a ideia de civilização, somado à nossa educação que enraíza mais profundamente as noções clássicas de razão, nos leva a uma naturalização da expectativa de que o bem aconteça, de que o bem seja a regra. Ora, é evidente que a expectativa de previsão do mal e a expectativa de previsão do bem são equivalentes, em todo caso se trata da capacidade humana de prever e organizar os eventos do mundo, e quaisquer limitações nessa capacidade refletem tanto sobre a previsibilidade do mal quanto sobre a previsibilidade do bem. Se aquilo que conhecemos sobre o universo não nos informa nenhuma finalidade para nossa existência, o bem é tão estranho quanto o mal. Se a tradição teológica cristã teve que enfrentar o problema do mal, as interpretações materialistas do universo devem enfrentar o problema inverso.

Considere por um momento seu lugar diante do universo. Você, eu e a Terra somos menos que nada, poeira cósmica à deriva no nada, assim como tudo mais que existe. Como é possível que você, com seu corpo instável e que facilmente sofre ou até perece, em uma vida social na qual alguém facilmente mata ou morre, em um planeta no qual qualquer alteração maior extinguiria a maioria dos seres vivos, como é possível que nós aqui estejamos vivos e ainda tenhamos tempo e tranquilidade para olhar para a tela de um computador ou de um celular? Como é possível que tais aparelhos possam existir ? Como é possível que, aleatoriamente, todas as condições para esses e tantos outros de nossos caprichos estejam dadas? A resposta de que isso tudo prova que o universo é uma obra é entediante porque esconde uma verdade mais profunda: O problema do bem e o problema do mal são equivalentes e ambos não têm solução.

Uma das explicações mais comuns para o surgimento das religiões é a ideia de que os primeiros seres humanos, diante do desconhecido e daquilo que não se controlava, tiveram que projetar suas razões no universo, como figuras protetoras a serem louvadas ou figuras malignas que eram racionais, diferentemente do "mal" inerente à natureza. Disso se extrai frequentemente que medo e religião são intrinsecamente associados. É uma conclusão enganosa se considerarmos que o bem tem tantas razões para provocar espanto quanto o mal. Rituais como as festas de agradecimento aos deuses contemplavam o lado positivo da aleatoriedade, talvez melhor que as interpretações científicas contemporâneas baseadas nos avanços da biologia e da neurociência. Digo isso porque o aspecto misterioso da existência nunca foi solucionado. A interpretação de que aquele estado de desconhecimento era uma situação primitiva, da qual hoje estamos livres em alguma medida, é bastante enviesada. Nós avançamos muito em termos de conhecimentos particulares e de técnicas de manipulação, mas o estado essencial de desconhecimento não é afetado por tais avanços. Poderíamos conhecer o dobro do que temos confirmado hoje, e você ainda não teria certeza se está acordado(a) ou dormindo, se vai viver por mais cinco minutos ou por mais cinco décadas.

As expectativas de que alimentos estejam disponíveis, de que o corpo não seja ferido, etc têm bases fisiológicas, diriam alguns. Mas veja que desejar algo e ter a expectativa de que tal coisa seja possível são coisas diferentes. Além disso, nada obrigou a existência a nos dar essa base fisiológica que busca sua preservação e que é capaz de produzir prazer. Parece-me que as complicações filosóficas e pragmáticas nesse contexto surgem mais da expectativa do que do desejo, e isso se aplicaria também à interpretação de que existe um Deus ou uma razão suprema do universo com predileção por nós -- esperar coisas específicas de Deus seria muita pretensão. Algo semelhante parece razoável em relação à civilização. Se a maldade provoca escândalo, é porque ela não é esperada, e se a bondade dificilmente chama atenção, é porque sua expectativa é naturalizada. De um ponto de vista existencial nenhuma dessas expectativas é justificável. A causa maior do desespero é também a causa maior da alegria. Embora o uso de expectativas sejam importante de um ponto de vista pragmático, é notável que pessoas frequentemente baseiam suas expectativas em outras mais profundas acerca da existência, o que provoca muitos enganos.

A ideia de que a existência é intrinsecamente absurda, no sentido de que nossa razão não está em diálogo com outra maior, não é necessariamente um pessimismo, posto que o bem é tão absurdo quanto o mal. Disso decorre que a tentativa de amenizar esse aspecto absurdo não é necessariamente uma busca pelo bem ou algo do gênero, inclusive porque não sabemos o que será fixado com nossos esforços de organização e avanço técnico. Se as maiores tragédias dependem de um destino cruel muito maior que nós, as maiores comédias também devem ser obras do acaso, ou de uma razão oculta incompreensível para nós.

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Notas: 

*1: Note que existe uma grande diferença entre o conceito de liberdade, mais geral, e o conceito de livre-arbítrio, que é bem específico de algumas tradições monoteístas e expressa a possibilidade de contraste entre o pĺano divino e o plano de cada indivíduo, mais que a possibilidade de escolha em relação ao meio material. Quanto à consciência dos animais, a não ser que acreditemos que eles são criados por Deus para nosso uso, não existe nenhuma razão para acreditarmos que um animal não sofre nem sente alegria, ou que tais estados são desqualificados se comparados aos nossos.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Evolução pela Razão

Quando se trata da relação entre as instituições públicas e a educação, as discussões quase sempre giram em torno do acesso à educação. Discute-se se o estado deve ampliar ou reduzir seus investimentos nestas e naquelas instituições, discute-se se a profissão dos professores é valorizada, tanto no sentido financeiro quanto no cultural, etc. Mas existe outro aspecto igualmente importante da questão que é muito frequentemente ignorado, em alguns casos propositalmente. Além da questão de como e em quais condições o conhecimento é transmitido e disponibilizado, existe a questão de como e em quais condições o conhecimento é formulado. Assumir de antemão que aquilo que está registrado nos materiais didáticos ou que é trabalhado de forma especializada nas universidades é a verdade, a convenção mais útil, ou mesmo informação relevante simplesmente porque existe um cânone de especialistas transmitindo e reforçando os mesmos métodos e verdades é ingenuidade. Assume-se com muita facilidade que a educação básica se encontra em estado precário, que um indivíduo pode passar pelo processo de formação básica sem construir de fato metade das habilidades que se espera de alguém que passa por tantos anos de disciplina escolar. Quando se trata do ensino superior, porém, a proposição de que alguém tem doutorado mas não tem um grau de conhecimento ou sabedoria que justifique todo o esforço do processo costuma causar escândalo. Todos entendem que alguém pode passar pelo ensino médio sem saber, por exemplo, o nível de matemática exigido durante o ensino fundamental, que uma instituição educacional pode se corromper e se tornar um espaço no qual todos os envolvidos desperdiçam tempo e esforço, seja em aulas que se tornam inúteis ou em avaliações que se tornam hipócritas. Com isso em mente, deveria ser evidente que as instituições de ensino superior são sujeitas ao mesmo risco de corrupção. Sendo essas instituições a fonte e o depósito daquilo que se certifica como racional, até como verdade, é de fato um grande perigo assumir de antemão que nossos especialistas e tradições merecem alguma autoridade sobre o conhecimento.

A esmagadora maioria dos trabalhos e debates acadêmicos atuais não chega e não poderia chegar ao público*¹. A coisa mais próxima de um contato do público com a produção acadêmica ocorre na forma de notícias vagas comunicadas no formato " cientistas afirmam que x", ou na forma de palestras que divertem alguns indivíduos, que contemplam e aplaudem as banalidades ditas pelo filósofo x ou economista y. A justificativa mais comum para esse cenário é a de que a universidade é e deve ser uma " torre de marfim ", um espaço no qual ideias e conhecimentos do mais alto e inacessível nível são trabalhados, um nível que não pode ser trabalhado fora da universidade porque a sociedade não é livre o bastante, ou porque as pessoas de fora não são cultas o bastante. O problema dessa mentalidade é que ela bloqueia toda espécie de crítica às possíveis limitações na forma de se produzir conhecimento no meio universitário, porque ela postula e reforça circularmente que existe uma qualidade ou virtude comum aos grandes especialistas acadêmicos que é necessariamente ausente no público externo. Se os grandes especialistas trocam artigos e elogios entre eles mesmos em uma linguagem que ninguém mais pode compreender (nem mesmo grandes especialistas de outras áreas), isso deve ser porque a dedicação dos especialistas àqueles conhecimentos refinadíssimos é tão nobre e tão difícil que pouquíssimas pessoas poderiam ter o espírito virtuoso o bastante para essa missão cristã. Uma missão cristã de tal magnitude deveria estar salvando nossas almas, apaziguando conflitos políticos, curando o câncer, propagando o espírito filosófico, etc. Se isso não acontece, e ainda notamos que no meio acadêmico cada um disputa por conta própria para ter um nome famoso ou associado a alguma patente lucrativa, que mesmo os grupos que se formam são grupos de interesse no sentido mais mundano e, talvez, mesquinho, questionar essa estrutura é uma questão de dignidade, posto que as práticas intelectuais e políticas consideradas adequadas dentro desse meio talvez sejam elas mesmas transgressões de diversos princípios morais e dos ideais que supostamente defendem.

Qual é o propósito de uma universidade? Ainda antes, qual é o propósito do conhecimento? Porque alguém se empenharia em uma construção de conhecimento? Sabemos que informações são úteis, que entender isto ou aquilo em particular permite que um sujeito organize sua vida. Mas acontece que a dedicação ao conhecimento implica na busca, criação e comunicação de noções que fogem aos nossos interesses imediatos. Por exemplo, é muito fácil convencer alguém que mora perto de um rio de que é importante sabermos se aquele rio não está poluído. Mas convencer o mesmo indivíduo a estudar como um rio se torna poluído, como impedir que isso aconteça ou quantos rios serão poluídos no futuro volta nossa razão para um interesse que não é imediato, porque nós em particular (e boa parte de nossos descendentes) estaremos mortos antes desse tipo de previsão se tornar imediatamente relevante. Convencer um indivíduo de que o aquecimento global é relevante não é tão simples quanto convencê-lo de que a temperatura de amanhã, em particular, é relevante. A construção do conhecimento conduz um sujeito à pretensão de entender isto ou aquilo em geral, universalmente, na forma de teorias ou conceitos filosóficos, e sob interesses em grande medida abstratos, interesses em previsões válidas a longo prazo, no entendimento da constituição daquilo que existe, etc. A superstição de que existem buscas desinteressadas pelo conhecimento não é inteiramente infundada, se trata de um exagero, mas não de uma falsidade. Acontece realmente que os interesses de quem busca o conhecimento ou a sabedoria são mais complicados e idealizados, e não necessariamente se relacionam bem com o mundo concreto, tanto menos com os mecanismos da sociedade. Um indivíduo pode passar sua vida buscando entender algo, e até chegar à conclusão de que o compreendeu, sem obter com isso nenhuma recompensa por parte da sociedade, sem viver para saber quais frutos seu trabalho cultivou. E, mesmo assim, muitos buscaram precisamente esse tipo de vida, uma vida para a arte, e mesmo entre aqueles que não veem e não querem ver nada além dos interesses imediatos, é comum que exista uma admiração pelos espíritos "profundos". É precisamente essa admiração que leva muitos indivíduos mais, digamos, diretos, ao meio acadêmico. A proporção entre pessoas interessadas no conhecimento e pessoas interessadas apenas em informações é igual dentro e fora da academia, mas dentro da academia um indivíduo pode se beneficiar da fantasia e da fama de ser "profundo". É também pela mesma admiração que se sustenta a confiança cega do "senso comum" naquilo que se produz dentro da academia.

Quando se fala em evolução das espécies, geralmente se trata estritamente de biologia, ou de uma interpretação biológica de algum aspecto da cultura. Mas se existe tal coisa como a cultura, se podemos formular, comunicar e concretizar ideias, se podemos produzir e cultivar afetos, se podemos planejar e manipular experiências a evolução da espécie humana não depende estritamente de mutações genéticas aleatórias e da resposta do ambiente a tais mutações. A humanidade pode evoluir cultivando obras e ideias, cultivando um legado para que as próximas gerações possam partir de mais possibilidades que nós. Essa é minha explicação para a admiração ao cultivo do conhecimento. A admiração aos artistas também pode ser explicada de forma semelhante, tanto no campo da arte mais focada no entretenimento quanto no campo da arte que se pretende contemplativa ou transformadora. Em todos esses casos se tratam de esforços que aumentam a quantidade e qualidade de livros, filmes, ideias, experiências, teorias, enfim, que aumentam o legado da humanidade. Não sei se existe algum progresso na civilização, no sentido clássico de progresso, mas parece evidente que o número de possibilidades, de obras e conhecimentos dos quais alguém pode partir cresce com os esforços coletivos daqueles que se dedicam à arte. Se estou certo, se o sentido do conhecimento é evoluir a humanidade, isso coloca uma série de questões morais sobre as instituições que supostamente se encarregam dessa tarefa e coordenam as demais esferas da sociedade nesse aspecto.  

Ninguém sabe realmente se a dedicação a projetos abstratos ou até póstumos é no fim das contas algo valioso. É possível que toda a aparência de progresso na ciência, nos direitos humanos, em todas as palavras e fórmulas que mudam e se complexificam ao longo do tempo sejam apenas desenvolvimentos circulares, nos quais as coisas mudam de forma, mas não de essência, no qual a própria ilusão de que algo muda em relação ao passado faz parte de um processo cíclico. Também é possível que esses esforços mais complicados mudem de fato a realidade, mas para pior, em um processo de destruição do mundo pela razão pretensiosa e cega. O cultivo do conhecimento e da arte envolve uma fé, a fé de que existe algo intrinsecamente nobre e valoroso nos esforços que fazem a humanidade ao menos parecer algo profundo, distinto da visão traçada pelo materialismo mais rigoroso. Sendo assim, não se pode impor que alguém sustente essa fé no conhecimento dentro de uma universidade, tanto menos fora. Um indivíduo que se dedica a apenas obter informações não é imoral nem impassível de ser admirado por não ver no estudo mais do que pode ser de fato visto, testado e comprovado. Informações são úteis, e ater-se a essa utilidade é apenas racional. Entretanto, é difícil encontrar um indivíduo desse tipo que é consciente de que ler um certo volume de obras escritas pelo autor x não equivale a ter ou construir conhecimento sobre o assunto abordado pelo mesmo. Historiadores da filosofia acreditam que são filósofos, ou pelo menos o máximo da filosofia possível entre nós meros mortais. Revisores de artigos científicos e formuladores de experimentos que servem apenas como exercícios didáticos acreditam que são cientistas no mesmo sentido que Galileu ou Newton. Como a fama de ser profundo é algo racionalmente útil, indivíduos que apenas acumulam informações particulares costumam almejar também a categoria daqueles que buscam o universal. É nesse ponto que o próprio conceito de universidade ( ou academia) passa a ser  corrompido.

A prática de se buscar o desenvolvimento da arte ou do conhecimento enquanto objetivo principal é diferente da prática de se buscar a obtenção de informações, a pesquisa no sentido acadêmico vigente, como objetivo primeiro. No primeiro caso, como discutido antes, o indivíduo faz um esforço que tende a não se relacionar bem com o mundo atual, porque é em diversos sentidos extemporâneo*³. No segundo caso, o indivíduo faz um esforço pela sua carreira acadêmica, por benefícios práticos bastante observáveis que geram vínculos e obrigações também bastante observáveis. Aqueles que são vistos como loucos por seus contemporâneos são justamente por isso liberados do peso da normalidade, de uma série de expectativas que acompanham as recompensas da sociedade. Em contrapartida, um doutor não pode mudar sua linha de pesquisa do dia para a noite se quiser conservar seu renome, mesmo que seu espírito queira a mudança. Como antes dito, não se pode exigir de alguém a fé no conhecimento ou na sabedoria, mas uma vez que os diferentes estilos de carreira intelectual e artística são confundidos, em geral propositalmente, ambos os lados são corrompidos, e essa corrupção tende a prejudicar mais aqueles que sustentam a fé na evolução da humanidade. Acontece que o meio acadêmico é mantido por regras institucionais e por uma hierarquia que, em última instância, dependem de relações de autoridade em relação ao conhecimento. Um especialista não seria nada de especial se não tivesse o monopólio de seu assunto e a autoridade de censurar aqueles que, segundo sua informação e juízo, não são treinados como ele. Assim, aqueles que buscaram informações, que sabem se Kant disse isso ou aquilo na página x do livro y ou que assistiram centenas de comunicações científicas, esses indivíduos passam a assumir a autoridade sobre o conhecimento no sentido mais profundo, que eles não cultivam e frequentemente sequer entendem. Não existem cursos de história da filosofia ou de técnicas de se trabalhar com os conteúdos da física, mas simplesmente cursos de filosofia e cursos de física, e é de interesse imediato dos especialistas encarregados que os procedimentos que são exigidos no meio acadêmico sejam chamados de filosofia ou de física, e assim o público em geral, dentro e fora das universidades é levado a confundir as buscas mais particulares e imediatamente úteis com o salto de fé que existe no avanço do legado da humanidade. Essa confusão prejudica o público, os especialistas, aqueles que buscam realmente alguma sabedoria, o legado da humanidade e o funcionamento da academia.

A partir do ponto em que meras informações são tratadas como conhecimentos, e sob a autoridade de especialistas que perpetuam essa confusão, a frágil fé daqueles que talvez busquem um conhecimento ou arte no sentido profundo mas que ainda não se decidiram firmemente sobre essas questões é massacrada por um meio que afirma que ler Kant é ser como Kant, que pune o iniciante que se atreve a tentar ser original com provas, seminários, críticas maldosas e tudo mais que na rotina acadêmica se chama de "formação". O número de filósofos, cientistas e artistas tende a ser proporcionalmente pequeno por uma série de fatores. O fato de que tantos indivíduos passam pelo meio acadêmico sem a consciência das distinções que existem entre filosofia e história da filosofia, entre ciência e a disciplina em técnicas científicas, essa falta proposital de distinção tende a diminuir ainda mais esse pequeno número de possíveis criadores, especialmente porque, por exemplo, a ideia de que um leitor e comentador de filosofia não é diferente de um Kant ou um Descartes em tipo de trabalho, mas em grau de sucesso, essa ideia nos conduz à conclusão de que o leitor e comentador é intrinsecamente inferior aos "gênios". Essa conclusão humilhante e incorreta (por comparar pelos mesmos padrões práticas qualitativamente distintas) cria nos acadêmicos formados uma tendência ao autoritarismo, baseado na descrença na possibilidade de seus alunos e colegas serem filósofos, cientistas e artistas "geniais" como os clássicos. Afinal, o historiador acadêmico observa durante muitos anos que as obras normais no meio universitário não realizam nada daquilo que as obras clássicas realizaram, mas não admite que estas e aquelas obras são de ofícios muito distintos, porque precisa desse engano. Uma vez que o sujeito recebe uma autoridade que não merece realmente, que não corresponde àquilo de fato cultivou, resta ao indivíduo manter sua imagem não com as atitudes correspondentes, que exigiriam um conteúdo que não foi desenvolvido, mas forçando o meio ao seu redor a encenar, a fingir que o doutor encarregado é de fato um grande sábio. Os espaços dedicados ao avanço do conhecimento são poucos, e aqueles que tem a fé na evolução humana acabam convivendo durante muito tempo com aqueles que sustentam essa grande encenação que é o meio acadêmico. Isso é um fator a mais para a desmotivação de um tipo de trabalho que, em geral, dificilmente se recompensa em vida -- e em que mais alguém pode se basear, dadas as evidências? Além de serem reprimidos diretamente por autoridades acadêmicas, de muito raramente serem compreendidos ou apreciados, aqueles que se dedicam ao conhecimento lidam constantemente com o fato de que, do ponto de vista de uma busca mais profunda pela verdade ou pela criação de obras imortais, as figuras mais famosas e cultuadas pelo público são verdadeiros impostores que degeneram ativamente a humanidade com uma ideia decadente de razão -- e outra ainda pior de arte.

Uma vez que os indivíduos com a fé na construção do conhecimento se reduzem em número, o legado da humanidade reduz seu movimento, sua dinâmica se torna uma letargia, e essa sensação de estagnação na razão e na arte contamina com um profundo sentimento de tédio e futilidade muitas outras esferas da vida humana. Sem esse objetivo de evolução, Deus pode apenas permanecer morto, enterrado na supervalorização de certos indivíduos e obras em detrimento daqueles que estão vivos e próximos de nós, e de nós mesmos. O falso sinônimo entre informação e sabedoria também pesa sobre aqueles que o perpetuam mais ativamente. É comum que especialistas, especialmente doutores, acreditem realmente que trabalham pelo conhecimento, pela arte, pela democracia, enfim, que o benefício do trabalho com informações particulares não é também particular. Essa crença, essa fé confusa leva um indivíduo a contradições como ministrar uma longa aula expositiva destinada a transmitir conteúdos como se essa prática fosse um debate, algum movimento crítico e conjunto de ideias universais e profundas. Isso muitas vezes resulta em um profundo e confuso tédio no ambiente da sala de aula, a até mesmo em determinados congressos. Esse tédio, que nasce e se intensifica com o cinismo que ignora os cochilos, os celulares ligados, e as mentes distantes... o lento porém constante colapso de uma mentira não é visto pelos especialistas como algo que eles mesmos causam com suas promessas não cumpridas, com seus debates que sequer são diálogos. Então, a mente do indivíduo precisa formular fantasias nas quais sua postura é verdadeira e coerente, e o erro parte de outras fontes -- um processo de narcisismo doente provocado pela ideia fortíssima de identidade na qual boa parte do meio acadêmico se apoia. Isso resulta nos mais diversos complexos e neuroses, dado que o indivíduo adapta seus cursos ou suas falas tentando responder aos fantasmas que formula, enquanto um engano inicialmente simples e casual se torna cada vez mais complexo e coberto por uma espiral de razões e experiências. Além disso, o abismo entre a postura que se toma no meio universitário, supostamente profunda, e a postura que se toma nas demais esferas da vida pública e privada, que não poderiam ser realmente afetadas por títulos e palavras tão superficiais, gera também uma série de contradições e feridas. Em geral, apenas o acadêmico que é de fato desonesto e leviano consegue sustentar essa farsa sem sentir o peso da verdade ignorada. Aqueles que acabam se especializando mais por ignorância do que por falsidade, que acabam acreditando que o pobre meio acadêmico é a "torre de marfim", esses indivíduos sofrem com as próprias ilusões, talvez tanto quanto seus aprendizes.

O conhecimento e a sabedoria não são objetos e não podem ser oferecidos por um processo previsível de formação como aqueles oferecidos nas universidades ou nas escolas. Um curso tem a função de oferecer informações e de exercitar habilidades, não de desenvolver a autonomia, a razão, o espírito, etc. As promessas mais amplas e profundas geralmente associadas à educação podem servir como discursos motivacionais, mas é de princípio absurdo assumir que um processo burocratizado e impessoal de formação pode desenvolver sabedoria, ou mesmo conhecimento. Uma formação ensina um sujeito a utilizar técnicas, interpretar resultados técnicos, analisar textos, a administrar ou executar projetos, a se comportar dentro dos padrões exigidos pela sociedade, enfim, é um processo que torna o indivíduo útil, enquanto objeto. A aversão à ideia das escolas e universidades serem processos mecanizados e praticamente desprovidos de espírito é simplesmente um vestígio da confusão já discutida entre a busca pelo conhecimento, pela verdade, pela sabedoria e a busca por informações imediatamente úteis, que é aquilo que de fato ocorre em massa em todas as instituições de ensino da humanidade. Observe como as coisas procedem e negue isto se for capaz -- ninguém encontra ou cria nada de profundo sem se dedicar aos seus próprios métodos, sem assumir todos os riscos da inutilidade social a curto prazo. É muito comum a opinião de que a educação deve ser melhorada com um volume maior de conteúdos a serem estudados, sob um tempo também maior. Na realidade, as instituições de ensino serviriam a humanidade melhor se tanto a disciplina escolar quanto os cursos de ensino superior durassem muito menos, mas com muito mais qualidade, isto é, com turmas menores, com alunos mais dispostos por terem um volume menor de aulas, com professores mais bem pagos e responsáveis por menos turmas, etc. No ensino superior, alguém que se dedica de fato ao conhecimento não precisa de mais de um ano de curso. Passado esse período, o aluno se torna intelectualmente desinteressado no ritmo dos mestres acadêmicos, e o vínculo forçado prejudica ambos. No caso daqueles que estudam superficialmente apenas aquilo que é útil, que apenas querem saber e falar sobre a visão de um autor sobre um assunto... quanto tempo alguém realmente precisa para isso? Todos que frequentam a academia sabem que a grande maioria dos trabalhos, tanto de alunos quanto de professores é feita de última hora, e que todos sabem fazer um estudo de seis horas parecer um estudo de seis meses. O preço da hipocrisia e do orgulho infantil daqueles que negam esses traços completamente óbvios da dinâmica acadêmica é, a longo prazo, uma série de processos que os prejudicam tanto pragmaticamente como moralmente. Por exemplo, os diversos cortes de verbas e censuras (e.g "escola sem partido") que afetam a educação são formulados por uma elite política imoral, mas são apoiados por pessoas que observam o fato de que existe um grande desperdício envolvido com as instituições de educação, e que mesmo os poucos resultados atingidos às vezes são prejudiciais aos estudantes. A percepção dessas pessoas é confusa, mas podemos realmente culpá-las por serem confusas diante de tantas falsidades?
Sem nossas próprias corrupções, essas medidas corruptas teriam alguma chance?

As tarefas de formação básica atualmente atribuídas à escola também seriam melhor desempenhadas de uma maneira não institucional. Muitos percebem o fato de que poucos alunos se formam no ensino médio sendo mais que analfabetos funcionais, quando muito, e isso torna comum a opinião de que os alunos precisam de mais aulas de português. Mas qual seria o efeito desse maior volume de aulas se preservamos uma cultura na qual a maioria da população não lê sequer um livro por mês e nunca escreveu nada próprio (redações exigidas não contam!)? O problema tem sua raiz em um traço de nossa cultura, para muito além do ambiente escolar, e um aluno aprenderia melhor a escrever e interpretar vivendo em uma sociedade na qual os adultos não são tão fracos nesse aspecto. A escola mesma deveria oferecer o mínimo para o sujeito desenvolver suas habilidades vivendo, trabalhando, criando, enfim, se desenvolver pela experiência em um processo de autodescoberta. Pense na quantidade de tempo que alguém desperdiça com estudos inúteis porque precisa de um diploma, um pedaço de papel feito para agradar um futuro chefe em um emprego no qual se usa o equivalente a menos de seis meses de instrução, ou então em todo o tempo que alguém gasta suportando o ego dos professores universitários, ou de colegas que são futuros imbecis... a comparação entre o tempo que alguém investe naquilo que de fato lhe importa com o tempo que um curso qualquer exige mostra um proporção assustadora. Isso se torna ainda pior quando consideramos que uma grande porção daquilo que se reforça como conhecimento nas universidades está sob a autoridade de pessoas que estagnam o meio e que tratam rodeios e aleatoriedades sobre o conceito x na obra y como se fossem verdades profundas sobre o mundo. O tempo gasto com uma formação completa rende muito pouco, e mesmo se rendesse integralmente, mesmo se cada hora de aula registrasse no aluno cada palavra do professor , mesmo assim boa parte dessas informações seriam completamente inúteis para além do teatro acadêmico, afinal a utilidade a curto prazo geralmente tem a desvantagem de ser também de curto alcance, enquanto as verdades profundas permanecem valorosas ao longo da história e afetam todos os âmbitos da vida humana. Pense sobre qualquer doutor com a pergunta "o que esse sujeito sabe fazer" em vez da pergunta "quantos livros esse sujeito já leu" e você verá que o período que de fato desenvolve habilidades é muito menor que os potencialmente trinta anos de estudos que uma formação completa envolve.

Ninguém conhece realmente o destino da humanidade, então é claro que a evolução do legado da humanidade depende de um "salto de fé" por parte de cada indivíduo (ou ao menos de sua  consciência de não estar disposto a saltar sobre o abismo). As encenações que se passam nas instituições de ensino são apenas exercícios, desenvolvem habilidades e técnicas, mas não a razão, a sabedoria, a arte, etc, Um indivíduo que cultiva suas próprias obras medíocres ou até mesmo terríveis faz mais para movimentar o legado da humanidade, para estender uma corda sobre o abismo, que aqueles que apenas repetem as palavras e fórmulas dos outros, porque assim como a evolução no sentido biológico depende de mutações aleatórias e de diversos genótipos recusados pelo ambiente para resultar em novas espécies, a evolução da cultura depende de inúmeros testes e fracassos para que obras imortais possam surgir -- as "pesquisas" seguras dos acadêmicos, que coletam informações particulares dentro de um conjunto no qual todos os resultados já são esperados, esses procedimentos técnicos reforçam o que já é conhecido, e nada mais, enquanto os erros dos tolos que não se adequam no mecanismo social desbravam aos poucos o desconhecido e revelam novas possibilidades. A arte de repetir e transmitir não deve ser julgada como inferior ou menos importante que as loucuras proféticas que levam alguém a cair no abismo do desconhecido -- buscar a utilidade imediata e mundana é mais racional que buscar a verdade. Mas a confusão hipócrita entre esses âmbitos sobrecarrega nossas instituições de expectativas impossíveis e de falsas promessas, uma soma que paralisa a evolução das obras e ideias humanas.

O mérito de um indivíduo que se envolve com a arte, com a filosofia ou com a ciência depende mais do quanto ele é consciente e claro em relação a essas distinções do que propriamente do conteúdo que produz. Não se pode dizer que alguém que passou a vida inteira pesquisando de fato, se arriscando no desconhecido, mas que não descobriu nada no fim das contas não foi um verdadeiro pesquisador, assim como não se pode afirmar que um sujeito com inúmeros livros e artigos publicados apenas sobre história da filosofia foi um verdadeiro filósofo. As normas institucionais que tentam forças esses juízos com critérios burocráticos de qualificação, que determinam o que é "um trabalho sério" fazem muito mais para piorar do que para melhorar o cenário de letargia e ineficiência do meio acadêmico. Os tipos com os quais trabalho aqui (filósofo verdadeiro, historiador da filosofia, etc.) são apenas tipos abstratos destinados a mostrar alguns traços da cultura. Na realidade, a maioria dos indivíduos está em um meio termo entre esses tipos, e o que geralmente faz a diferença no resultado final do indivíduo é o grau e tipo de pressão social que ele sofre. Os critérios burocráticos pelos quais trabalhos acadêmicos são qualificados ou desqualificados acabam sendo uma forte barreira para a experimentação (leia-se, para os erros) dos quais o avanço do conhecimento depende. As normas acadêmicas deveriam barrar e julgar moralmente apenas práticas claramente criminosas -- que, a propósito, deveriam envolver os experimentos irresponsáveis que são feitos com animais, e sob um critério mais rígido de responsabilidade. De resto, um avaliador acadêmico não tem autoridade nenhuma para julgar quais esforços são e não são sérios, apenas o tempo faz esse juízo. Mas isso cria uma dificuldade: Trabalhos acadêmicos são financiados, e sem critérios rígidos de exclusão, não haveria capital o suficiente para financiar todos os trabalhos. Eis um forte indicativo de que viver da arte e viver para arte são mentalidades que são como água e óleo, que podem habitar o mesmo recipiente mas que não se dissolvem uma na outra em hipótese alguma. A própria existência de um mecanismo de financiamento de certos trabalhos conduz esses esforços em uma direção interesseira, o que significa que um sujeito, apesar de poder ser pago para esse tipo de trabalho e ser ao mesmo tempo um verdadeiro artista, filósofo ou cientista, não pode mostrar sua essência enquanto faz esse tipo de trabalho. Se o fizesse, teria que criticar a própria estrutura que o sustenta. Esse mecanismo não pode se tornar desinteressado ou comprometido com a evolução da humanidade, posto que é uma expressão clara da racionalidade pragmática.

É muito comum hoje um discurso de crítica da racionalidade, que faz um elogio do corpo e dos afetos como as verdadeiras formas de libertação e evolução da humanidade. Esse engano básico se deve exatamente ao fato de que as instituições encarregadas do que se chama de razão foram e são horríveis, sobrecarregadas de falsidades, repletas de corrupção e dirigidas por almas perdidas. A liberdade é por essência racional, é uma ideia acima de tudo, e não é algo binário que se tem absolutamente ou simplesmente não, mas algo que pode aumentar ou diminuir em diversos graus. A ideia de liberdade se torna mais presente ou ausente dependendo de certos fatores. Um fator determinante para essa tendência é precisamente a expansão e refinamento do legado de obras e conhecimentos da humanidade. Se a cultura se encontra em um estado de expansão, no qual experimentos são sempre bem-vindos, a ideia de liberdade se torna mais convincente e passa a ser uma sensação, até um espírito de época. Em contrapartida, em períodos de estagnação chega a ser difícil argumentar que seres humanos são mais que um conjunto reações químicas. Esse processo de expansão ou estagnação é dado pela razão, não pelos afetos. As posturas irracionalistas e solipsistas são muito mais claramente associadas à tirania do que à liberdade. Um indivíduo que toma seus afetos com verdades da natureza, como impulsos que precisam ser seguidos simplesmente porque são impulsos naturais, é um tirano, sobre si mesmo e sobre os outros, porque não admite o elemento artificial e racional envolvido em suas ações, isto é, seu poder de escolher a partir de pensamentos, que podem ser trocados com outros. A "razão dominadora" não pode ser desfeita com devaneios e expressões livres do corpo -- especialmente não quando nossos corpos são educados por instituições culturais que são verdadeiras prisões. A "dominação" é uma forma corrupta e impessoalizada de poder, que pode ser colocada de lado apenas com uma forma nobre de poder, com uma razão mais vívida, que não pode ser construída no culto eterno ao passado e aos clássicos, mas sim com a criação dos futuros clássicos.  

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Notas:

*1: O formato exigido e os critérios de qualidade colocados sobre as publicações acadêmicas garantem que trabalhos acadêmicos sejam sempre destinados aos próprios especialistas em questão. São trabalhos úteis para especialistas, compilados de informações relevantes no meio. A distância que há entre o público em geral e esses trabalhos não se deve a uma ignorância do público ou a uma nobreza dos especialistas, mas se trata apenas de uma questão de pertinência.

*2: Cito aqui a distinção de Schopenhauer entre "viver para a arte" e "viver da arte". As perspectivas daqueles que buscam lucrar com suas obras como objetivo primário são muito diferentes daquelas de quem pretende refinar e expandir o legado da humanidade com um esforço que se vê como nobre e importante universalmente. O tempo de vida de cada um é limitado, e o tempo de estudo e criação é ainda mais limitado. Portanto, cada segundo gasto com artigos medíocres faz uma exclusão do processo de formação própria necessário para a criação de obras geniais.

*3: "Extemporâneo" se refere a algo que ao mesmo tempo pode antecipar o futuro e recorrer a algo perdido na história, a esforços que são muito mais indomáveis que "seguir contra a corrente". Em outras palavras, falo de ideias essenciais e profundas que não são apagadas pelo tempo, que foram construídas pelos clássicos e que certamente serão reconstruídas pelos futuros clássicos, sob outras formas.  

domingo, 18 de setembro de 2016

Dignidade

Existem muitas teorias e doutrinas sobre o comportamento humano ideal, sobre o que significam bem e mal, sobre como é uma vida que merece ser vivida. Por uma afinidade profunda, por uma questão de gosto ou pela influência alheia pessoas se organizam em grupos que seguem esta ou aquela doutrina moral, que buscam um ou outro estilo de vida, que sustentam alguma causa política. As doutrinas, estilos e demandas políticas que orientam tais grupos são passíveis de definição, ideias podem fundamentar categorias como "feminista", "cristão", "punk", etc. A subjetividade, entretanto, não pode ser definida seriamente nem por observadores, nem pelo próprio indivíduo, posto que aquele que observa um indivíduo não acessa sua consciência por completo, e que mesmo o indivíduo pensando sobre si não acessa a parte inconsciente do seu ser. As transformações constantes (e muito frequentemente inesperadas) da subjetividade mostram a trivialidade de qualquer definição rigorosa do ser, tanto no indivíduo quanto na espécie. Os ideais, as promessas que trocamos são racionais, se sustentam em argumentos, definições e categorias, essa é a natureza da linguagem. Mas as pulsões que sustentam nossas dinâmicas sociais são "cristãs", "de esquerda", "nomes, adjetivos, razões" apenas a posteriori, os argumentos da doutrina, os traços do estilo e os motivos da luta surgem depois de um grupo estar definido e ter atingido algum resultado -- as razões não geram o movimento, apenas formam uma narrativa. E, mesmo sendo assim, o que não fazemos em nome de uma palavrinha? Como se os conceitos e as categorias fossem os próprios fenômenos e indivíduos, não é raro observar alguém disposto a perseguir em nome de uma libertação, a omitir e mentir por uma ideia de esclarecimento. Uma noção vulgar de verdade faz da sociedade um inferno de salvadores.

No palco da sociedade, razões são apresentadas como se fossem causas, são tratadas como se fossem aquilo que forma um grupo que por sua vez gera uma demanda, uma forma de narrar que omite os casos nos quais essa sequência é inversa e as razões são apenas adornos. Assim nos parece uma vez que o processo de adesão como um todo é assimilado em uma narrativa, que marca a memória mais intensamente que os impulsos e sentimentos originais, que não podem ser repetidos e reforçados tão facilmente quanto as palavras. Mas a seriedade diante dessas ilusões (provavelmente uma atitude necessária para a existência da sociedade) produz falsidades uma vez que cada grupo afirma seus axiomas, que cada indivíduo fixa em sua identidade tais e tais sequências de palavras sem que a natureza desse teatro seja lembrada com frequência suficiente. O movimento artístico de nossas ilusões, dessa capacidade humana de embaralhar, de refazer o mundo na imaginação e de agir de acordo com as ideias resultantes, essa coisa fascinante que chamamos de cultura na espécie e de identidade no indivíduo se torna violenta e depois pesarosa quando os indivíduos não conseguem usar imagens sabendo que são apenas imagens. Onde é pregado o ódio ao artificial, o conceito de verdade existe apenas como uma doença, como uma máscara para a megalomania de um eu. Se o narcisismo é justificado com "fatos", não pode existir aprendizado mútuo, apenas desculpas e chantagens -- o cristão que afirma que outras religiões são inferiores porque o seu livro favorito contém a única revelação verdadeira, o cientista que faz um teste de laboratório e produz um artigo sobrecarregado de jargão para provar que tem o direito de provar, o filósofo que afirma que seu sistema é absoluto ou que nenhum é respeitável com base em seus argumentos metódicos (ou em seus devaneios incriticáveis), aquele que "luta" por "uma sociedade justa" escolhendo um pedaço da história como base para um rancor incondicional... desculpas e mais desculpas! Um eu quer transformar sua escolha narrativa em uma característica intrínseca do mundo, digna de ser imposta sobre o outro... ou de justificar seu anátema.

"A natureza humana", "a história" ," a vida como realmente é", "os machos", "as mulheres", "os burgueses"... as verdades construídas sobre noções como essas acabam sempre na mesma forma e fixam no mundo o fundamento de uma convicção (isto é, de uma escolha), desempenhando uma função de autoridade. No fundo, os indivíduos mais violentamente fanáticos e dogmáticos são também os mais covardes diante de si mesmos -- o medo de afirmar "eu quero", "eu escolho", "assim é o meu capricho" cria a demanda por afirmações como "a verdade não nos deixa escolha" e "sei como eles são, por isso estou agindo assim". A hesitação diante dos próprios desejos e escolhas se torna um hábito em qualquer indivíduo que tenha sido criado sob autoridades que exigem e se justificam com razões. Assim, é preciso que alguém prove algo sobre o ser para conseguir narrar suas ações. Além desse papel de autoridade pela teoria, de afirmação indireta dos caprichos do ser, essas simplificações buscam esconder uma certa forma da ideia de liberdade. Se levada à sério, e não apenas citada como propaganda, a ideia de liberdade não é uma fonte de conforto, é o mais pesado desafio: Ser livre não é libertar-se das correntes da sociedade e buscar aquilo que o ser de fato deseja, ser livre é carregar a responsabilidade por toda a glória e toda a desgraça do indivíduo e da espécie humana, e também dos demais animais, e ainda da própria Terra. Você, que se diz livre, afirma com isso que escolheu tomar seu café da manhã assim como escolheu passar indiferente por um pedinte que precisava de uma moeda que não te faria falta. Qual falsidade, qual má-fé permite que alguém afirme que tem a liberdade em seu ser aqui, mas não ali, diante disto, mas não diante daquilo? Se as implicações da ideia de liberdade não forem camufladas com a noção de um deus que administra o universo, com uma ideia de opressão que culpa alguma categoria pela insuficiência da sociedade, com um determinismo que resolve tudo tratando o universo como um artífice sem criador, com uma ideia de história que atribui aos mortos e aos grandes feitos do passado a responsabilidade que cabe aos vivos... se formos honestos, a ideia de liberdade nos conduz à mais profunda sensação de responsabilidade, porque existem muitas coisas no universo que não podemos desfazer ou mudar, mas não existe nada sobre o qual um indivíduo não possa tomar alguma decisão.

Tratar a liberdade como a questão de provar ou desmentir a possibilidade do livre-arbítrio é uma forma de evitar uma questão mais profunda a transformando em um objeto (que é falso), que precisa ser encontrado em alguma pesquisa científica ou prática milagrosa, em vez de tratá-la antes de tudo como uma convicção: Você assume ou não a ideia de liberdade sobre suas ações? Você afirma ou não que sua força de agir é livre? Você "sente" que é livre?  Nesse ponto é irrelevante se suas ações poderiam ou não resolver algo que você identifica como um problema, e é tão pouco importante sabermos se, do ponto de vista da totalidade do universo, você poderia ou não agir de formas diferentes em uma dada situação. Usando o exemplo anterior, não importa se sua moeda mudaria algo na situação econômica do pedinte ou em geral, de sabermos o que aconteceria caso você tentasse fazer algo mais por aquela pessoa. A verdadeira questão é se você é capaz de assumir a possibilidade daquela pessoa morrer um dia desses de fome ou de frio, a possibilidade de uma vida humana ser ceifada pelo estado de natureza como algo que você escolheu, como algo que, naquilo que dependia de uma ação sua, você preferiu. As formas de disfarçar o peso da liberdade que mencionei anteriormente são justamente meios para que um indivíduo estabeleça sua identidade evitando tais considerações, são formas de formular a liberdade como um bem do indivíduo sem relação nenhuma com o outro, ou como um bem que o outro sequestrou por maldade, formulações que me parecem por completo falsas, posto que toda essa propaganda de liberdade é sustentada por uma massa de indivíduos que se consideram autônomos e únicos, ou guerreiros que conquistam mais liberdades a cada dia, enquanto a evidência e até mesmo o ridículo mostram constantemente o contrário. Acontece que não se formula uma ideia de liberdade capaz de resultar em ações, mudanças, afirmações que não ficam apenas em palavras, sem que se tome a responsabilidade pelo estado das coisas, tanto nas relações mais particulares quanto no funcionamento geral da sociedade. Os roteiros de pensamento mais populares atualmente prometem alguma forma de libertação oferecendo ao mesmo tempo alguma justificativa que isenta o adepto do peso da liberdade, isenção que também impossibilita que o grupo em geral atue de fato em seus objetos de interesse, porque essa expectativa de uma libertação como um bem sem custos é uma falsidade.  

A ideia de liberdade é o fundamento mais profundo de qualquer ética ou estética que não seja fixada pela via da coerção. Se um indivíduo acredita que não pode pensar sobre suas ações e definir ou alterar seus hábitos, não existe nesse caso nenhuma questão moral possível, resta apenas o mecanismo arbitrário da lei, social e natural. Se um indivíduo acredita que a forma de uma existência não pode ser modificada pela imaginação, não existe nenhum estilo, nenhuma arte, apenas estímulos e respostas. Ambas essas crenças são contrassensos, que geralmente aparecem quando um indivíduo tenta encontrar a liberdade como se fosse um objeto, como se pudesse ou precisasse ser algo além de uma ideia. Sendo as afirmações morais as mais frequentemente usadas em tentativas de persuasão, até mais frequentes que a exposição de vantagens e desvantagens, é comum que a ética seja tomada como algum tipo de ciência, como algo que tem objetos sobre os quais podemos provar proposições. É de fato possível tratar a ética como uma coleção de teorias e descobertas, tratar os filósofos como os cientistas teóricos, os legisladores como engenheiros e o público em geral como os indivíduos que utilizam a tecnologia sem a capacidade de modificá-la -- e talvez essa abordagem tenha sua importância. Mas no nível mais profundo, a ética como uma ciência nunca persuadiu ninguém. Como disse antes, as razões e argumentos que apresentamos fazem parte das encenações que movem a sociedade mas não são a origem da adesão de um indivíduo a um grupo, um indivíduo busca uma religião, uma visão de mundo, uma causa movido por uma pulsão que depende de vários outros fatores além das razões que apresenta, que servem principalmente como um instrumento de assimilar e comunicar um processo muito mais profundo que um debate ou a leitura de um livro. Quando dois grupos disputam com suas opiniões sobre alguma questão, muito acontece, mas não aprendizado mútuo. No caso mais comum, ocorre uma troca de longos argumentos e críticas ácidas, e os indivíduos de cada grupo seguem ainda mais firmes em suas posições. Mas parece-me claro que um indivíduo não descobre seus princípios apenas olhando para si mesmo, mas também para o outro, parece-me claro que nas questões morais, de estilo, na espiritualidade, enfim, em todos os âmbitos da ação e do pensamento existe a possibilidade de aprendizado mútuo, de inspiração e de influência. Simples palavras são capazes de despertar e até causar afetos dos mais variados tipos. A razão claramente influência todos os fenômenos da ética e da estética.

Pessoas não mudam ou agem porque algum teorema ou demonstração de alguma "fonte objetiva" provou qual é o melhor caminho, a crença nisso é apenas uma forma de racionalizar a influência como se fosse inspiração. O poder transformador da razão e do contato com o outro sempre se mostra no exemplo mais do que na promessa, nos afetos mais do que nos teoremas. A liberdade, em sua forma completa, esplendorosa e pesada, possibilita que um ser humano tome a si mesmo e sua história como uma obra de arte, como uma criação que expressa seus impulsos mais profundos dando forma a eles através de decisões racionais, como algo que pode ou não ter uma mensagem, que pode querer inspirar a alegria, a calma, o ódio, ou não querer inspirar absolutamente nada. Os diversos grupos que são nomeados na sociedade existem porque esse artista existe em todos nós, e a expectativa de que a moral de algum grupo prevaleça sobre a dos demais pode ser parte da encenação social em alguns momentos, mas não pode ser levada à sério para além dessas poucas exceções. A ética é antes de qualquer outra coisa uma arte, na qual um indivíduo formula ou aceita princípios para transformar a si mesmo e a história ao longo de sua vida em algo mais próximo da imagem que lhe agrada. Moldar a própria realidade em torno de uma imagem, de uma inspiração ou influência, esse é o movimento pelo qual a razão transforma a ação, pelo qual se forma um código de conduta ou um estilo de vida. Mesmo a moral mais abstrata e universalista me revela essa origem quando observo por um instante a satisfação com a qual um kantiano fala do seu dever, a felicidade com a qual sustenta seu solene imperativo categórico. Se uma ideia de moralidade ou de estilo não inspira um indivíduo a criar-se na direção dessas imagens, e se também não influência seu espírito com alguma chantagem ou coerção, nenhuma lei que dependa dessas imagens será seguida sinceramente pelo sujeito em questão, e nenhum argumento lhe impedirá de mandar todas as leis e maneiras ao diabo quando não estiver sendo vigiado -- e é ainda possível que, se algo contrário o inspira, o sujeito faça questão de ser flagrado e preso, até fuzilado, para combater pelo escândalo disso a imagem que rejeita. Quando, porém, ocorre inspiração ou influência, tais leis e maneiras se tornam hábitos profundos, que independem dos mecanismos brutos e barbáricos de manutenção que nossas civilizações ainda usam amplamente. Parte do medo de muitos diante da ideia da ética ser uma arte (em vez de uma ciência capaz de provar ou garantir) parte da possibilidade de que, por exemplo, tal arte tornaria possível que um assassino esteja seguindo alguma espécie de ética. Em primeiro lugar, isso já é possível e bem conhecido por aqueles que conhecem algum "marginal" em vez de sustentarem suas opiniões em mistificações do "criminoso". Se consideramos que as inclinações do assassino existem e sempre existirão tanto quanto as demais, assim como os comportamentos resultantes, temos que assumir que a ética pode resultar na forma do "criminoso" tanto quanto na forma do "cidadão de bem". A ilusão de salvação social, de que todos os seres humanos poderiam ser "bons" ao mesmo tempo é um dos fundamentos da lei, mas conduz apenas a imagens fracas e estéreis se aplicada à ética ela mesma. Assumir que um indivíduo que você considera degenerado é tão humano quanto você em sua degeneração, que se analisada friamente é apenas outro modo de ser, é parte do peso da liberdade.

As causas, por razões perfeitamente compreensíveis e importantes para suas cenas, costumam carregar a promessa de que são capazes de melhorar a humanidade. Mas de tempos em tempos, que seja lembrado que uma "sociedade igualitária" é diferente de uma "sociedade autoritária" no mesmo sentido que uma pintura barroca é diferente de uma pintura cubista: a afirmação de que uma delas é superior pode ser feita apenas como um reflexo de época, apenas como parte da cena atual. Qualquer um que observe as duas com distância se verá incapaz de julgar uma como objetivamente superior à outra -- embora provavelmente se sinta mais atraído por uma delas. Por exemplo, uma sociedade na qual gênero e sexo são estabelecidos de uma forma "sem opressão" é possível se isso for produzido artisticamente, como algo que queremos, como algo que poderia muito bem ser diferente, como foi e é. As tentativas de gerar tais transformações provando objetivamente que elas são um resultado necessário da história, ou o caminho necessário para que a humanidade "melhore" são tão estéreis e doentes quanto as racionalizações que produziram a "opressão" atual. "Você é relativista!", alguém poderia me dizer. Veja que isso é principalmente assumir que as diferentes perspectivas existentes para cada assunto moral têm todas o direito de existir, não apenas como opiniões, mas como estilos de vida, que se seres humanos são "machistas", "elitistas", "vagabundos", "esquerdistas"...se existem pessoas seguindo algum grupo, alguma ideia, estilo ou causa, é porque algo no mundo faz com que a existência de tais caminhos faça sentido na perspectiva de seus adeptos independentemente da sua luta, do seu gosto, da sua opinião. Diga-se de passagem que a combinação da tolerância diante da opinião com a violência reativa diante de quaisquer práticas decorrentes de uma forma de pensar é uma das marcas do autoritarismo contemporâneo. Por exemplo, diga que é contra uma lei atual e nada lhe acontecerá, mas se você protestar com a expectativa de que a lei mude, você sofrerá diversas punições. Isso é autoritário no estado "democrático" tanto quanto no indivíduo que afirma que aceita que cada um tenha sua opinião mas está sempre pronto para atacar alguém que mostra sua visão em ações ou expectativas reais. A ideia de tolerância nesse caso é deturpada de uma forma semelhante àquela que ocorre no caso da liberdade, descrito anteriormente. Se queremos que algum caminho mude, não o fazemos como seres moralmente superiores, mas como seres que partilham da mesma humanidade, da mesma liberdade bela e pesada, e da mesma responsabilidade. A liberdade permite que tomemos critérios de valor que negam a possibilidade de algum grupo, desejo ou ideal ser moral, mas não consigo deixar a impressão de que qualquer um que não tenha visão de túnel, que não esteja focado demais em sua cena, é capaz de perceber a arbitrariedade da exclusão e a beleza da diversidade.

Eu diria antes que o valor moral de uma ação ou de um modo de ser está no quanto é capaz de inspirar, de gerar e transmitir vitalidade, de fortalecer o indivíduo e aqueles ao redor abrindo possibilidades e refinando aquilo para o qual já existe inclinação, diria isto antes de dizer que alguém deve ser julgado de acordo com sua adequação a qualquer uma das doutrinas morais e políticas que tive a oportunidade de conhecer, mesmo muitas delas sendo absolutamente fascinantes -- e aplicaria um raciocínio semelhante para as questões de gosto e estilo. Esconder ou destruir possibilidades nos outros, pisar desesperadamente sobre ervas daninhas que poderiam ser cultivadas, sustentar a compulsão por influenciar e deixar-se ser influenciado até mesmo nas questões mais íntimas, esses são os hábitos de quem se fixa em um único sistema, em vez de conhecer o suficiente para ser um artista da vida. O relativista e o solipsista também não me parecem artistas, porque desconheço qualquer grande obra que não tenha tido inspirações e até mesmo um grande número de influências. Aquele que trivializa a razão, em vez de moderá-la para que as falsidades que acompanham as pretensões exageradas sejam repostas por valores efetivos, é como um pintor que decide que uma pintura não precisa de cores, nem de formas, não precisa ser feita em uma superfície nem ser feita com instrumentos. Ele pode dizer que fez uma pintura, mas vai apenas dizê-lo. Aquele que se recusa a admitir que seu caminho não é apenas seu negligencia o outro, que está ali quer em presença ou em memória, e nisso negligencia a si mesmo, negligencia grande medida de sua história, afunda em um mundo de falsidades, em sua liberdade sem peso e sem efetividade.

Forçar o hábito de se buscar a verdade como um objeto, como algo a ser recebido como uma dádiva ou recompensa talvez seja o maior pecado que um grupo pode cometer, a coisa que eu estaria mais próximo de declarar como "má influência". Se um indivíduo vai ou não buscar alguma ideia de originalidade em sua vida, se um sujeito vai ou não se inspirar para criar sua teoria, seu estilo, sua obra, isso diz respeito exclusivamente ao indivíduo em questão, e ninguém tem o dever de se esforçar para avançar a história e abrir novas possibilidades, ninguém tem o dever de pagar o preço por isso, principalmente porque ninguém sabe ao certo que valor há em alguém ser "extemporâneo" . Porém, quando a possibilidade dessa busca é massacrada pelos mais diversos grupos, quando os mais diversos indivíduos se tornam autoridades em seus meios e estabelecem que a verdade não se busca como uma decisão, mas sim estudando este e aqueles livros, olhando para estas e aquelas questões especificamente, tais indivíduos não apenas não colaboram para a ampliação da liberdade e para a continuidade da narrativa histórica, mas geram um estado de letargia em seus respectivos meios, e logo seus grupos como um todo se tornam armadilhas para potenciais "espíritos livres". Quantas pobres almas buscam a filosofia universitária por um desejo de pensar profundamente, de encontrar verdades, de obter sabedoria, apenas para serem trituradas pouco a pouco por alguma "formação"? Uma pessoa entra em um curso de filosofia acreditando que grandes mestres a ajudarão a pensar mais profundamente e encontra apenas um grupo de leitores compulsivos, de especialistas no parágrafo x da obra y, ou, quando muito, "especialistas" em algum tema que depende de alguns autores para existir. O infeliz aprende então que buscar a verdade é ler aqueles livros, daquele jeito que seus mestres aprovam, e em poucos anos nada mais importa realmente para o indivíduo além de adequar sua identidade às maneiras de seus mestres. Um processo semelhante ocorre nos mais diversos grupos de "emancipação", quando atraem quem procura aumentar sua liberdade, mas oferecem apenas a obsessão em torno de algumas questões e um estilo de vida a ser seguido. A verdade, se for algo que corresponde à alma de um indivíduo e que é capaz de fortalecê-la, de expandi-la em ações e criações, deve partir antes de tudo de decisões próprias, a capacidade de julgar se enfraquece com cada intermediário da qual ela passa a depender, com cada livro que precisa ser consultado, com cada aprovação alheia que é necessária para uma aprovação própria. É observável que até mesmo a capacidade de crer é enfraquecida naqueles que adotam muitos intermediários -- e não porque "quanto mais se estuda, mais se percebe a própria ignorância", como os orgulhosos eruditos por treinamento gostariam que fosse.  

A falsidade daqueles que afirmam que a excelência está em adequar-se bem ao estilo de um determinado grupo, dos doutores que afirmam que ser um intelectual sério é ler aquilo que eles leem, escrever como eles escrevem, trabalhar como eles trabalham, a falsidade dos que "lutam" quando afirmam que a emancipação é alcançada trabalhando com os conceitos que eles trabalham, com as práticas que eles realizam, o egoísmo ingênuo das figuras que deixam que se afirme que elas são o critério de estilo, de beleza, de sucesso... a insistência ativa nessas falsidades. nesses lapsos do juízo, nesses produtos do medo e da carência, uma sociedade na qual um sujeito aprende por todos os cantos que a cura está nesse veneno transforma o ser em objeto, esvazia o espírito no indivíduo e na espécie. Ninguém tem o dever de inspirar-se e de lutar para criar, para abrir, para avançar, nenhum estudante de uma arte ou ciência é menos que algum outro por não querer produzir nada de novo, por querer apenas absorver e ser influenciado por algo que o fascina, ninguém pode ser considerado inferior por não querer nada além de gostar daquilo que "é moda", por não querer o estranho peso de ser um indivíduo mal adequado, inadequável -- mas não sei de algo que eu não daria para ver um mundo no qual ninguém corrompe tão ativante os poucos indivíduos que por uma razão ou outra descobrem que querem fazê-lo mesmo contra todas as chances, mesmo sem propósito aparente. Você decide se carregará ou não a ideia de liberdade, se você se responsabiliza por uma questão ou outra, ou por nenhuma, se você é uma obra de arte ou um produto de seu tempo, se você cria ou reproduz. Essas decisões não dizem respeito a nenhuma autoridade, a nenhuma evidência, a nenhum processo, nenhuma teoria, são decisões que não dependem de objetos, que não decidem primariamente sobre objetos. As teorias, doutrinas, as regras, os costumes, a opinião, as razões, todos acessórios de uma pulsão mais profunda do ser, que se permite realizar menos com cada pequena negligência da responsabilidade que cabe a um ser livre, a responsabilidade de ter escolhido seu destino, qualquer que seja, mesmo que você mesmo ou você mesma não entenda qual foi essa escolha. Se é o medo que conduz à superstição, é certamente por superstição que um ser demoniza o outro e seu modo de vida, é certamente por medo que se alguém não acredita que sua escolha é absoluta, baseada em algo objetivamente verdadeiro, não é capaz de sustentá-la e criar-se a partir dela. Insisto: a coragem não é um dever. Mas as bandeiras, os estilos, os métodos, os grupos em geral podem ser chamados de fracos, até de doentes quando são marcados pela covardia que há em se afirmar a liberdade de maneira seletiva, monopolizando objetos de disputa, sinais de aprovação, ou lançando a culpa daquilo que se chama de mal em um outro, de maneria falsa e irresponsável.

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Notas:

1 - "A sociedade é um inferno de salvadores!", afirma Cioran na "Genealogia do Fanatismo". O proselitismo que sempre acompanha o fanatismo não pode ter outro resultado além de inúmeras "causas justas" massacrando ou atormentando umas às outras. As trocas infinitas de acusações são uma forma de entretenimento, alguém pode passar uma vida ofendendo "a esquerda" ou "a direita" e no fim absolutamente nada terá mudado em função disso, mas a vida terá passado...o eu poderá cair no abismo convicto da coerência de sua imagem, poderá desaparecer vitorioso sem nunca ter lutado por nada.

2 - Existe uma grande diferença entre algo ilusório e algo falso. Se, por exemplo, vejo o Sol como uma esfera que caberia em minhas mãos, se me emociono com o destino trágico do personagem de um filme, minha mente não está sendo guiada pelos fatos, mas sim pelas minhas impressões imediatas ou pela fantasia para a qual estou aberto. Ilusões, sejam acidentais ou propositais, não são falsas e muitas vezes têm enorme poder de influência. Alguém determinado a erradicar todas as ilusões teria antes que eliminar de todas as mentes a própria ideia do eu, a sensação de liberdade, os pilares da sociedade e da cultura. Se sustento, seja propositalmente ou por um engano de raciocínio, algo que não me aparece sequer como uma ilusão, ou algo que contradiz minhas verdades mais profundas, sustento algo falso. Por exemplo, se tentasse me convencer de que estou de fato segurando o Sol em minhas mãos, ou de que o personagem em questão existe fora do filme, estaria me fixando em ideias falsas que não influenciam a realidade de uma forma ou de outra. Minha loucura e obsessão potencialmente resultantes, entretanto, afetariam a realidade.

3 - Um indivíduo é influenciado quando suas ações ou suas ideias são constrangidas, formadas ou corrigidas pelo contato com uma obra, por uma punição, por uma experiência, por uma tendência das massas, enfim, por alguma força externa e humana. Aquele que é influenciado passa a reproduzir uma ideia, um estilo, etc. A inspiração acontece quando o contato com algum conhecimento, com alguma obra magnífica e original, com o exemplo de algum feito excepcional, enfim, o contato com algum resultado da ascensão do espírito humano estimula o indivíduo a criar também algo do mesmo nível -- ou até superior. Aquele que se inspira, faz uso de conhecimentos, técnicas e possibilidades descobertas por outros, mas com a finalidade de criar algo que seu próprio espírito pede, algo que irá também influenciar e inspirar outros. O influenciado repete, aquele que se inspira cria, a influência forma os seguidores, os que se inspiram não seguem nem podem realmente ser seguidos. Confundir esses dois processos geralmente resulta em influência.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

O Evolucionismo Como Teoria Social

A " natureza humana " foi utilizada como axioma em muitas teses científicas e filosóficas ao longo da história. Muitos pensadores buscam provar suas teses e reforçar suas prescrições argumentando que a natureza humana é necessariamente benevolente e altruísta, ou que ela é necessariamente egoísta e inclinada à maldade, que todo ser humano tem essas e aquelas características independentemente de suas particularidades. A teoria da evolução muitas vezes é citada com esse propósito, em afirmações como " O ser humano é uma espécie poligâmica porque os machos são geneticamente programados para gerar tantos descendentes quanto possível " ou " o ser humano é uma espécie monogâmica porque espécies mais evoluídas se reproduzem e garantem o sucesso da prole em processos mais complexos ". As mais diversas proposições morais, políticas e existenciais são frequentemente justificadas por interpretações da teoria da evolução, além de implicações tiradas das recentes descobertas da neurociência. Em que medida argumentos evolucionistas são válidos em discussões que estão além do domínio estrito da biologia ?
Qual é o alcance daquilo que podemos derivar dos recentes avanços na biologia ?

A teoria da evolução não resolve o problema de como a vida surgiu, tanto menos o problema de qual é seu propósito. Seu propósito é explicar como a vida se diversificou e se tornou o que experimentamos hoje, sua proposição central é a de que o processo de reprodução dos seres vivos produz novas espécies e modificações nas espécies existentes ao longo das gerações. Isso significa que o número de espécies diferentes existentes no mundo não é fixo, e que as características da vida estão em constante, embora lenta, transformação. Isso claramente nega a ideia de que um Deus criou a vida tal como ela é hoje. O curioso, porém, é que argumentos evolucionistas frequentemente são utilizados para negar a existência de um Deus como um todo, para negar a existência de um propósito intrínseco à vida ou para defini-lo desta ou daquela forma, além de explicar como a vida teria de fato se originado. Muitas opiniões já foram dadas sobre essas questões, uns afirmando que a evolução é apenas uma teoria, outros afirmando que Deus pode ter criado a vida para evoluir da forma que observamos, enfim, se trata de um debate complexo mas que não me parece tão interessante quanto a pergunta " Se a teoria da evolução não é direcionada às questões sobre a origem e propósito da existência, por quê esses debates existem ? ". Em vez de fazermos afirmações e negações em algum dos vários debates nos quais o evolucionismo é usado como base teórica e retórica, tomemos por um momento esses debates enquanto um fenômeno cultural e político.

Nossas instituições dividem o conhecimento em áreas principalmente por uma questão de organização. Se tratamos do conteúdo dessas " áreas ", não parece razoável afirmar que as teorias da biologia são em si separadas das da química ou mesmo das da física, por exemplo. As proposições de uma disciplina tem implicações diretas nas demais porque, simplesmente, não pode existir uma verdade para a biologia e outra para a física, todas as disciplinas se dirigem à mesma existência. A noção de " interdisciplinariedade " costuma ser citada como uma promessa de inovação didática e intelectual das instituições de ensino superior, como se fosse uma incrível novidade que estamos construindo. A cultura de especialização, sim, é uma construção, enquanto a proposta de interdisciplinariedade é simplesmente uma tentativa de aliviar os efeitos negativos de um foco exagerado na especialização ao longo de quatro gerações de intelectuais
( ou melhor, de trabalhadores ). Por mais que as disciplinas possam parecer amplas o suficiente se olhadas individualmente, quando consideramos o todo da história do conhecimento e das artes é notável o quanto nossas disciplinas são restritas. Tente fazer um biólogo compreender psicanálise, ou fazer um filósofo da ciência compreender física de fato, e você notará que a especialização cria hábitos, naturaliza pressupostos e cria limitações de discurso e de pensamento. Isso é agravado ainda pelo fato de que nas universidades existe uma espécie de competição em torno da " excelência ", na qual especialistas disputam entre si testando quem é mais ou menos especializado. Doutores em filosofia se orgulham de terem lido um único livro de um único autor quinhentas vezes, doutores em neurociência se orgulham de serem plenos conhecedores da parte V1 do córtex visual, etc. Ser excelente nesse contexto significa conhecer cada átomo da ponta de um alfinete. Não é surpreendente que o próprio capitalismo que gerou essa cultura de especialistas criou a demanda por mais " interdisciplinaridade ".

A especialização exagerada não apenas falha como projeto intelectual, mas também falha psicologicamente. Um intelectual extremamente dedicado a pensar sobre a condição humana e a compartilhar sua visão em obras e debates dificilmente irá se satisfazer em passar a vida toda falando sobre o primeiro parágrafo da Crítica da Razão Pura ou sobre o genoma dos gorilas. Um cientista observa e experimenta os movimentos da cultura tanto quanto um sociólogo ou um antropólogo, e ele certamente terá suas próprias ideias sobre os mais diversos eventos e dilemas que não são contidos no campo acadêmico no qual se especializou. Porém, sob o pressuposto de que mais especialização significa mais excelência e afirmações mais seguras, essa rica e saudável tendência de um indivíduo ampliar os próprios horizontes gera uma série de discussões inúteis, porque o cientista especializado amplia seu universo de discurso sem ampliar seu universo de estudo. A especialização em áreas tem o benefício de colocar certos objetos e assuntos em evidência, mas tem o efeito negativo de excluir naturalmente muitos assuntos importantes. Por exemplo, o enfoque em experimentos controlados e dados empíricos quantificáveis claramente favorece o desenvolvimento tecnológico, mas excluí diversos objetos como a subjetividade, a cultura, a metafísica, a arte, etc. Isso porque esses objetos são em si mesmos apoiados por axiomas, proposições filosóficas, teses holísticas e outras formas de construir conhecimento e interpretar o mundo que não se mostram em processos reprodutíveis e quantificáveis. Cientistas que fazem afirmações filosóficas e políticas bombásticas e questionáveis frequentemente usam o fato de terem feito experimentos em laboratórios como um reforço retórico, como se um método mais restrito de pesquisa implicasse em proposições menos questionáveis, ignorando todos os pressupostos filosóficos e todas as implicações epistemológicas da infraestrutura da pesquisa acadêmica.

Esse aspecto de, por um lado, insuficiência e, por outro, de supervalorização da superespecialização explica porque cientistas que conhecem bem a teoria da evolução acabam a usando de maneira indevidana justificação ( ou crítica ) de determinados valores. Entretanto, muitos pensadores de outras áreas buscam na evolução o apoio retórico que há em se afirmar que a natureza humana é desta ou daquela forma, o que exige que a forma geral desses argumentos seja examinada de perto. Existem alguns elementos que são presentes em qualquer argumento que utiliza uma concepção de natureza humana como base, elementos que estão presentes tanto nos argumentos religiosos quanto nos científicos. Essa forma de argumento é sempre teleológica, ou seja, sempre define uma finalidade específica para cada determinada característica da condição humana através da análise dos processos que possibilitam tal característica. Por exemplo, um evolucionista poderia argumentar que a homossexualidade é um distúrbio afirmando que a finalidade da sexualidade é a reprodução e que uma relação sexual que não tem essa finalidade sequer indiretamente precisa ser algum tipo de falha -- ou que a homossexualidade não é um distúrbio porque cria relações afetivas que tem um papel na sobrevivência da espécie. Algo semelhante ocorre com a discussão em torno do altruísmo, na qual uns afirmam que nós somos geneticamente programados para propagar nosso material genético sobrevivendo tão bem quanto possível ( independentemente do que aconteça com outros materiais genéticos nesse processo ) enquanto outros afirmam que essa tarefa envolve relações de simbiose que resultam em afetos que conhecemos, ou que Deus nos fez para amar nossos próximos, ou que o homem é bom mas a sociedade o corrompe, etc. Valores comunicados em formato teórico.

Existe ou não um propósito geral para a existência humana ? Essa questão pode ser respondida de qualquer forma a partir de qualquer um dos grandes sistemas de interpretação da existência. De um ponto de vista religioso ou espiritual, o mundo pode ter sido criado com um propósito específico e misterioso ou pode ter sido criado para nós. De um ponto de vista materialista ou científico, toda a existência pode estar determinada em uma direção específica por uma cadeia de causas e efeitos ou o universo pode ser como um todo indeterminado. A questão acaba sendo simplesmente interpretada da forma mais agradável para cada sujeito, independentemente de quaisquer evidências científicas ou reformas na religião, e nada deve ser feito para interferir nisso. Isso nos deixa apenas as questões mais específicas, como a finalidade da sexualidade. Porém, se colocamos de lado o problema da finalidade geral da existência como algo que apenas pode ser resolvido objetivamente por alguém que conhece o universo ( atual, passado e possível ) de maneira suficiente para avaliá-lo como um livro ou um filme, não temos nenhuma razão para levar a sério quaisquer prescrições ou normas baseadas em uma " natureza humana ". Por exemplo, é bastante claro que o corpo humano se desenvolve biologicamente em dois tipos complementares, e que a reprodução na sua forma mais natural ocorre através de relações sexuais entre um indivíduo de cada tipo. Mas, se a partir dessa base biológica toda a diversidade que podemos observar é possível, ou não existe finalidade nessa estrutura biológica, ou a finalidade existe mas envolve a existência de diversas formas de sexualidade, o que torna todos os argumentos que citam o propósito aparente na estrutura sexual em si irrelevantes para todas as questões morais. Se existe algo que diverge do propósito de uma dada característica da natureza humana, ou o suposto propósito é na verdade uma vontade do indivíduo que afirma que ele existe, ou o propósito é mais amplo do que o indivíduo gostaria que fosse. Em todo caso, nas questões morais e políticas, os argumentos que utilizam a natureza humana como base são uma forma dogmática de se afirmar desejos particulares -- uma hipocrisia bastante comum nas ciências sociais e na filosofia.

Essa forma de argumento também é vaga e pouco convincente fora das discussões morais e políticas. Por exemplo, quando tentamos examinar e avaliar um comportamento inesperado ou que não provocamos, tendemos a observar antes as consequências da ação e depois o processo, para assim fazer um juízo sobre a origem. Se trata de um processo de inferência, no qual utilizamos algumas informações fatuais disponíveis para elaborar uma explicação plausível para o ato observado. Porém, pensadores que se focam demais em uma parte da base fisiológica que possibilita a vida costumam tratar essa inferência como se fosse uma dedução, ou seja, como se o conhecimento das partes básicas fosse o suficiente determinar o resultado final ou a natureza do processo, como se a organização lógica e matemática das teorias que tratam de entes como células e proteínas fosse constituinte da própria essência do mundo, e não simplesmente um hábito de pensamento.Além disso, análises de comportamento tendem a associar a cada ação um objetivo ou necessidade, o que é uma pressuposição de todo falsa. Se uma ação pode ter mais de uma consequência positiva e todos nós observamos isso com muita facilidade, então uma ação também pode ter mais de uma causa ou motivação, e pode ter inclusive ter como origem uma cadeia de conteúdos subjetivos muito mais complexa que o aspecto do comportamento que observamos. Imagine uma pessoa que não respeita uma fila. Essa pessoa pode estar resolvendo seus piores conflitos mentais, pode estar tendo o melhor dia de sua vida, pode estar a caminho de cometer suicídio, pode nem ter percebido que havia uma fila, mas o comportamento que você observa é o ato de ignorar a fila, e você interpreta isso como um exemplo de egoísmo, por causa do seu interesse imediato de chegar ao fim da fila. Ou então, uma vez que você conhece mais sobre a pessoa, você excluí a motivação simples de chegar ao fim da fila sem esperar, como se uma pessoa não pudesse querer ignorar a fila e achar isso imoral e estar distraída e estar decidida e assim por diante. Nas operações mais simples de lógica com as quais nos habituamos, e que acumulamos para formar as proposições científicas que são complexas principalmente neste sentido, proposições contraditórias são mutuamente exclusivas. Na subjetividade humana, porém, essa regra é usada apenas quando é conveniente. Se dermos razão à psicanálise, a subjetividade em em si é apoiada em uma base de contradições. Quando examinamos as coisas e os seres com nosso mecanicismo ingênuo e nossa noção liberal de racionalidade, uma complexidade de causas e efeitos --que talvez nem possam ser concebidos dessa forma -- é reduzida por um enviesamento mesquinho, com interesse de se preservar uma zona de conforto.

Todo pensador, artista ou cientista, sabe ( ou é forçado a fingir ) que o conhecimento envolve a desconstrução de certos interesses que bloqueiam ou direcionam algumas ideias. Entretanto, nossa cultura de especialistas favorece que proposições mesquinhas e ingênuas sejam declaradas com arrogância e espetáculo, que textos afirmando " eu provei que a liberdade não existe ! " sejam publicados e cultuados por indivíduos que sequer conhecem noções elementares de metafísica. O mais interessante é que esses discursos geralmente são apresentados em uma forma que anula qualquer consequência que tais proposições poderiam ter. Ainda no exemplo da liberdade ou do livre-arbítrio, artigos que afirmam a partir de experimentos tão conclusivos para a questão quanto observar aquela pessoa ignorando a fila que não pode existir liberdade costumam também reconhecer que a " ilusão " de liberdade existe e tem influência em nossas ações. A mensagem de tais publicações é algo como " A liberdade não existe, mas nós vivemos sob a ilusão de que ela existe ! ". Se a noção de liberdade tem influência sobre ações e a sensação de escolha sempre ocorre em nossos pensamentos, o que exatamente significa " ilusão " nesse contexto ? A miragem que um viajante no deserto tem de estar vendo uma fonte de água à distância não o levaria a conseguir realmente água, então poderíamos chamar a miragem de " uma ilusão ", como um aviso. No caso da noção de livre-arbítrio ou da sensação de escolha, porém, se trata de algo que motiva ações efetivas sobre a realidade e, segundo muitos desses artigos, de algo que é uma impressão permanente da mente humana. Nesse sentido as cores também são ilusões, e também todas as demais impressões do mundo externo, dadas em sensações e ideias, e não como as coisas em si mesmas. Tudo que experimentamos são ilusões, nessa definição. O que definiria, então, o conceito de " realidade ", que é pressuposto nesses discursos e que deveria ser de alguma maneira oposto ao de " ilusão " ? Qual é o propósito em se fazer essa distinção nessa forma ? Aparentemente, apenas o espetáculo --afirmar " a liberdade é uma ilusão " é mais forte que afirmar " em um experimento realizado com algumas pessoas, observamos tendências muito claras no tempo de reação dos voluntários em algumas tarefas simples e binárias. "

A noção de " natureza humana ", por si mesma, obscurece uma série de questões e provavelmente é a razão pela qual muitos dos debates morais e políticos acabam se tornando disputas entre evolucionistas e criacionistas, afinal se tratam dos dois sistemas mais populares de interpretação da origem, natureza e finalidade da existência. Um caso bastante ilustrativo é o da discussão acerca da natureza da homossexualidade -- se é uma característica ou uma escolha, se é um problema ou não, etc. O argumento cristão mais comum para definir a homossexualidade como um distúrbio é " Deus fez homem e mulher e o sexo é feito para a reprodução, então aqueles que escolhema homossexualidade estão mal orientados ". Muitos tentaram argumentar contra essa posição tentando provar que a homossexualidade não é uma escolha, como se isso fosse relevante para a questão. Como estabelecemos antes, a finalidade intrínseca da sexualidade ( se existe ) é ou ampla o bastante para que a homossexualidade seja possível, ou é de todo irrelevante diante daquilo que podemos fazer com a base fisiológica, com a criação de Deus -- a questão moral acerca da homossexualidade ( se existe ) está na discussão sobre suas consequências para a sociedade e sobre o que significa, em termos de princípios, que a sociedade não interfira contra as relações homossexuais. Toda discussão moral em torno de sua origem, sobre como o " gene gay " foi transmitido de geração em geração, sobre a orientação sexual ser ou não uma escolha, toda essa discussão é um embaraço retórico causado pelo fato de que pessoas frequentemente tentam ignorar as particularidades de cada sujeito e naturalizar generalizações tolas com falácias. As éticas orbita em torno da questão " o que podemos fazer e porquê o faríamos ? " e não em torno de palpites sobre o propósito intrínseco das coisas.

Sendo um conjunto de conhecimentos e de interpretações sobre como as coisas são, e não sobre como as coisas devem ser, a teoria da evolução ( e a ciência em geral ) nos ajuda a descobrir novas possibilidades na tecnologia, na medicina, enfim, possibilidades que quando descobertas podem resultar em novas artes, em transformações na cultura, em novos debates. Imagine, por exemplo, que um dia nossa ciência pode se tornar avançada o suficiente para impedir a maioria dos tipos de morte e envelhecimento. Isso seria em diversos sentidos uma verdadeira revolução, mas as descobertas científicas por si mesmas não resolveriam os eventuais dilemas éticos em torno dessas possibilidades. A teoria da evolução também pode ser usada como inspiração ( metafórica ) para a busca por ideias superiores, por uma sociedade mais evoluída que a nossa, para outras formas de evolução além de acidentes genéticos convenientes. Para além disso, porém, a teoria da evolução sempre serve como um discurso apenas aparentemente científico que comunica realmente valores arbitrários. Os debates acerca da questões de gênero são amplamente contaminados com afirmações como " as fêmeas são geneticamente programadas para... ", como se uma mulher com uma subjetividade e uma história fosse redutível a uma fêmea, no sentido genérico e estritamente fisiológico. Os debates acerca das questões econômicas são permeados por afirmações do " darwinismo social ", um acúmulo de usos amadores da teoria da evolução e do discurso científico de uma forma geral.

Esses erros existem e persistem porque nós tratamos a ciência como a autoridade máxima no campo intelectual, como se a ciência fosse o único caminho sério para investigar e interpretar a realidade, como se a ciência fosse pertinente em todas as ocasiões concebíveis. " Isso não é científico " é uma forma comum de se desmerecer ( falaciosamente ) algum argumento, como se o tipo específico de investigação que entendemos por ciência encerrasse em si todos os tipos possíveis de questões relevantes, como se uma de nossas ferramentas fosse pertinente em absolutamente qualquer caso. " Ciência " se tornou um título de autoridade , sinônimo de " saber com certeza " , o que é bastante irônico de várias formas.

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Notas :

*1: Algumas afirmações de especialistas populares na mídia chegam a cometer erros conceituais de biologia. Afirmações lamarquistas são extremamente abundantes em diversos espaços e contaminam quase completamente o senso comum (e.g http://www.vanityfair.com/culture/2007/01/hitchens200701 ). Isso não apenas é um uso inadequado da biologia, mas também um uso incorreto. A proposição de que as espécies ativamente selecionam características superiores como força física ou inteligência é ultrapassada. Características diferentes ou em graus diferentes surgem nas espécies por combinações genéticas com resultados finais parcialmente aleatórios. Indivíduos nascem com algumas mudanças em comparação com seus progenitores e o material genético que codifica essas mudanças é transferido para uma próxima geração se o indivíduo se reproduz, o que não implica que a característica é conveniente para o habitat em questão, embora isso seja mais provável que sim. Supondo que é verdade que homens não são atraídos por mulheres engraçadas, isso de maneira nenhuma significaria que a evolução removeria das mulheres a capacidade para o humor, ou que o humor não poderia existir por questões culturais e psicológicas. Uma característica apenas é determinada a desaparecer na seleção natural se ela de alguma maneira impede que a reprodução aconteça. De resto, os resultados são em grande parte aleatórios, com uma tendência para que características que facilitam a reprodução sejam transmitidas melhor.

*2: É interessante observar que mesmo nos mitos ( ou narrativas, como queira ) das religiões, muito pouco é dito sobre o propósito da existência como um todo. As religiões que assumem a figura de Deus afirmam que ele tem algum plano, mas não qual é esse plano. Nas religiões hindus, a mônada vital, ou a energia absoluta simplesmente existe, e podemos conduzir nossas existências particulares a um retorno ao estado primordial, mas o que se seguiria disso não é dito. As religiões pagãs nunca afirmaram nenhum propósito geral, e mesmo seus deuses são figuras com existências particulares. De todo modo, o conhecimento de que a finalidade das coisas não nos concerne e não interfere nos nossos afazeres parece ser bastante antigo.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

A Definição de Poder

Na compreensão clássica e intuitiva que ainda é amplamente pressuposta nas mais diversas discussões políticas, " poder " se refere a uma espécie de relação " de cima para baixo ", como costuma-se dizer. Se um indivíduo tem poder sobre outro, o segundo indivíduo é de alguma maneira controlado pelo primeiro em uma relação de causa e efeito, entre a vontade do primeiro e as possibilidades do segundo. Quando trata-se de algum tipo de poder político ou afetivo que é considerado injusto ou malicioso, termos como " dominação " e " opressão " são utilizados. Nessa lógica, sempre existe um opressor e um oprimido, afinal o poder é uma simples relação de causa e efeito na qual a pessoa dominada é passiva e a dominadora é ativa... e má. Felizmente para quem quer ver essas questões sociais se resolvendo de alguma maneira e infelizmente para quem encontrou uma zona de conforto intelectual nos conceitos de dominação e opressão, essa noção simples de poder não explica os fenômenos que observamos nas relações políticas e afetivas.

Na afirmação de que a dominação constrange violentamente o oprimido limitando suas possibilidades e sua personalidade funda-se a lingua franca de incontáveis movimentos sociais. Mas, independentemente de sua posição diante de quaisquer um dos movimentos sociais contemporâneos, eu lhe convido -- tenho que lhe convidar -- a fazer uma pergunta que lhe poderá ser impalatável ou trivial ( ambos sendo sintomáticos ), " Quais são os benefícios da dominação para a pessoa dominada ? ". O discurso da opressão é dialético e motiva o engajamento político afirmando uma luta de classes entre dois tipos relevantes para o movimento em questão ( e.g homem e mulher, brancos e negros, etc ). Mas você deve saber que não existe dialética no mundo, apenas em nossas mentes. O mundo é único e infinito, a dialética falha em explicações da existência como um todo por ser incapaz de conter em seu sistema ao mesmo tempo todo o esplendor e todo o horror do mundo, e falha em explicações específicas de fenômenos por explicar algo a partir de dois tipos protagonistas, enquanto sempre existe na realidade ainda um terceiro, e ainda um quarto... e ainda um infinito. Mas existe algo motivador, algo que impulsiona na dialética -- a simplificação de um dado fenômeno social sob dois tipos, a " luta de classes ", cria um conceito a ser combatido, um conceito a ser colocado sobre indivíduos que serão então combatidos em nome da causa.

Por exemplo, o adepto dogmático do marxismo olha para a realidade buscando entender quem é o burguês e quem é o proletário, sem se perguntar antes se existem outros tipos relevantes ou se os mencionados existem de fato -- esse é o seu a priori. Uma vez que o burguês é identificado, seus interesses devem ser combatidos, seja quem for o burguês e seja quais forem os seus interesses ( afinal, certamente são " interesses burgueses " ), pois isso caracteriza o combate da ideia odiada de desigualdade econômica, assim o marxista encena na realidade concreta a narrativa de seu sistema dialético favorito. Outro exemplo é o feminismo quando se torna violento contra indivíduos ( associados com um conceito de dominação ) ou quando excluí transexuais ( porque são contra exemplos da simplificação dialética em questão ). A dialética não satisfaz intelectualmente. Sua simplicidade dogmática, inquisidora e desprovida de autocrítica não se passa por filosofia diante daqueles que almejam ideias supremas. A dialética não satisfaz o desejo por verdade mas, entretanto, satisfaz muito bem o desejo por certeza. No campo metafísico ela permite uma delimitação despreocupada do assunto, ela permite que uma série enorme e complexa de fenômenos seja abordada dentro do universo de referências estrito do dialético. No campo político, ela faz do indivíduo ao seu lado um tipo, um tipo amigo ou inimigo, um opressor mau ou um companheiro oprimido -- a dialética permite a solidariedade sem empatia e a violência sem antipatia. Será a dialética que atrai tantos adeptos uma simples alavanca psicológica? Um truque?

Talvez seja uma trapaça sem benefício. Que estranha ideia! O discurso da crítica dialética da dominação talvez não seja mais que um sintoma da " dominação ", ou, colocando em termos menos ludibriados, um sinal de confusão, de fúria, de sofrimento, de medo, de sensação de impotência... um sinal de fraqueza. Essa fraqueza política e afetiva é realmente causada pela cultura e isso por si confere valor às tentativas de compreensão e superação como as feministas, por exemplo. Mas a natureza e forma do diagnóstico feito por uns " intelectuais " e reproduzido por uma massa de " oprimidos " que se identificam com conceitos reproduzidos é um sinal de algo que não é em nada inédito na história humana. Posta em perspectiva histórica, não é estranha a enorme e violenta confusão na qual as " lutas " contemporâneas tão frequentemente incorrem. A simplificação do bem e do mal feita pela igreja católica em seus tempos sangrentos era persuasiva pelas mesmas razões pelas quais a simplificação da geopolítica feita pelo governo estadunidense em suas campanhas militares ainda é atrativa hoje. Esquecer de si mesmo e não criticar os próprios absurdos -- aquele que aponta o dedo e atira pedras alcança apenas essa finalidade. Unidos ao mesmo tempo pelo desejo de " melhorar o mundo " e sob o propósito covarde de fugir da fórmula socrática, os salvadores contemporâneos ocultam a monstruosidade e a futilidade intrínseca da violência que praticam ou apoiam, e culpam algum fantasma por não estarem buscando efetivas melhoras a partir de si mesmos.

Chegamos a esse nível de depravação quando somos prisoneiros do medo e da fúria cega -- falamos do sofrimento com palavras de ódio em vez de buscar nosso poder que foi ocultado a nós mesmos e de mostrar esse caminho a outros por amor. Nenhuma simplificação maniqueísta conduzirá a uma sociedade superior, e a dialética não é mais que um formato lógico para que essas simplificações pareçam valiosas. A dialética não fala sobre o mundo, ela fala sobre quem fala. Se aquela pergunta levantada lhe pareceu desagradável ou em si ofensiva, não foi pelo seu conteúdo político ( que lhe é inacessível ) mas pelo fato de que a questão derruba sua visão confortável da realidade como o castelo de cartas que de fato é. Se a pergunta lhe pareceu trivial e você imaginou imediatamente diversos benefícios práticos para a pessoa " dominada ", você também pensa em termos de " oprimido " e " opressor " ... e se identifica com o segundo tipo. O aspecto geral do que se observa nas reações de muitos indivíduos diante de qualquer ideia que possa complexificar a visão da realidade que os motiva mostra que o aspecto psicológico e afetivo do poder e seus fenômenos locais precedem seu aspecto político e seus fenômenos em massa. O indivíduo existe e age dentro da cultura antes de ter acesso às ideias que explicam essa cultura, que a explicam apenas a posteriori. A dialética, seja de Hegel ou de Marx, é um método filosófico invertido que explica o indivíduo e os pequenos grupos como se " o todo " ou " o estado " não fossem antes de tudo conceitos dependentes do indivíduo e de suas relações micropolíticas. Para falar na língua corrente, a dialética não empodera. Com a atenção voltada para esses tipos que inventados e imprimimos sobre as coisas e pessoas que vemos, deixamos de prestar atenção em nossas limitações e possibilidades efetivas. Se trata de um método filosófico fácil que quase sempre é expressado em linguagem difícil sem uma profundidade maior que aquela possível em outros métodos. Tais aglomerados de jargão e de enigma podem servir hoje como recurso heurístico, quando muito, e mesmo nesses casos as alternativas costumam parecer melhores.

As tentativas de explicar as relações de poder pela via da ciência objetiva comentem um erro semelhante, algo que é sinalizado na entediante redundância que se reinicia toda vez que alguém usa um argumento biológico para definir " homem " e " mulher ", desta ou daquela forma. Podemos falar sobre nós mesmos em termos de " macho " e " fêmea ", de sobrevivência, de genética, etc, mas não é assim que experimentamos e pensamos a política no seu aspecto imediato, efetivo e não é nesses termos que nossas relações de autoridade são definidas. As discussões políticas e culturais estão em um âmbito diferente daquele no qual as " evidências empíricas " podem ser utilizadas com alguma " objetividade ". As supostas contribuições científicas sempre se mostram demasiadamente interpretadas e selecionadas quando são empregadas no âmbito das discussões de poder e autoridade.  Posta nossa herança positivista, o discurso científico quase sempre surge nessas questões como uma forma de dissolver a opinião do indivíduo em um todo, assim como a dialética. Por exemplo, quando um homem que afirma os tipos do " homem dominador " e da " mulher submissa " discute com uma mulher que questiona essa tipologia, o homem frequentemente emprega a linguagem biológica de " macho " e " fêmea ", buscando na autoridade indevidamente conferida à ciência a certeza que foi tirada de seu discurso com boas razões. Outro exemplo foi a interação entre Marx e os anarquistas como Proudhon e Bakunin. Em toda ocasião na qual um anarquista questionou a posição de Marx sobre os rumos da internacional socialista e da " revolução ", Marx respondeu tratando seu crítico como se certamente fosse um ignorante completo, um socialista utópico e não científico, como ele se autodeclarou. Tão mal colocada e desastrada quanto a argumentação sexista de " macho " e " fêmea " foi a argumentação profética e proselitista de Marx nos momentos nos quais ele garantiu e definiu a revolução. Essa forma de argumento, seja qual for a referência de autoridade utilizada, sempre consiste em recusar qualquer possibilidade de contra argumento afirmando que existe um processo oculto e determinado que o crítico ignora, que o crítico tem uma natureza que refuta sua crítica. Se discordo de um marxista é porque sou burguês e minha consciência é invertida, se discordo de um neoliberal é porque sou comunista mesmo sem saber disso, se discordo de uma feminista é porque sou um " macho branco opressor ", e se discordo de um " macho branco opressor " é porque sou feminista. Se minha pele fosse azul esse seria o argumento principal por parte de todos para refutar minhas críticas. "Você não entende a verdade porque é azul, existe uma luta de classe entre vocês Smurfs e nós humanos. " Apelo à autoridade e aversão à empatia.

Realmente não tenho certeza se a dialética e o uso da ciência objetiva são em si mesmos métodos de argumentar falaciosamente se colocados no contexto em questão ou se isso ocorre com tanta frequência simplesmente porque somos muito suscetíveis à tentação de empregar falácias para refutar quaisquer pontos de vista que criticam nossos hábitos e forçam os limites de nossa zona de conforto. De qualquer forma sei que a tentação é presente e intensa, e que a dialética e a ciência são muito facilmente usadas como instrumentos de autoritarismo e de hipocrisia -- o aspecto sensacionalista de ataque pessoal que nossas discussões políticas e antropológicas frequentemente tomam não me deixa mentir. A estúpida simplicidade filosófica combinada com a estúpida complicação política cria um círculo vicioso que pode ser quebrado se um de seus aspectos melhorar. É dessa forma que exercícios filosóficos metafísicos são capazes de ter impacto no campo político. A elucidação daquilo que está sendo de fato dito e proposto funciona como um espelho que mostra sua face horrível e odiosa enquanto você acredita estar lutando por uma boa causa. Evidentemente não estou falando da aglomeração de jargões que domina a academia. Colocar exatamente os mesmos discursos que circulam na internet em termos de citações bibliográficas e de leituras anacrônicas das filosofias clássicas ( e.g " Aristóteles foi liberal " ) é um exercício absolutamente impotente e, no fundo, uma " dominação " dos movimentos sociais. Francamente acredito que as chamadas " feministas radicais " têm metade do caminho andado simplesmente pelo fato de terem entendido a futilidade daquela produção de jargões da academia para a academia na mudança de determinadas estruturas culturais. Entretanto, o afastamento de certas instituições intelectualmente empobrecedoras não é o bastante para se encontrar a riqueza necessária -- é preciso ainda que o indivíduo atinja ideias superiores para que sua atuação política possa conduzir a uma sociedade superior. Esse caminho para as ideias superiores necessariamente passa por todo tipo de pergunta, seja do tipo agradável ( ou politicamente conveniente ) ou não.

Aquilo que passou a ser chamado de dominação pode ter pontos positivos tanto quanto pode ter pontos negativos, " As coisas não são boas ou más em si mesmas ". Para que alguém permaneça na posição de " dominado ", é necessário que exista algo na " dominação " que possibilite essa permanência -- uma " opressão " absoluta e inequivocamente maligna provocaria um colapso psicológico em pouco tempo. Além disso, sabemos que a " dominação " acontece mesmo enquanto o " dominador " não está presente ou ciente, porque a relação de poder é interiorizada no domínio psicológico. A explicação para isso não pode ser tão simples quanto " a violência gera medo ", porque existe poder limitador sem violência ( como é o caso das celebridades e dos renomados especialistas ) e existem pessoas que servem não por medo. Mais do que isso, por diversas vezes as chamadas vítimas de opressão discordam completamente de seus " liberadores ", afirmando que não estão em nenhuma relação de opressão e tomando grande ofensa pela acusação daqueles que entendem como seus parceiros ou mestres que são chamados por outros de seus opressores.

Pessoas escolhem as relações que julgamos como limitadoras ou corruptas e muitas vezes consideram tais relações um grande bem. Disso podemos extrair duas lições: A primeira e mais simples é que a prática tão comum entre os " liberadores ", a prática de denunciar e criticar a " opressão " no outro, o taxando de vítima mesmo contra sua vontade, é verdadeiramente venenosa e mostra realmente desrespeito pelo indivíduo a ser " liberado ". A segunda e mais importante agora é que o poder não se dá de forma unilateral " de cima para baixo ", mas como algo mantido por todas as partes envolvidas. O poder de um imperador é mantido também por seus súditos, se as coisas chegam ao ponto no qual seu poder é mantido apenas através da inquestionável força da violência, sua própria cabeça logo é cortada ( afinal não é ele quem detêm a violência de fato ) e seu posto de poder é delegado a outro a quem o exército serve voluntariamente. Na guerra e na violência bruta, situações da sociedade nas quais o poder pode ser exercido como relação de causa e efeito e pela via de fato, no caso a ameaça à vida e o sofrimento físico, todo poder é frágil tal como a vida humana é frágil. Um tirano violento pode derramar sangue e dar ordens que serão seguidas por amor à vida, mas logo seu próprio sangue é derramado por outro. Não se sobrevive na " lei dos peixes " por muito tempo. Fora desses casos, entretanto, o poder não é frágil e chega a parecer eterno, como se criasse uma estrutura social efetivamente determinista -- " o sistema ". As estruturas de poder que temos na sociedade mantém os mesmos tipos de relações através dos séculos, enquanto a coerção violenta direta age sobre indivíduos e em casos particulares. Com isso em mente, está evidente que nossa questão não é entender ou denunciar a violência direta, mas refletir sobre a passagem da violência fatual para o plano das ideias. Nossa definição clássica de poder é insuficiente justamente na explicação da sociedade em relativo estado de paz, nos casos que mais vivenciamos e mais discutimos -- que discutimos com pouca eficiência e inteligência.

Poder, definido propriamente , é uma forma de influência. Podemos manter isso dos clássicos. Acrescento a isso que para que eu possa influenciar algo ou alguém, preciso ter em mim as propriedades necessárias para isso. Por exemplo, para que eu possa ameaçar alguém fisicamente, preciso ser suficientemente forte ou ter o sangue frio para que minha ameaça seja convincente, do contrário não tenho o poder de intimidação. Isso significa que quando intimido alguém, mostro também que tenho uma determinada característica em mim, mostro que sou determinado de uma certa forma. É principalmente por essa razão que o poder não pode ser unilateral. Para que eu mantenha um prisioneiro, preciso para isso me tornar um carcereiro, para que eu limite alguém com ameaças preciso com isso me limitar a ser um bruto -- eis o sentido da afirmação de Bakunin de que " se existe um escravo ao meu lado, eu não sou livre " . Também pela mesma razão, não é inteligente julgar os " oprimidos " como bons e os " opressores " como maus, porque o aspecto geral da relação de poder empobrecedora mostra que todos são pobres em decorrência dela em algum sentido. Por exemplo, a superação do machismo não seria apenas positiva para as mulheres, mas também para os próprios homens, especialmente aqueles que o adotam e tornam-se assim seres tolos, brutos e limitados tais como a ideia vigente de masculinidade prescreve. A ideia de que existe na sociedade algum grupo de dominadores que vive muito feliz em função do sofrimento de todos os outros é uma ideia cegamente otimista, que estabelece bem e mal muito claramente. A realidade, mais sombria mas com possibilidades efetivas de ação, é que ninguém está feliz. A ideia de que se um grupo " oprime " é porque isso o beneficia pressupõe que um humano não defenderia uma ordem que prejudica ele mesmo, pressupõe agentes racionais no sentido liberal e utilitarista, um sentido bastante ingênuo e simplificado. Cada ano que passa na história humana mostra com mais clareza que humanos frequentemente são simplesmente suicidas, espalhando a desgraça para si mesmos e para os outros sem nenhuma recompensa que não pudesse ser obtida por outros caminhos. Ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, todos somos tolos, somos fracos e sofremos em função dos mecanismos da sociedade e dos mecanismos de nossos próprios egos. Todos temos a tarefa de evoluir nossas ideias, ajudando uns aos outros a superar quaisquer barreiras para nossa evolução intelectual individual e coletiva. Se recusamos essa tarefa, nós não merecemos uma sociedade superior -- porque somos então " ainda mais macacos que todos os macacos ".

A associação de proporção entre poder e liberdade é amplamente presente no liberalismo clássico e no senso comum, mas essa associação é de fato inversamente proporcional. Mais liberdade significa menos poder, e mais poder significa menos liberdade. Ter mais poder significa ter mais influência, e ter mais influência significa ter mais características definidas ou ter características mais profundamente definidas. Poder requer determinação, e mais determinação significa menos liberdade. " Omni determinatio est negatio " -- a liberdade é uma afirmação de possibilidade, uma abertura, enquanto o poder determina em uma afirmação de fato. As promessas de obtenção de poder e liberdade ao mesmo tempo, como a promessa capitalista, são enganosas em todos os sentidos. Cada segundo que se passa restringe seu conjunto de possibilidades. O ser com o maior número de possibilidades é o recém-nascido. Entretanto, o recém-nascido é também o ser menos poderoso, aquele com menos força, menos amor, menos posses, etc. Com a restrição de possibilidades que ocorre a cada momento da vida, o indivíduo perde possibilidades mas ganha relações, memórias, traços de personalidade, etc -- perde possibilidades mas pode ganhar com isso valor. O processo de restrição de possibilidades é inerente à vida e termina na morte, onde o ser se torna passado. O que realmente faz a diferença entre uma vida mais ou menos livre é em que medida o morto, ao longo de seu processo de ser, se determinou ou foi determinado de forma externa. Fazer escolhas significa precisamente auto-determinação, em contraste com a determinação pela degradação natural do corpo ou pelo fato social. O ser que perde suas possibilidades sem ganhar poder se perde, sua história desaparece na infinitude do universo, esse ser se torna o nada. É dessa forma que consumimos nossa essência quando somos tratados como coisas. Somos determinados por indivíduos ou processos que querem de nós apenas um resultado específico, e que não querem que nós tenhamos nenhum poder desnecessário para esse fim.

O caminho para uma vida que pode ser chamada de livre -- no sentido de que as determinações foram escolhidas -- está na determinação voluntária das relações, dos afetos, da profissão, etc. Entretanto, quase toda determinação que não é dada pela coerção violenta óbvia nos parece ser voluntária, algo que se mostra falso quando consideramos o efeito da propaganda, da moralidade e das contradições em nossas mentes. É nesse aspecto que a crítica das ideias que circulam na sociedade é capaz de " empoderar ". A determinação da mente com a qual nós nos orientamos é em grande medida dada por ideias, e a determinação das ideias é a mais fraca e mais mutável. Com uma mudança nas ideias ocorre uma mudança de orientação. Dessa forma podemos purificar uns aos outros das ideias que nos orientam ao nada, das ações que gastam nossa energia com finalidades instrumentais alheias. Entretanto, deve ser claro que essa purificação consiste em libertar-nos uns aos outros dos obstáculos que nos mantém com pouco ou nenhum poder, pouca ou nenhuma determinação. O discurso tolo e relativista de que nós devemos abandonar os afetos, o trabalho ( no sentido de dedicação ), a identidade e tudo aquilo que nos determina é um discurso em todos os sentidos " dominado ", pois justamente convence o indivíduo a seguir um caminho sem auto-determinação, exatamente o mesmo que " o sistema " ou " a sociedade burguesa " incentiva aos que não se adequam aos tipos favoritos de suas respectivas sociedades. Um indivíduo que recusa a determinação, pensando apenas em possibilidades, isto é, em fantasias, não é um sujeito maravilhoso, uma obra de arte viva, não é o übermensch, mas apenas um fraco que perde seu valor a cada segundo de insistência nessa estupidez. O discurso de desconstrução total não é nenhuma crítica, pois afirma exatamente a mesma armadilha mental que a sociedade capitalista, a ideologia de que a liberdade é um bem em si que deve ser buscado em um código moral, uma das principais razões pelas quais a maioria de nossa população tem muito pouco poder, especialmente quando se trata de poder político.

Ser livre é uma característica humana, nós somos seres com possibilidades e podemos antecipar muitas delas em nossa orientação mental. Nosso problema certamente não é falta de liberdade, mas o fato de que somos quase sempre restritos a fantasiar com possibilidades em vez de agirmos e tomarmos o poder para nós. Seu valor está na forma e intensidade de seu poder, de sua determinação, não em sua liberdade ou em suas fantasias narcisistas. A liberdade não é o que está em disputa e não é aquilo que sociedade pode ou deve lhe prometer -- o poder é o que se disputa e o que revela a natureza da sociedade. A garantia da " liberdade de expressão " é muito frequentemente usada como propaganda do estado. Afirma-se que somos livres porque podemos questionar qualquer coisa. Certamente somos livres, isto é parte de nosso ser. Mas que poder temos sob esse estado ? Esse mesmo estado frequentemente usa da violência bruta e óbvia no instante em que o questionamos não em palavras fantasiosas mas em ações, em protestos, em transgressões, etc. Por exemplo, a crítica do machismo cai em uma armadilha se luta para poder afirmar que uma mulher pode escolher com quem quer se relacionar. Essa possibilidade simplesmente existe, afirmar isso é afirmar que essa liberdade essencial humana depende de algum reconhecimento. A verdadeira questão a ser feita é sobre o que acontece com a mulher uma vez que ela de fato se envolve com alguém. A exigência do reconhecimento da liberdade é um sinal de " dominação ", pois sugere que alguma autoridade detêm tamanho poder sobre aquilo que é simplesmente essência do ser humano.

Maquiavel, no século 14, já havia percebido que o segredo para uma ordem política duradoura está em permitir que os cidadãos subordinados esbravejem de alguma forma, em pequenos discursos de pequena agressividade contra o estado que os frustra. Eis porque o discurso da " denúncia da opressão " não é mais uma via para o poder. Você pode, por exemplo, denunciar que a história da filosofia é machista acreditando que questiona com isso o poder atualmente estabelecido ( o fato de que a esmagadora maioria dos reconhecidos como grandes filósofos são e serão homens ). Mas precisamente incentivando que você faça essa reclamação, lhe elogiando por isso, a sociedade lhe incentiva a ignorar a pergunta : " Por quê eu não sou uma grande filósofa ? ". Denunciar a situação social de qualquer grupo de uma forma que atribui ao fato social a " opressão " sem também responsabilizar o indivíduo por suas escolhas é uma grande concessão ao estado -- significa dizer que as autoridades vigentes podem decidir a natureza de nosso poder. Se trata de uma troca de nosso poder pelo nada. Sua impotência também é sua responsabilidade. Fugir dessa responsabilidade com desculpas é confortável para sua identidade mas perpetua sua fraqueza, principalmente quando a desculpa utilizada é algo que de fato existe. Quando você culpa seu oposto dialético e sua luta de classes pelo seu fracasso, você atribui a um processo a orientação do seu destino -- essa é precisamente a forma mais pura de coerção da mente . A razão certamente é o começo da crítica, mas o discurso é corrompido e se tona passivo se nos esquecemos da finalidade da crítica : Mudar nossa orientação mental para uma capaz de obter poder, de conquistar valor e de brilhar de forma esplendorosa na história, com ações em vez de simplesmente com palavras, fantasias e possibilidades.

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Notas :

*1 - Os intelectuais a quem me refiro com certo sarcasmo não são as pessoas que de fato levantaram questões sociais e filosóficas com suas obras criativas e profundas, mas os muitos acadêmicos que são resignados a usurpar o discurso alheio e que ensinam a seus estudantes que eles/elas devem fazer o mesmo, os que ensinam que ser inteligente significa reproduzir os conceitos da moda, que pensar com a própria autoridade e responsabilidade é em si um erro. No exemplo do feminismo, uma mulher que escreve obras filosóficas originais faz algo de grande valor que de fato contribui muito para a mudança das ideias na sociedade e, se sua obra singular aborda as questões sociais, traz força para os movimentos sociais -- e certamente não apenas no campo do feminismo. Entretanto, os acadêmicos que apenas repetem e ensinam a repetir as teorias das grandes feministas são tipos resignados, que não buscam o poder que suas autoras favoritas obtiveram. Assim como os comentadores de filosofia degeneram o espírito filosófico quando vendem a ideia de que citar autores clássicos é fazer aquilo que eles fizeram ( filosofia propriamente dita ) , essa prática no feminismo acadêmico não faz nenhum papel empoderador ou emancipatório. Veja, como exemplo, os " nietzschianos " acadêmicos, veja como eles são ortodoxos e desprovidos de criatividade, como eles não fazem nada que seja uma " ponte para o além-do-homem ". Ou então os " kantianos ", pregando a filosofia de Kant como dogma, incentivando a hipocrisia e a covardia intelectual em vez do " esclarecimento ". Ambos esses tipos de postura intelectual existem porque indivíduos, por um lado, se sentem atraídos a afirmar que são " kantianos ", " nietzschianos ", " feministas ", qualquer coisa interessante, enquanto, por outro, não estão dispostos a pagar o preço que as figuras fascinantes da história do pensamento pagaram. A demanda por mudança social se torna assim, ao longo do tempo constrangida dentro dessa estrutura, apenas uma tentativa narcisista de afirmação de identidade, uma fantasia de liberdade.

*2 - A expressão foi utilizada em" Assim falou Zaratustra ", onde Nietzsche compara a diferença entre o além-do-homem e a humanidade atual com a diferença entre a humanidade e os macacos. Por causa da foma como Nietzsche expressou sua ideia, a noção de além-do-homem pode parecer praticamente uma superstição, mas ela de fato chama a atenção para algo de grande valor, que foi compreendido no oriente muito melhor que no ocidente : O ser humano pode evoluir para além do que conhecemos hoje como a " humanidade ". Essa evolução não é biológica, técnica ou nazista, mas simplesmente filosófica -- e cultural, como consequência. Penso que uma pauta geral dos movimentos sociais atuais é conduzir-nos a uma sociedade, em vários sentidos, superior. Mas uma vida em sociedade superior requer uma cultura superior, e uma cultura superior não se faz com a soma de indivíduos que vendem suas riquezas do espírito com tanta facilidade como nós. O cultivo da profundidade do espírito é muitas vezes visto como algo " elitista ", como se fosse em si a afirmação de desigualdades sociais. Mas como nós, com nossa pobreza de espírito, poderíamos um dia viver em uma sociedade bem administrada ? Como nós, que não cultivamos nossa singularidade, a esplendorosa beleza que todos podemos ter em uma forma diferente, como nós poderíamos viver em uma sociedade que respeita todos os indivíduos ? Que tipo de " revolução " nós faríamos ?