domingo, 19 de julho de 2015

Sobre História

Interpretações de eventos passados são narrativas construídas em algum momento posterior, um momento no qual não se experimenta, apenas se imagina o objeto de análise. As narrativas históricas que consideramos objetivas ou científicas são um exercício de conciliar documentos e artefatos arqueológicos com algum paradigma de análise atualmente bem sucedido. Em outras palavras, usamos a razão para reconstruir a cena histórica que queremos descrever. Mas não é possível descrever algo que não podemos mais acessar, é possível apenas imaginar, especular e narrar.

A história científica ou objetiva, aquela que é considerada parte da educação básica, é o melhor exemplo desse exercício mas certamente não é o único. Psicólogos e psicanalistas também encontram a necessidade de esclarecer o passado, tanto de indivíduos como de fenômenos culturais. Discussões na internet entre aqueles buscam combater a opressão quase sempre citam eventos do passado para definir o sentido de opressão e para intensificar o apelo retórico dos argumentos. Diversos argumentos sobre os mais diversos assuntos são repletos de narrativas históricas. Quando argumentamos e sabemos o que isso significa, tentamos dar a maior coerência possível aos nossos argumentos, além de fazer com que eles pareçam adequados ao contexto em questão. Mas quando interpretamos o passado temos apenas uma percepção já interpretada do contexto e não estamos tratando de uma sistema fechado no qual facilmente compreendemos as regras de coerência. Existem várias ideias e pressupostos muito frequentemente empregados por narradores da história que parecem em um primeiro momento superar essas dificuldades.

A noção de causa e efeito é a mais ingênua e provavelmente a mais perigosa, porque costuma levar o pensador a não apenas estabelecer causalidade onde não sabemos nem podemos saber se existiu mas também a interpretar o presente com base nessa relação imaginada entre eventos do passado, incluindo alguns que talvez sequer sejam reais. As possibilidades e impossibilidades de um sujeito do presente muitas vezes são previstas ou mesmo ditadas por outros indivíduos com base em estudos do passado que contém a espécie mencionada de dificuldade. Ou seja, alguns indivíduos partem de leituras sobre o passado, que em grande parte é em si uma interpretação, constroem suas interpretações sobre ele, observam e julgam um indivíduo do presente sobre o qual muitas vezes tem pouco ou nenhum conhecimento com base em categorias extraídas do processo mencionado e ainda fazem previsões explícitas e implícitas sobre seu futuro, tão difícil de acessar quanto o passado. O estado de confusão e inutilidade no qual se encontram muitos dos debates atuais e grande parte da produção acadêmica se deve em parte ao uso frequente desse caminho dúbio de raciocínio.

A noção de dialética atribui à dinâmica entre opostos os desenvolvimentos da história. Um claro exemplo é a dialética marxista entre a classe trabalhadora e a classe dominadora, que deve conduzir ao fim da opressão, à revolução. Análises dialéticas são extremamente populares atualmente, tanto nas formas grosseiras quanto nas refinadas. Em qualquer um dos casos, existe um problema fundamental na nomeação de opostos na interpretação histórica. A base para a associação de um fenômeno a dois conceitos opostos que se revelam em alguns agentes práticos costuma parecer arbitrária e baseada apenas no enviesamento do intérprete dialético. Por exemplo, é evidente porque um dialético socialista encontra na relação econômica entre o patrão e o empregado o sentido da história. Esse é seu foco, seus conhecimentos giram em torno dessa questão. Ele talvez sequer fosse dialético se entendesse a realidade por mais perspectivas distintas e de outras áreas. Além disso, a finalidade do processo dialético costuma ser também completamente enviesada. Um dialético marxista me diria que o fim da história é a revolução, enquanto um dialético liberal me diria que o fim da história é uma anarquia capitalista. As intenções e expectativas do sujeito parecem estar tomando o lugar que deveria ser dado a bons fundamentos nesses dois casos.

Análises sobre a história que usam o próprio passado como base parecem ter um problema intrínseco, o de que esse passado é em si a leitura de um recorte feito intencionalmente. Esse problema é atenuado em grande medida quando a intenção do narrador é encontrar documentos e fazer com que os dados disponíveis formem um cenário coerente, e é intensificado quando a intenção do narrador é tirar alguma implicação política do passado. Eu não sei resolver a dificuldade científica do primeiro caso e não sei se ela precisa ser resolvida. A precisão atual parece ser suficiente para fins científicos. Meu interesse está nas dificuldades políticas e filosóficas do segundo caso. Estamos educando narradores históricos em massa mas estamos calando discursos propositivos onde quer que eles apareçam, por estarmos habituados demais com os métodos de narração histórica mencionados. Um pensamento sempre retrospectivo é sempre um pensamento fraco e atrasado.

Não temos meios para afirmar que a natureza muda em essência de tempos em tempos de tal forma que raciocinar em uma época seja em absoluto diferente de raciocinar em outra, de forma que coisas como o individualismo, a subjetividade, a metafísica e a própria filosofia tenham surgido e desaparecido. Também é incorreto exigir implicitamente ou explicitamente que nosso interlocutor tenha consultado qualquer série de referências históricas para que sua vontade seja respeitada e suas razões sejam devidamente consideradas. De forma geral a política deve sempre privilegiar a vontade, tanto o ser quanto o querer-ser, dos vivos e atuantes, evitando ao máximo ídolos e processos causais ou dialéticos que são no fundo misteriosos e que talvez sejam puras superstições. A filosofia que acompanha a política é profunda na medida em que faz história em vez de apenas narrar. Nenhum indivíduo que preza pela própria liberdade deve aceitar para si o conjunto de narrativas que determinou quem ele é antes do dia de seu nascimento, e nenhum indivíduo que preza pela liberdade alheia deve se ocupar de propagar o folclore que predomina nos debates políticos.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Valoração das Palavras

Em cada cultura, existem certas palavras que provocam reações imediatamente boas ou ruins. Esses termos, geralmente expressos na forma de adjetivos, fazem com que indivíduos adotem ou recusem posições independentemente de argumentos. Alguns exemplos atuais são: democrático, inovador, crítico, científico, plural, positivista, reacionário, radical, racista e sexista. Existem muitos e muitos outros termos dessa espécie sendo usados amplamente, e uma grande parte daqueles que se envolvem em debates usam esses adjetivos mais frequentemente que argumentos ou que referências a fatos.   

Em geral isso é um problema sério. As reações emocionais que esses termos provocam atrapalham o raciocínio. Termos como "democrático" e "crítico" são usados frequentemente sem nenhuma definição ou significado claro. As reações a esses termos são frequentemente manipuladas de maneira maliciosa ou irresponsável, fazendo com que o foco nos argumentos se perca. Mesmo nos casos em que um indivíduo não tem suas posses ou sua reputação dependentes de uma determinada tese, a tendência é que esse indivíduo tente "ganhar" o debate, mesmo quando se trata de uma discussão com implicações importantes.

O termo "crítico" é particularmente um bom exemplo. "Criticar" quer dizer algo como "fazer distinções", ou seja, analisar um raciocínio, uma obra, um indivíduo, etc. Mas em geral nos debates atuais o termo crítico é utilizado de maneira vazia, como um meme entre pretensos intelectuais. Nessas discussões a palavra acaba se tornando pela prática um sinônimo de insultar ou depreciar, refletindo a baixeza e a falta de conteúdo próprio. Ao mesmo tempo, termos como pensamento crítico e senso crítico são usados como positivos, adornando posturas irresponsáveis como a de se criticar um indivíduo ou mesmo um grupo em vez de se criticar suas obras. Ninguém deveria tomar tão rapidamente a liberdade de criticar um sujeito como se sua totalidade fosse tão fácil de conhecer. Além disso, não acredito como muitos que nos falte pensamento crítico, e sim pensamento propositivo, criativo ou afirmativo. Atualmente, reclamações sobram em comparação com boas atitudes e bons trabalhos.

Mas a questão da valoração das palavras não é tão simples. Se por um lado palavras como "inovação" são usadas para defender práticas dúbias, por outro palavras como "racista" e "sexista" combatem práticas dúbias. O fato do racismo ser considerado intrinsecamente negativo é uma grande vitória política, que significa que qualquer um que propor o regresso à escravidão ou qualquer coisa do tipo será alvo de escárnio público imediato. Mesmo no caso mencionado do termo "crítico", é algo positivo que a crítica não seja reconhecida em si como algo a ser punido, ou seja, a valoração positiva impede que a valoração negativa ocorra. É claro que isso não impede que críticas pertinentes sejam suprimidas de várias formas, mas é ao menos um avanço entre os diversos que ainda não realizamos. Além disso, existe um caso que é, talvez, pior que a valoração positiva ou negativa de um termo. Quando um termo é trivializado, como acontece hoje com a palavra "filosofia" que não tem mais significado, temos uma grande perda. Nesses casos, o termo desaparece dos debates e por consequência das memórias, ou é usado muito facilmente de maneira inadequada sem que isso seja aparente. Se um termo tem um significado trivial, ele pode caber em qualquer forma lógica, ou seja, ele pode ser usado em argumentos aparentemente coerentes, o que torna certas falácias mais difíceis de detectar ou desconstruir.

A forma como as palavras são colocadas em em evidência ou em descaso reflete os desenvolvimentos da política e, portanto, do poder. Sendo o poder, no seu sentido natural, algo com o qual inevitavelmente temos que lidar, acredito que as valorações das palavras sejam também algo inevitável. Entretanto, isso não significa que estamos entregues à correnteza de acusações, falácias e confusão em geral. Se o poder é inevitável, podemos ao menos conhecê-lo, e o mesmo vale para a valoração das palavras. Nós podemos manter a consciência de que certas palavras são permeadas pelo jogo político e que não tem o mesmo uso, epistemologicamente falando, que as demais. Por exemplo, quando apontamos que a opinião de alguém é racista, sexista, conservadora ou radical, não estamos fazendo a descrição de um fenômeno ou expressando alguma implicação lógica da opinião expressada, a não ser que ela seja declaradamente inclusa nessas categorias. Quando fazemos esses julgamentos, fazemos uma ação política, de trazer o jogo de poder em torno de certas palavras para a direção que acreditamos ser melhor, ou apenas conveniente.

É principalmente por esse motivo que, em nossa época na qual todos precisam fingir a democracia, ocorrem tantas brigas em torno da definição de palavras. Acadêmicos dogmáticos quanto à autoridade e relativistas quanto ao conhecimento (a maioria) não reprimem o ato de criticar explicitamente, mas manipulam a definição de crítica para algo que inevitavelmente os apoia. Políticos não falam em público contra a democracia, mas nos fazem acreditar que democracia é sinônimo de liberalismo, de marxismo, etc.
Por isso muito me preocupa que a filosofia esteja trivializada no Brasil.