sábado, 5 de dezembro de 2015

Verdade como objetividade

Existe uma distinção carregada de profundas implicações que está aceita quase que universalmente nos debates que envolvem alguma espécie de conhecimento científico ou filosófico. Trata-se da distinção entre subjetividade e objetividade. Essa distinção é adotada atualmente nos mais diversos espaços como se fosse algo intrínseco ao pensamento racional, uma compreensão auto-evidente e fundamental para a construção do conhecimento. Os adeptos dessas duas definições e dessa categorização do pensamento costumam, quando engajados em um debate, buscar evidências de que suas teses se baseiam em juízos objetivos e não subjetivos, enquanto seus adversários muitas vezes tentam provar o inverso, como uma estratégia de desqualificação do discurso em questão.

Tudo isso pode nos parecer, por hábito, muito natural. Mas se nos determos por um momento nessas duas importantes palavras e na forma como elas são usadas em distinção, podemos fazer algumas constatações importantes. Subjetividade, no uso corrente*1, significa a experiência da consciência tal como é para cada indivíduo em particular, ou seja, cada indivíduo tem uma subjetividade formada por sua experiência única do mundo, por suas sensações e por seus próprios conteúdos mentais. Objetividade, também no uso corrente, significa o conjunto de informações baseadas em fatos do mundo ou extraídas dos mesmos por um processo confiável de raciocínio, ou seja, a objetividade se refere ao conjunto dos juízos de conhecimento propriamente ditos, ou ao menos à capacidade humana de buscar a melhor aproximação possível disso. Nessa forma comum de pensar essas duas categorias, a subjetividade não constitui conhecimento porque cada indivíduo tem escolha ou a sensação de ter escolha sobre grande parte do que se passa em sua consciência, e nada impede que um indivíduo trate os produtos de sua imaginação como entidades reais. Em contrapartida, a objetividade constitui conhecimento porque é baseada em noções que não dependem da arbitrariedade da imaginação, seja porque essas noções correspondem diretamente a fatos observados no mundo por qualquer indivíduo com suas faculdades mentais intactas ou porque são formadas por um rigoroso procedimento que é aprendido socialmente através de um processo de disciplina intelectual que reprime os caprichos individuais de cada sujeito, os substituindo por "pensamento crítico", como se diz atualmente. A partir disso podemos constatar que as definições por si mesmas resultam na separação entre um domínio e outro. Reconhecemos que existe um domínio interior e reconhecemos que existe um domínio exterior . Uma segunda constatação importante é que esse uso corrente das noções em questão assume que podemos delimitar de alguma maneira esses domínios. Por exemplo, uma afirmação pode ser definida como objetiva e não subjetiva ou pode considerada subjetiva sem ser objetiva. Dessa forma fica estabelecido que a verdade é atingida através da objetividade, isto é, de um certo método lógico e empírico que se adapta a cada área do conhecimento e às suas demandas.*2

Penso que existe uma infinidade de preconceitos e dogmas contida na simples separação entre sujeito e objeto *3. As noções de subjetividade e objetividade são elas mesmas construções suspeitas independentemente de seus usos. Se acreditamos que existe um princípio espiritual onipotente, onipresente e onisciente no universo, que a inteligência humana tem um propósito especial nesse universo e que para que esse propósito possa ser atingido cada ser humano tem um poder intelectual de influência sobre si mesmo e sobre o mundo ao seu redor que chamamos de "livre-arbítrio", não pode existir sujeito nem objeto. Nessa perspectiva, a existência não é dada em dois planos, dentro e fora do indivíduo, mas apenas no plano de uma consciência absoluta e de uma vontade intrínseca ao universo em si mesmo. As ideias são nesse ponto de vista tão efetivas no mundo quanto os fenômenos da matéria, porque tanto a matéria quanto a inteligência, ou a alma, são criações da mesma vontade suprema e são intrinsecamente ligadas. Se acreditamos que não existe nenhum princípio oculto ou propósito geral no universo, que a inteligência humana é um desdobramento complexo da matéria e que, portanto, há tanta liberdade em nós quanto há no mar ou no céu, igualmente não pode existir sujeito nem objeto. A existência é dada aqui também em um único plano, o da matéria, e a conexão entre o interior e o exterior de nossas mentes é de causa e efeito simplesmente. Em outras palavras, se assumimos que existe livre-arbítrio, o universo e as mentes individuais devem estar intrinsecamente conectados, porque apenas assim a consciência individual pode ter poder sobre a matéria, sobre as ideias, sobre os indivíduos e sobre a realidade em geral, e se assumimos que existe apenas um universo material, a conexão entre a matéria exterior e a matéria interior deve ser necessária e direta, um mecanismo. Não existe nenhum abismo entre cada parte e o todo. A separação entre a consciência e o mundo é de qualquer maneira incorreta em qualquer visão de mundo consistente, e levanta uma série de problemas que são no fundo enganos possibilitados pela linguagem.*4Podemos nos servir dos termos "sujeito" e "objeto" para fins de comunicação, como formas de referência, mas não como descrições de uma separação que existe de fato.

Reconhecer que não podem coexistir uma realidade interior com suas regras próprias e outra realidade exterior com outras regras contraditórias com as primeiras elimina tanto o solipsismo quanto o determinismo, posto que os pensamentos , com isso admitido, são resultado do mundo e são partes atuantes no mesmo, nem completamente arbitrários nem completamente determinados. Como, porém, admitimos que cada consciência e seu respectivo exterior são discerníveis, os argumentos anteriores não são suficientes para colocar em questão a separação entre subjetividade e objetividade enquanto estratégia de pesquisa e de organização. Poderíamos ainda considerar que é positivo que afirmações baseadas em uma perspectiva subjetiva não sejam consideradas válidas na construção do conhecimento, e que apenas afirmações constituídas de um rigoroso trabalho de adequação do pensamento espontâneo ao pensamento disciplinado e precavido possam constituir o conhecimento, a objetividade, por razões de comunicação, instrumentalização e progresso.*5

Essa perspectiva pragmática de conhecimento se dissolve quando consideramos que, posto que a existência é dada em um único plano, seja uma criação divina ou um curioso acaso, não faz sentido afirmarmos que aquilo que é objetivo pode ser julgado como falso ou verdadeiro enquanto aquilo que é subjetivo não pode. Existe tanta realidade na sua crença de que você está lendo um texto quanto na sua crença de que a internet existe. De um ponto de vista filosófico e científico, desqualificar aquilo que se manifesta espontaneamente a cada consciência individual como se fosse irreal ou impossível de ser avaliado significa ignorar praticamente metade daquilo que podemos conhecer e falar sobre, dado que nós nunca nos separamos de nossa consciência até o momento da morte. Essa desqualificação da subjetividade é particularmente perigosa na ciência política, na antropologia, na psicologia e na neurociência. Quando se faz uma descrição científica sobre indivíduos tomando suas experiências subjetivas como irrelevantes, como ilusões ou como epifenômenos, não são emitidos juízos de conhecimento mas, simplesmente, preconceitos e imposições. Não se pode esperar nenhum progresso científico ou político dessa postura, apenas confusão e dispersão.

Para além da noção de que invalidar a subjetividade resulta em uma grande perda de informação, podemos considerar também as implicações éticas, políticas e até mesmo econômicas da valorização da objetividade como critério de verdade. A objetividade nada mais é que uma abordagem pragmática que admite como realidade aquilo que pode ser facilmente instrumentalizado e recusa a discussão acerca de tudo aquilo que não pode. Quando essa parte instrumentalizada da realidade se torna o critério de verdade ao qual cada sujeito deve aderir, se desprendendo tanto quanto possível de si mesmo, a verdade se confunde muito facilmente com obediência. Um indivíduo é julgado nas instituições de ensino com base na sua capacidade de obedecer e reproduzir, enquanto sua riqueza interior é ignorada pelas suas figuras de autoridade e por seus colegas, todos interessados apenas nos benefícios práticos de se aderir a uma determinada forma de discurso. Uma vez que o indivíduo nunca é recompensado pelo fortalecimento e aprofundamento de sua subjetividade, apenas pela sua adequação à objetividade, ele é formado pela sociedade como um indivíduo pouco criativo, com uma grande propensão a imitar (afinal, o objetivo é sempre externo) e uma grande dificuldade em conceber ideias e projetos originais. Não se cria nada de valor sem o conhecimento do mundo e não se conhece nada sobre o mundo sem construções e experiências próprias.

É muito comum atualmente que a subjetividade seja tomada como uma ilusão psicológica que deve ser, em todos os espaços sérios, corrigida de acordo com a objetividade. Essa objetividade é estabelecida politicamente e historicamente, e nem sempre racionalmente. Sendo corrigido por essa objetividade que esconde forças políticas, o indivíduo cede seu juízo politicamente. A partir disso se explica a perseverança do forte etnocentrismo europeu na filosofia brasileira, colocado em disputa apenas por um etnocentrismo norte-americano. A educação acadêmica em filosofia consiste no Brasil em um processo no qual o indivíduo aprende que deve louvar os autores norte-americanos e europeus, por consequência a louvar também a cultura da Europa e da America do Norte, e por última consequência a louvar o próprios europeus e norte americanos. Sendo a autoridade baseada principalmente em privações*6, conforme o indivíduo aprende a ceder seu juízo, ele aprende também a se submeter a autoridades. Inversamente, o indivíduo que não admite que sua consciência contém menos valor que as normas que lhe são impostas dificilmente encontra motivos para obedecer, apenas para respeitar e cooperar.

A ideia de objetividade como um critério de verdade organiza e operacionaliza certas noções como racionalidade, disciplina, esforço, eficiência e humildade de uma forma que parece de início bastante satisfatória. Mas eu observo que as consequências da aplicação social desse critério de verdade são uma redução drástica no número de espaços nos quais a criatividade e a riqueza interior são desenvolvidas, a perpetuação da autoridade de umas culturas sobre as outras e a formação de uma lógica corporativa nas universidades que se reflete na forma como o público em geral lida com debates. Se fosse verdade que o conhecimento se constrói objetivamente, a maior riqueza intelectual estaria na legião de comentadores de textos famosos e revisores de literatura científica, e não naqueles poucos indivíduos que criaram obras segundo seus critérios próprios e que testaram hipóteses originais com métodos originais. A separação entre subjetividade e objetividade no conhecimento ignora o principal conselho que a filosofia oferece à humanidade*7 e cobre a realidade com uma névoa de discussões e práticas vazias.


* 1 - O senso comum em relação a esses termos é observável tanto dentro quanto fora do meio acadêmico, e nas mais diversas áreas. Um físico, um antropólogo e um empresário não encontram motivos para divergir sobre a suposta importância de se separar subjetividade e objetividade.

* 2 - Cada grupo em questão encontra diferentes formas de lógica e de base empírica, mas o padrão pode ser observado quase como uma regra universal. Observe que nas ciência humanas não existe para muitos assuntos base empírica possível tal como se encontra nas ciências naturais, mas os acadêmicos em ciências humanas cobrem essa falta chamando a leitura e citação de textos clássicos de "embasamento". É curiosos notar que na neurociência, que une tanto assuntos investigáveis a partir das ciências naturais estritamente quanto assuntos que dependem do tipo de especulação que existe nas ciências humanas, podemos observar ambas as tendências em seus respectivos campos. Quando um neurocientista estuda a forma como os neurônios interagem uns com os outros, ele o faz a partir da observação experimental dos neurônios e daquilo que pode ser inferido dos dados correspondentes. Quando um neurocientista estuda um tipo de percepção (ex. percepção de distância), ele utiliza conceitos propostos por acadêmicos respeitados no meio, como "embasamento" para cobrir a parte de seus objetos que o método anterior não é capaz de acessar atualmente, e que talvez nunca o seja. De qualquer forma persiste a noção de que se está realizando um "trabalho científico objetivo", apesar da grande diferença entre um caminho e outro.

* 3 - Note que afirmar que existe separação entre dois objetos é algo mais que afirmar que existe distinção entre os mesmos. Por exemplo, podemos dizer que ondas e partículas são distintas querendo dizer com isso apenas que se tratam de duas entidades reconhecíveis e diferenciáveis, ou podemos dizer que ondas e partículas são separadas querendo dizer que aquilo que é uma onda não pode nunca ser também uma partícula. Igualmente, podemos dizer que a experiência individual e o mundo são diferenciáveis sem afirmarmos com isso que o indivíduo e o mundo exterior participam de domínios distintos da realidade, ou seja, que há separação entre sujeito e objeto.

* 4 - Visões de mundo que misturam diferentes metafísicas, ou que carecem de qualquer uma, colocam os objetos em questão em uma organização categórica contraditória ou incompleta. Por exemplo, a visão de Descartes de que alma e matéria são inteiramente distintas e não partilham do mesmo tipo de fenômeno. Essa visão aplica à natureza o mecanicismo e ao ser humano o cristianismo, embora o ser humano deva ser, necessariamente, parte da natureza. Dessa forma umas características humanas são explicadas de forma determinista enquanto outras são associadas ao livre-arbítrio, sem que seja possível que se estabeleça qual é o ponto de encontro ou mediação entre esses dois aspectos dos mesmo ser ( a hipótese da glândula pineal não resolve o problema). Disso surge uma distinção entre sujeito e objeto que contém em si o problema " como é possível que mente e matéria se comuniquem? ", ou o problema mente-corpo, como preferirem. Se trata de um problema que nunca teria surgido em uma metafísica consistente, como a de Schopenhauer.

*5 - Por exemplo, é muito comum nas universidades brasileiras o seguinte tipo de discurso por parte de professores: "Não aceito achismos, apenas argumentos embasados em referências bibliográficas e dados empíricos confiáveis.". Note, porém, que se um estudante apresentar em um trabalho um raciocínio extremamente interessante e singular, expressado simplesmente por um texto autoral excelente, seja uma impecável demonstração ou alguns belíssimos aforismos, esse aluno quase certamente terá seu trabalho reprovado, e essa probabilidade atinge 101 % se estivermos falando de um trabalho de doutorado. Isso porque o "embasamento" se refere a um conjunto específico de autores ( e portanto de argumentos) consagrados pela tradição acadêmica, além de dados aceitos pela academia. As regras de "embasamento" não são uma sábia cautela que almeja nos aproximar da verdade, mas apenas uma estrutura criada para padronizar e instrumentalizar obras filosóficas, científicas e artísticas. Nenhum acadêmico com o cérebro em atividade poderia negar que é possível que uma obra diletante supere de longe as obras acadêmicas, inclusive porque grande parte das referências acadêmicas é constituída dessas obras originais, mas é bastante raro encontrar um acadêmico que não utiliza a abordagem instrumental mencionada sob uma perspectiva pragmática, sob a justificativa de que a superioridade da originalidade é possível, mas é também pouco provável. Nisso se mostra uma preferência por poucos riscos e pequenos resultados.

*6 - Um indivíduo ou grupo chega a ser uma autoridade a partir do ponto em que é capaz de oferecer algo exclusivamente ou a partir do ponto em que é capaz de privar indivíduos daquilo que eles têm (ou impedi-los de oferecer algo). Por exemplo, um especialista passa a ser tratado como autoridade em um determinado campo porque ele oferece conhecimentos e serviços que especialistas de outro tipo não são capazes de oferecer. Quanto mais única for a especialização, maior será a sensação de autoridade do indivíduo. O outro tipo de autoridade pode ser exemplificado com a polícia ou com o exército, que realizam o monopólio da violência, através da qual diversas regras são mantidas em prática através das mais diversas sanções .

*7 - "Conhece-te a ti mesmo". Esse passo é anterior e posterior a todos os demais.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Sobre o corporativismo acadêmico (texto da apresentação)

O propósito desta apresentação é expor uma tese e propor um debate sobre a liberdade intelectual no meio acadêmico. A tese que venho apresentar é a de que o meio acadêmico contemporâneo é profundamente corporativista, que nas universidades existe uma estrutura de poder que racionaliza a reprodução cega de um determinado padrão através de noções dúbias de objetividade, subjetividade, rigor, racionalidade, etc. Para explicar essa tese, alguns passos são necessários.

Primeiramente, a definição de corporação. Uma corporação é um grupo de indivíduos ou um conjunto de instituições que partilha de interesses que são privados em relação ao público em geral. Em outras palavras, se trata de uma organização que defende os interesses de seus membros independentemente do que isso possa causar para aqueles que não são membros. A Coca-Cola, por exemplo, é uma corporação, porque é composta por um conjunto de empresas organizadas sob uma direção única. Essas empresas não concorrem entre si, como em um modelo de livre-mercado. Em vez disso, elas garantem que o grupo como um todo permanecerá bem sucedido no mercado através de medidas como a divisão de tarefas entre essas empresas, para que o grupo cubra uma grande quantidade de produtos distintos para ocupar o máximo possível do mercado, e também medidas como a compra de pequenas e médias empresas de fora do grupo que poderiam em algum momento concorrer efetivamente com algumas das empresas do grupo. Esse é o aspecto econômico de uma corporação, o monopólio de uma porção do mercado por parte de um determinado grupo que é capaz de exercer poder sobre o mercado em si. Grupos como esse não apenas atendem as demandas do mercado com seus produtos, eles influenciam a formação das demandas através da propaganda coordenada pelas diversas instâncias aparentemente autônomas que formam uma corporação. O fenômeno do consumismo não pode ser explicado sem a compreensão de que existem grupos de grande influência na esfera pública e no mercado que são interessados, por razões óbvias, na criação de uma cultura de consumo extremo.

Existe também o aspecto ideológico de uma corporação, que é frequentemente ignorado pelos estudiosos do tema. Isso ocorre porque se o lucro ou a obtenção de autoridade fosse o interesse único entre os membros de uma dada corporação, esse egoísmo forçaria esses indivíduos a alguma concorrência, cedo ou tarde. Corporações são mantidas na prática pelos benefícios exclusivos que essas associações oferecem, mas no discurso as corporações são mantidas por ideais homogêneos. Por exemplo, como poderíamos explicar a estranha mas comum associação entre uma determinada forma da religião cristã e uma determinada corrente de ideias liberais? O cristianismo chamado de fundamentalista e o neo-liberalismo são em seus fundamentos mutuamente exclusivos; No neo-liberalismo a caridade é facultativa e a desigualdade é considerada natural, enquanto no cristianismo a caridade é um dever e todos são nada mais e nada menos que filhos de Deus. No cristianismo a moral sexual e "os valores da família" são necessariamente um assunto público, enquanto no neo-liberalismo, muitas vezes chamado de anarcocapitalismo, todas essas questões devem ser deixadas por conta dos indivíduos e suas idiossincrasias. No cristianismo a propriedade é irrelevante diante dos bens do espírito, no neo-liberalismo o espírito somente se mostra em termos de propriedade. A explicação para essa associação que compõe os mais diversos grupos de políticos corporativistas ao redor do mundo variando da bancada evangélica no Brasil ao partido republicano nos EUA está no poder de união que existe em uma ideologia. Um grupo que é unido porque cada membro deseja lucrar e ganhar autoridade se desfaz assim que uns membros encontram uma oportunidade de ter sucesso sem os outros, enquanto um grupo que é unido também em torno de ideais como os cristãos muito dificilmente se dissolve, porque os lucros e os outros benefícios práticos conquistados pelo grupo passam a representar para seus membros e diante da sociedade o sucesso de uma visão de mundo. Assim o dinheiro é associado a uma supremacia moral e intelectual, e a profundidade dessa associação define a força das corporações que dominam o mercado e a política.

Mas como o meio acadêmico onde trabalham as nossas louváveis vanguardas intelectuais poderia ser comparado a uma corporação como a Coca-Cola? Como uma postura corporativista poderia existir na Torre de Marfim sem ser imediatamente criticada e repudiada pela nossa eminente classe de mestres e doutores? Um indivíduo começa a desconstruir a pureza do meio intelectual uma vez que percebe que as universidades são apoiadas em uma infraestrutura, tanto quanto quaisquer outras instituições. Uma universidade existe em um terreno, consome energia elétrica, contrata e rejeita profissionais, financia projetos, depende de parcerias econômicas e políticas, etc. No meio acadêmico ocorre circulação de capital, e esse capital é circulado em torno de determinados interesses – não poderia circular em torno de algo que fosse "um fim em si mesmo".

Qual é a finalidade de uma universidade? Não pode ser o cultivo do conhecimento como um fim em si mesmo, porque é inconcebível que tal finalidade seja financiada em uma sociedade capitalista. Uma instituição é financiada para produzir e regular. Uma universidade produz profissionais, produz tecnologia, produz teoria e produz arte. E que essa produção não seja subestimada! Uma das maiores fontes de renda dos EUA é justamente a propriedade intelectual. Uma produção de tamanha importância não poderia ser desorganizada, ninguém investiria uma quantidade enorme de recursos em uma instituição que apenas talvez alcance seus objetivos. Especialmente por estarmos tratando de uma produção associada ao conhecimento, qualquer instituição de ensino superior atual tem em sua estrutura uma burocracia e uma hierarquia destinadas a garantir os resultados dos cursos, das pesquisas, dos projetos de extensão, etc. Assim temos que um pesquisador deve garantir que seu projeto merece ser financiado, e também que um professor deve garantir que seus cursos resultem na formação de profissionais capazes de dar garantias tal como ele mesmo é.

Eu pergunto: como é possível que alguém dê garantias de que sua pesquisa trará resultados? Uma pesquisa é diferente de um estudo. Em um estudo um sujeito obtém conhecimentos que ele em particular não tinha, mas que já eram disponíveis a muitos outros indivíduos e grupos. Uma pesquisa, porém, tem como objetivo expor algo que até o momento não era conhecido. Se uma pesquisa realmente tem chance revelar algo desconhecido, ela também tem chance de não encontrar absolutamente nada – sua hipótese inovadora pode ser revelada tanto como imbecil quanto como genial, porque precisa ser afastada significativamente daquilo que já foi produzido na área em questão. Do contrário seria um estudo, uma retomada, uma revisão de literatura mas não uma pesquisa. A partir disso, eu repito a pergunta. Como alguém poderia garantir os resultados de sua pesquisa, se uma pesquisa é exatamente uma busca por algo novo, algo a acrescentar? Existem duas respostas, uma honesta e simples e outra que é desonesta e apenas soa complexa. A resposta honesta é que não é possível oferecer essa garantia porque a descoberta e a criação envolvem grande risco de fracasso. A resposta acadêmica é que através do estudo rigoroso das referências indispensáveis do meio intelectual um indivíduo se forma como um profissional metódico que avança o conhecimento sem chance efetiva de fracasso. Essa resposta é desonesta porque ela obscurece a distinção entre estudo e pesquisa; Um doutor em filosofia, por exemplo, publica um artigo comparando a filosofia política de Rousseau e a ética de Kant como se isso fosse o resultado de uma pesquisa. Não importa qual espécie de comparação seja essa, se trata de um estudo, de uma revisão, porque essas são teorias de autores que analisaram fenômenos, teorias já registradas no meio acadêmico. Porém, o fato dessa revisão conter um ou dois parágrafos de interpretação peculiar sobre os textos basta para que esse trabalho seja considerado uma pesquisa, uma pesquisa inovadora (interdisciplinar!) além de tudo. Pense por um momento nisto: Quem pagaria alguém para fazer uma pesquisa se uma pesquisa fosse apenas o estudo de algo já bem conhecido?

Um burocrata que não entende aquilo que está financiando. Nossa cultura, no que concerne ao trabalho e ao estudo, é uma cultura de especialistas. Especialistas se tornam autoridades em seus respectivos campos de atuação por uma questão de privação. Um determinado trabalho ou analise se faz necessário e apenas alguns indivíduos são capacitados para atender essa demanda. Uma vez que os administradores e os burocratas não são especialistas nas áreas que regulam, os critérios de racionalidade, objetividade, ciência, inovação e excelência são definidos pelos especialistas...

Chego com isso a outra pergunta: Como é possível que algum plano de ensino, seja lá qual for, garanta que ao menos um terço dos alunos submetidos a ele serão formados como intelectuais excelentes, criativos, metódicos e virtuosos? Acrescento ainda outra pergunta: Como alguém, seja lá quem for, seria capaz de definir em que consiste ou deve consistir a formação de inúmeros indivíduos? Assim como na pergunta feita anteriormente, existe para essa uma resposta honesta e uma resposta acadêmica. A resposta honesta é que não é possível que um plano de ensino tenha resultados previsíveis e que a própria ideia de formação é um tanto dúbia. Um professor que expõe seu conteúdo durante duas horas a uma turma silenciosa pode imaginar que inseriu determinados conteúdos nas mentes de todos os alunos que prestaram atenção e que um dos desdobramentos dessa inserção de conteúdos – pretensão que também existe em "dinâmicas dialógicas" – é a formação intelectual desses alunos. Pobres alunos e pobre professor! Para que tal transmissão ocorra ela precisa ser uma doutrinação e um esvaziamento, e é justamente a isso que professores e alunos se submetem, por covardia, ignorância e tolice. Como um indivíduo que conclui seu doutorado pode garantir que aquelas regras às quais se conformou durante tantos anos o transformaram em um intelectual do mais alto nível e não simplesmente em um reprodutor cego de uma estrutura de poder? Acredito que não preciso repetir o padrão.

Se a garantia de excelência que toda a estrutura de poder das universidades visa efetivar é fundamentalmente um erro, porque o fracasso faz parte do processo mas não pode ser reconhecido (financiado) o que essa estrutura está de fato garantindo? Qualquer coisa que seja conveniente aos especialistas encarregados de determinar o que significa objetividade e racionalidade em cada área de atuação. Em geral, aquilo que é mais confortável é aquilo que parece mais conveniente. Um sujeito com mestrado ou doutorado se submeteu durante um longo tempo a uma disciplina e a um esforço, sob a promessa explicita de que ele mesmo se tornaria como seus professores algum dia e sob a promessa implícita de que seus professores eram de fato competentes e bons exemplos. Por um lado, os resultados do envolvimento no meio intelectual são necessariamente incertos, sendo o intelecto diretamente conectado à vontade, e por outro a promessa que permeia esse meio intelectual é de uma garantia de que a excelência se encontra na academia.

Uma vez que o sujeito é colocado em uma posição (doutor) que não necessariamente merece ocupar, por ser um grande privilégio em relação a indivíduos que talvez sejam mais competentes, esse sujeito precisa, inclusive para manter a consciência em paz, garantir para si mesmo e para os outros que a hierarquia é válida e necessária e que ele merece sua posição. Como um sujeito, por exemplo, que não foi "formado" como um filósofo pode passar por filósofo? Trabalhando com indivíduos que foram enganados da mesma forma e que agora precisam enganar a próxima geração. Trocando seus trabalhos inférteis com colegas que também produzem trabalhos desse tipo. Formando alunos para que eles reproduzam essa estrutura. Recusando trabalhos que tenham qualidade mas que não se adequem aos critérios que regulam esse teatro. Construindo a ideia de que essa operacionalidade é prova de uma verdade. Mantendo uma posição de privilégio através de uma postura que se pretende como objetiva e científica. Em um conceito, corporativismo acadêmico. Um corporativismo baseado não no acúmulo de capital mas na ocupação de determinadas posições de autoridade intelectual, um corporativismo que faz o monopólio da ciência e da filosofia.

Um indivíduo qualquer que queira propor uma pesquisa de fato na universidade não irá encontrar um orientador, porque os professores irão recusar sua proposta inédita ou, pior, transforma-la em uma proposta comum através de "pequenos ajustes para que o projeto seja aprovado". A mercantilização do conhecimento, através das patentes no campo da tecnologia e da propriedade intelectual no campo das ciências faz com que a reputação e a sobrevivência de inúmeros indivíduos passe a depender, fundamentalmente, de mentiras, e disso se segue a conduta corporativa que preserva a qualquer custo a hierarquia obsoleta do meio acadêmico internacionalmente.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Poder e Linguagem

Nossas relações sociais e possibilidades criativas não são influenciadas apenas por fatores econômicos e biológicos mas também, e talvez de maneira decisiva, por aspectos culturais que são muito mais sutis. A construção da linguagem, as reformas pelas quais cada linguagem passa e a relação entre umas linguagens e outras escondem do observador desatento um vasto domínio de relações de poder. Diante de todas as formas grosseiras de controle que observamos na atualidade, como o sistema carcerário a nível nacional e as campanhas militares a nível internacional, diante de todo o espetáculo das relações internacionais contemporâneas e das mídias locais dominadas pelo sensacionalismo, muitas vezes não olhamos para coisas sutis como as palavras que aprendemos a usar e, principalmente, por quê passamos a usá-las.

Uma das línguas oficiais na Africa do Sul é o Afrikaans, também encontrado em uma variação chamada Africâner. O nome sugere que se trata de uma língua nativa, originada pela cultura local, assim como o português veio de Portugal ou o espanhol da Espanha, etc. Na verdade, o Afrikaans é uma criação européia elaborada no período colonial, principalmente por holandeses, mas com forte influência das línguas alemã e inglesa. Estudamos nos livros que o Afrikaans é um resultado do encontro cultural entre os colonizadores europeus e a população local, mas pense por um momento sobre como esse tipo de "encontro" geralmente ocorria nas colônias de exploração*1. De maneira semelhante ao que se sucedeu no Brasil e na Austrália, a Africa do Sul não era um território único e tanto menos uma nação, mas sim uma multiplicidade de povos separados por fronteiras estabelecidas culturalmente, inclusive por motivos religiosos, em alguns casos. Por exemplo, para os povos que organizavam suas famílias em culturas totemistas, nas quais o parentesco não era dado entre consanguíneos mas sim entre indivíduos categorizados sob o mesmo clã (ex. família do lobo, família da tartaruga,etc.), a organização territorial vigente era fundamental para que se evitasse a desorganização dos costumes e hierarquias locais. Qualquer tentativa externa de reconfigurar a organização territorial desses povos certamente seria um precedente para terríveis conflitos no futuro.

Mas os colonizadores não queriam que essa diversidade permanecesse, pois era difícil de organizar e, portanto, difícil de explorar. Os costumes, as crenças e as fronteiras dessa multiplicidade de povos eram um problema para os exploradores europeus. A solução encontrada foi a unificação dos locais sob uma única linguagem. A unificação da vida espiritual e da moralidade através do cristianismo da igreja católica e a redistribuição dos territórios de acordo com os conhecimentos e interesses europeus foram mudanças efetivadas e consolidadas pela unificação de todos os dialetos tribais sob uma única linguagem.
A transformação de centenas de povos em um único nome, a redução de uma enorme diversidade cultural a um conjunto estrito de palavras, criado por um povo dominador com uma semântica voltada especificamente para seus fins. Não houve uma troca cultural entre as tribos africanas, indígenas e aborígenes e os colonizadores europeus *2, apenas a destruição da cultura política e religiosa desses nativos, realizada pela reforma forçada da linguagem tanto quanto pelo exercício da força bruta. Com essa abordagem dupla se controlava tanto o corpo quanto o pensamento dos povos nativos. O controle da linguagem sempre fez parte das grandes campanhas militares porque os conceitos, as categorias e até mesmo as lembranças são crucialmente dependentes das palavras e das regras de sentido estabelecidas entre elas. A subjugação de uns povos perante outros não é um fenômeno exclusivo do período colonial, evidentemente. Na atualidade, podemos flagrar muitas intrusões de umas línguas em outras, e minha opinião é que deveríamos fazê-lo com grande alarme. Notemos por um momento os anglicismos, modificações que algumas línguas sofrem em adaptação à cultura de países de língua inglesa, quase sempre em reação ao que se observa na cultura estadunidense. Essas estranhas mudanças na língua local em função de uma cultura estrangeira ocorrem em diversos tipos. Vamos discutir três.

O primeiro é, ao menos aparentemente, mais inocente. Se trata da absorção direta de expressões da língua inglesa, como mouse, shopping, etc. Embora a presença constante dessas palavras em conversas e na mídia fortaleçam nossa tendência a imitar o modo de vida americano (como posto pela propaganda), essas mudanças não distorcem a sintaxe ou a semântica das expressões originais de nossa língua e não soam estranhas em frases como "Preciso ir comprar outro mouse". Mesmo assim, é interessante notar que os portugueses não adotam anglicismos, dizendo "Preciso ir comprar outro rato" e, na Espanha, além de muitas de suas ex-colonias, não apenas se recusam anglicismos como nomes estrangeiros são traduzidos para as versões locais*3, para preservar a língua. O segundo tipo é mais grotesco e expressa melhor o objeto que quero expor. Principalmente na academia e no meio artístico, a admiração cega ao estrangeiro chega a um ponto no qual falsos cognatos são popularizados e transformados em jargão. Por exemplo, o termo "revisão de literatura". Nas academias norte-americanas, em uma resposta hipócrita às críticas ao sistema universitário hierárquico que sufocava todo o ímpeto inquisitivo e criativo dos alunos de graduação, o termo "review" passou a ser empregado como nome para os resumos de textos cobrados pelos professores. Esse termo não significa "revisão", nem nada parecido, mas sim crítica ou avaliação de obras, produtos e estabelecimentos. Entretanto, professores de ciências naturais no Brasil, como muitas vezes estudam apenas na lingua franca da ciência contemporânea, importaram além do pensamento norte-americano algumas de suas práticas didáticas, através do termo "literature review" ou , traduzido horrivelmente, "revisão de literatura". O termo "resenha" já cumpria exatamente a mesma função por aqui, inclusive em toda sua hipocrisia*4. Também importamos com isso a tendência de fazer referência à literatura como se fosse uma entidade, com frases como "você deve estudar a literatura". Ora, a literatura? Com esse erro de pensamento e de linguagem professores fingem que os autores a serem lidos não são um recorte arbitrário entre outros mil possíveis, mas, simplesmente, "a literatura". O terceiro tipo é menos acessível, porque requer uma observação atenta, conhecimento profundo da língua inglesa e algum incômodo com essas questões. Se trata de quando podemos observar que, embora um indivíduo esteja falando em português (por exemplo), a sintaxe de suas falas está em inglês. Quando um indivíduo chega a esse ponto, ele muitas vezes já pensa em fazer as malas e migrar para a terra da oportunidade.

Esse tipo de intrusão linguística certamente não ocorre apenas com o inglês, embora esse caso seja um tanto peculiar graças ao fenômeno sem precedentes que é a propaganda internacional da mídia estadunidense. Quem cursou filosofia ou esteve em algum tipo de encontro tipicamente frequentado por acadêmicos em filosofia quase certamente teve a oportunidade de observar os supostos filósofos falando palavras em francês ou alemão com seriedade e orgulho -- geralmente termos pronunciados de maneira incorreta e, muitas vezes, termos que são absolutamente cotidianos nas línguas mencionadas, mas que são tratados pelos acadêmicos locais como se fossem as palavras mágicas do mais poderoso grimório. Esse é um fenômeno muito estranho se levarmos em consideração que toda língua tem seus prós e contras. Por exemplo, o inglês não tem o inconveniente de atribuir inutilmente gênero a praticamente todos os substantivos como o português. Em inglês não se diz a operária ou o professor, mas simplesmente the worker e the teacher. Por outro lado, em português nós temos os verbos ser e estar, enquanto o inglês tem apenas o verbo to be. No português eu posso dizer sem ambiguidades que sou feliz ou que estou feliz, enquanto no inglês e em muitas outras línguas sempre existe ambiguidade entre esses dois tipos de proposição, algo que atrapalha significativamente a comunicação em debates antropológicos e filosóficos. A ideia de que certas línguas são absolutamente superiores, popular por exemplo na Alemanha e entre seus idólatras*5, pode apenas partir de um tradicionalismo cego. Se o alemão permite a união de várias palavras sem perda de sentido, o português permite distinções ausentes em outras línguas, o japonês tem um alfabeto específico para conceitos*6 e outro específico para expressões estrangeiras, etc. A diversidade que há entre as línguas deveria servir como um incentivo a mais para que os intelectuais de cada nação criem obras em suas línguas nativas, para suas línguas nativas.

Não deve ser por coincidência que os acadêmicos que mostram essa tendência mostram também o mais profundo desprezo pela originalidade e pela autenticidade -- quando está próxima. O hábito doente de sempre ceder o próprio juízo a autoridades intelectuais estrangeiras não poderia existir sem ser acompanhado pelo sintoma que é o desprezo pelas palavras nativas em comparação com aquelas das figuras idolatradas. A razão dada pelos acadêmicos locais para essa obsessão é o suposto fato de que ler uma obra na linguagem em que foi escrita é melhor que ler uma tradução. Certamente não é uma justificativa absurda, mas não é completamente correta. Primeiramente tenhamos em mente que ninguém que lê um livro visualiza a mente do autor tal como estava no momento da escrita. Para que alguém possa entender absolutamente o sentido de uma obra, é necessário que o indivíduo seja ninguém além do próprio autor, com todas suas experiências, suas memórias, seus impulsos. Cientistas, filósofos e artistas buscam a obra de outros intelectuais com o objetivo implícito de obter inspiração para a própria obra, nunca com o objetivo de citar as obras alheias até o fim da vida, como os acadêmicos fazem. Inspiração, não influência. Para aqueles com esse objetivo mais elevado, a diferença de utilidade entre a obra original e a traduzida é muito pequena, embora eu deva reconhecer que o prazer proporcionado pelas nuances das grandes obras costuma ser reduzido na tradução, ou seja, que existe diferença de valor. Mas isso não justifica a obsessão dos acadêmicos por disputas como "Qual é a melhor tradução de Ubermensch?". Carreiras inteiras desperdiçadas com questões que simplesmente não tem resposta, porque não são questões para ninguém que tenha alguma criatividade no espírito. Antes fossem dedicadas a uma produção própria na língua local, mesmo que não fosse algo ao nível dos clássicos, porque isso seria um investimento nas gerações futuras de intelectuais nacionais, em uma mudança decisiva em nosso cenário cultural atualmente entediante.

Mas certamente não é apenas por aqui que se compreende mal o peso político da linguagem. Existem em todos os países dos quais a história não me é desconhecida diversos termos nascidos de segregações extremamente violentas entre determinados grupos em cada cultura, e em muitos desses países os esforços para eliminar esses termos não é compreendido pela maioria da população. Nos Estados Unidos existem termos como nigger e faggot, o primeiro usado para acusar os negros de serem parte de uma única raça ruim de procedência impura, e o segundo usado para acusar os homossexuais, especificamente homens, de serem degenerados irrelevantes. São duas demandas que podemos observar com clareza na história da homofobia e do racismo nos EUA. Note que não existe um termo pejorativo estadunidense específico para as lésbicas, principalmente porque nessa história elas foram tomadas como objetos sexuais. Em vários outros lugares do mundo nos quais a homofobia foi administrada mais de perto por instituições religiosas existem termos pejorativos específicos para esse grupo também. No Japão, existe o termo gajin que se refere a estrangeiros de maneira extremamente pejorativa. Esse termo é um resultado do encontro entre o sonho de um mundo unificado e japonês e as interações desastrosas com os europeus, algo que pode ser observado desde o encontro entre as explorações ocidentais e o Nippon até o final da segunda guerra mundial. Mesmo hoje, muitos japoneses são racistas com estrangeiros, apesar de não terem relação nenhuma com a ideologia patriota extrema que era universal entre os vários feudos que disputaram a era Sengoku , que resultou na forma atual do império japonês. Isso talvez se deva ao impacto cultural das imposições feitas ao Japão quando foi derrotado na segunda guerra mundial, além da cicatriz deixada pelos bombardeios atômicos. Cada cultura tem alguns termos destinados especificamente à violência psicológica e social, e os alvos desses termos mudam de acordo com cada história da violência. Não tenho uma opinião sobre quais são os melhores mecanismos institucionais para corrigir o lado corrupto de cada linguagem*7, inclusive porque não acredito muito em instituições. Mas deve ser evidente para qualquer um que considere o peso da história nas palavras que termos como nigger não são apenas gírias, e que seu uso é de fato uma decisão política, no mínimo uma opção pela cínica indiferença diante do estigma que outros carregam.

As palavras não são apenas ferramentas para a construção de proposições, e não são apenas efeitos secundários dos fenômenos principais das culturas. Palavras definem possibilidades de pensamento, palavras mudam pensamentos, provocam sensações, inspiram e reprimem. Palavras são ações em todos os sentidos. Por esse motivo penso que o estudo da linguagem merece um esforço além do analítico, um esforço capaz de revelar esses jogos linguísticos de poder e de revelar problemas e possibilidades que atualmente ignoramos. Se consideramos que ceder as palavras é o mesmo que ceder as ações, que ceder o direito de discurso é o mesmo que ceder o poder, a escolha das palavras ganha novamente a gravidade e o impacto que tem-se perdido na profusão de comunicações irrelevantes que a mídia virtual promove. Quantas verdadeiras possibilidades se abririam se o termo "história da filosofia" desaparecesse de nossas mentes ? Se todas as palavras forçadas para dentro de nossas jornadas intelectuais por idolatras cegos e autoritários se tornassem para sempre mudas? O discurso pode ser uma arte de criação, uma arma de destruição em massa, um chamado à ordem ou um retorno ao caos. De qualquer forma, as palavras merecem mais respeito do que têm recebido por aqui. A adoração cega das línguas europeias é um resíduo do período colonial que preserva antigas relações de poder que empobrecem nossa cultura.


*1- Em geral, livros de história se referem às colonias australianas como de povoamento, em semelhança às do Canada. Mas muitos historiadores questionam esse termo, por razões que deveriam ser obvias. Penso que os aborígines perseguidos, mortos ou doutrinados, concordariam que o termo precisa ser revisto, no caso da Austrália ao menos.

*2- Não quero dizer com essa afirmação que a cultura européia não incorporou absolutamente nenhum elemento das culturas tribais em questão. Quero dizer que as partes envolvidas não aprenderam coisas uma com a outra em uma relação benéfica de troca, mas sim em um processo violento de subjugação. Pense sobre o quanto a linguagem nas regiões colonizadas mudou em comparação com as línguas oficiais dos povos dominantes como o inglês e o francês.

*3- Me chamariam de Enrique, assim como chamam Friedrich Nietzsche de Frederico.                

*4- A resposta é hipócrita porque demandar que os alunos façam uma "avaliação crítica" de textos pré-determinados pelo cânone acadêmico não é nenhum sinal de liberdade intelectual e criativa, porque os critérios de "rigor" que os acadêmicos geralmente estabelecem resultam na impossibilidade de se criticar alguma posição sem estudá-la exaustivamente, além dos comentadores famosos associados a ela. A manutenção do corporativismo acadêmico permanece em primazia nas universidades sobre os problemas do mundo atual e sobre as novas gerações com seus anseios. A propósito, a tradução correta do termo é "crítica literária", um termo bem estranho de se empregar no meio científico contemporâneo no qual o empirismo é uma desculpa para se escrever mal. Acrescento ainda que o sentido do termo foi distorcido pelos acadêmicos norte-americanos como mais um sinal da decadência de seu sistema educacional , e copiado cegamente por brasileiros como se fosse parte do melhor modelo educacional do mundo. Para quem quiser ver por conta própria: http://writingcenter.unc.edu/handouts/literature-reviews/. Comecem a copiar o sistema educacional cubano ou o finlandês e eu certamente terei menos problemas para reclamar sobre.

*5- Heidegger disse uma vez que só se faz filosofa em alemão. Eu imagino que um sujeito esclarecido como ele deve ter feito esse comentário como uma brincadeira, fazendo alusão à sintaxe muito peculiar da língua alemã e à capacidade de juntar palavras que ela proporciona. Aqui vai, então, um lembrete para aqueles que também tem uma fixação por essas peculiaridades do alemão. Em português ninguém precisa perder tempo com junções mirabolantes de palavras para expressar a ideia de ser em diferentes tipos. Um brasileiro deslumbrado com coisas como palavrasunidasemconceitos é como um alemão fascinado com a diferença nos artigos entre a pedra e o pedregulho, com a multiplicidade de sonoridades diferentes frases que tem exatamente o mesmo sentido podem ter em português. Só se faz poesia em português.

*6- Kanji (ideogramas). Em japonês, a palavra amor é gramaticalmente diferente do conceito amor.

*7- A criminalização de termos pejorativos é um tópico muito difícil porque a história de certos termos é inequivocamente a história da violência, mas indivíduos não nascem com toda a história em suas mentes e são capazes de usar essas palavras sem violência. Deixo de lado a questão aqui porque ela requer um ensaio próprio.

sábado, 17 de outubro de 2015

Crítica da autoridade

O que se encontra no anarquismo em geral e em todas as suas derivações é uma crítica da autoridade, que podemos observar sob duas perspectivas, entre outras. A primeira é a da rejeição da validade moral da autoridade, de seu papel como algo natural e positivo nas relações humanas. A segunda é da desconstrução da efetividade da autoridade, da noção de que, uma que o indivíduo está sob efeito da autoridade alheia, há pouco que ele possa fazer até que algum evento externo a essa relação lhe traga uma oportunidade. Em linhas gerais, os argumentos morais a favor da autoridade são: A autoridade faz parte da natureza humana e, portanto, seu uso é correto e necessário, principalmente por razões de segurança; A autoridade proporciona diversos benefícios e possibilidades que seriam impossíveis de outra forma, como a proteção dos direitos dos indivíduos e a garantia de que iniciativas coletivas sejam conduzidas da forma mais eficiente, por exemplo o trabalho industrial; A autoridade do tipo estatal é uma continuação da autoridade familiar, e tem um papel de semelhante importância na construção e preservação de valores que não existiriam de outra forma; A autoridade do tipo intelectual garante a preservação do legado cultural, em todos os sentidos, e sua continuidade. Certamente existem outros aspectos a serem considerados, mas me deterei nesses. Estamos tratando de argumentos que naturalizam a autoridade, argumentos que atribuem à autoridade as características desejáveis das sociedades modernas, argumentos que atribuem à autoridade a boa constituição psíquica dos indivíduos e argumentos que atribuem à autoridade a continuidade dos grandes projetos intelectuais da humanidade.

Podemos definir a autoridade como uma relação de poder sublimada, de duração mais extensa que os afetos relacionados às relações simples de poder . Por exemplo, se eu impor, através de uma ameaça, um comando a alguém, esse indivíduo precisará seguir minha ordem apenas enquanto eu ainda estiver apto a exercer violência sobre ele. Com um pouco de meditação, podemos ver como essa relação é efêmera, como ela pode ser facilmente revertida, abandonada e esquecida. Entretanto, se o indivíduo que eu comando atribui a mim uma figura de poder, se ele imagina que eu sempre teria o poder de exercer a violência e que eu sempre tomaria conhecimento de sua desobediência, de uma forma ou de outra, eu não tenho apenas força, mas também autoridade, porque posso comandá-lo sem fazer recurso constante ao poder concreto da força bruta – meu subordinado interiorizou meu poder, e pode inclusive exercê-lo sobre outros indivíduos como meu representante, meu delegado. Esse foi apenas um exemplo, talvez o mais clássico, mas a autoridade não se dá apenas pela força bruta. Se é uma crença comum que apenas um determinado indivíduo pode providenciar um determinado objeto de desejo, esse indivíduo ganha autoridade sobre os demais. Por exemplo, na nossa cultura de especialistas, cada especialista é uma autoridade intelectual em seu próprio campo de atuação. Se trata de uma relação de autoridade baseada em privações em vez de ataques. Não é por acaso que muitos pensadores como Weber definiram a autoridade estatal como, simplesmente, o monopólio da violência e da força. Com essa definição, difícil de questionar com contra exemplos ou outras hipóteses, podemos analisar os argumentos comuns esboçados acima, da perspectiva de que a autoridade depende de uma idealização das relações de poder imediatas, de que a autoridade não é dada pelos eventos, mas pela memória e pela interpretação destes.

Os argumentos naturalistas em geral têm um histórico de serem mostrados como falsos pela simples mudança das culturas ao longo do tempo, além da descoberta de povos com outros costumes. Por exemplo, na civilização ocidental tendemos a acreditar que o arranjo usual de nossas famílias é biologicamente natural, e alguns de nós se ocupam de explicar qual é o papel desse arranjo na evolução. Entretanto, existem muitas culturas tribais que se organizam em algo que chamamos de “totemismo”. Nessas culturas, as famílias não são definidas como “um homem, uma mulher, seus filhos e seus associados como avós, tios, etc”. Em culturas totemistas, as famílias são definidas pela associação de alguns indivíduos a totens que representam animais. Existe um grupo de indivíduos pertencente ao totem do lobo, outro ao do touro, e assim por diante. Não é a relação sanguínea que agrupa esses indivíduos, mas diversos fatores contextuais ao nascimento de cada indivíduo, que variam de tribo para tribo. Nessas culturas, a repulsa pelo incesto também existe, mas não por consanguíneos, e sim por membros do mesmo totem. Note que nossa biologia talvez tenha razão sobre o mecanismo fisiológico que causa essa repulsa, mas meu ponto é que a sensação de que conhecemos a natureza biologicamente determinada da família é apenas resultado da uniformidade de nossos costumes, dado que nossa civilização dialoga apenas com outras que mantém famílias com estruturas iguais ou muito semelhantes. Freud discutiu esses casos e questão do incesto extensivamente ainda no século 20, apoiado em trabalhos feitos em séculos anteriores. As evidências antropológicas de que a afirmação “esse costume faz parte da natureza humana” tende a ser enviesada no pior sentido são abundantes. Além disso, eu posso acrescentar que o racismo e o sexismo foram também defendidos por argumentos que tomavam o status quo como fenômeno da natureza humana. Será estranho dizer que algo semelhante se aplica à autoridade?

É claro que é natural que nós tenhamos influência uns sobre os outros e que essa influência não seja sempre simétrica. Em outras palavras, é natural que existam relações de poder entre os seres humanos assim como elas existem entre quaisquer seres vivos dotados de consciência. Mas a autoridade não é tão simples, nossas hierarquias são compostas por títulos de autoridade, pelas instituições reguladoras desses títulos, pela propaganda que cerca as figuras de autoridade, por desigualdades econômicas, etc. Esses são apenas exemplos de fatores, entre diversos outros, que certamente poderiam estar organizados de outra maneira, porque de fato existem de outras formas em sociedades diferentes, e ainda sequer existem em algumas outras. Um exemplo de pressuposto que é desfeito por esse conhecimento é a noção de que o trabalho não existiria sem autoridade. Nas sociedades industrializadas, o trabalho foi moralmente justificado de uma maneira em particular, entre muitas outras possíveis. Muitas pessoas argumentam que em um espaço de liberdade o trabalho industrial necessário seria abandonado, esquecendo de que isso é principalmente um resultado de como nossa filosofia do trabalho se desenvolveu em torno de um elogio do sujeito egoísta que usa do trabalho como fim para obter propriedade. Em torno do pensamento burguês, como diriam os marxistas. Nós organizamos o trabalho, na prática e na teoria, como um desprazer para todos, como uma disputa agressiva por recursos. Nossas indústrias são construídas com o pressuposto de que o trabalho por si mesmo não pode e não deve estimular nada além da produção e da competição. Em nossa civilização, mesmo que um indivíduo não seja ensinado pelos seus responsáveis a seguir essa lógica de sofrer (ou fazer sofrer) por dinheiro, o indivíduo será ensinado dessa maneira pelo mercado de trabalho, que perpetua essa forma de pensar através da prática. É por esse motivo que a noção de que o trabalho é um sofrimento com fins egoístas nos parece tão natural, quando de fato em povos não industrializados, ou povos que vivem às margens da civilização industrial, o trabalho ocorre de maneira muito mais espontânea e por vezes ocorre como uma forma de arte, de expressão e até mesmo de puro entretenimento. É bem provável que a noção de que o trabalho precisa ser forçado por alguma autoridade seja mantida quase que exclusivamente pelos próprios responsáveis pelo funcionamento do mercado de trabalho, dessa estrutura sofisticada de autoridade que muitos intelectuais erroneamente consideram como um espaço de liberdade.

Eu certamente não sou o único a sustentar que nossas autoridades provocam os problemas que prometem solucionar, e há muitas evidências para isso. O exemplo mais claro é a questão da segurança, tanto no sentido civil quanto no sentido militar. A existência de uma polícia, no caso do Brasil uma polícia militarizada, costuma ser justificada com base na ameaça que são os “marginais armados”. Mas tomando o Brasil como exemplo, devemos nos perguntar: Por que existem favelas? E ainda: Por que existe no Brasil um poder armado paralelo ao Estado? Ora, justamente porque o Estado, do qual o mercado por essência faz parte, criou um grupo enorme de indivíduos privados de diversos direitos (educação, saúde, etc.) que ao longo do tempo se organizou em comunidades das quais criminosos faziam parte, criminosos que ao longo do tempo se tornaram figuras de influência dentro dessas comunidades, inclusive por providenciarem segurança interna em muitos casos. Os criminosos que aparecem nas estórias de horror diárias que surgem em nossas mídias não servem como base para a explicação da criminalidade em geral, um problema de uma parcela gigantesca da população mundial que não segue as mesmas regras dos casos bizarros apresentados diariamente pelos sensacionalistas. O Estado brasileiro marginaliza o indivíduo e depois o prende por seus crimes, usando outros indivíduos particularmente perversos como desculpa para tratar de todos os criminosos como se fossem vilões. O “livre mercado”, um antigo dogma da economia ocidental que na verdade é um simples reflexo da incompetência administrativa de nossas elites, permite que armas altamente destrutivas cheguem às mãos de organizações criminosas, permitindo que o crime organizado se torne uma ameaça efetiva que precisa ser contida através de uma polícia altamente violenta. Com as ameaças militares, ocorre praticamente o mesmo. Governos como o dos Estados Unidos permitem através do “livre mercado” que a industria bélica lucre com armamentos vendidos a milícias africanas e ditadores no oriente médio, por exemplo. Posteriormente, surgem frases como aquelas de G.W. Bush “nós ainda vivemos em um mundo perigoso”, que sustentam a ação militar, o desenvolvimento da indústria bélica e a suposta impossibilidade de um mundo em paz. O estado de natureza de Hobbes, a “guerra de todos contra todos”, quase certamente é mais um entre os preconceitos antropológicos que estou tentando expor, porque podemos observar que a violência não surge em massa como uma misteriosa corrupção da mente humana, mas como uma resposta a problemas concretos que é validada por diversos discursos, especialmente esses de caráter misantropo, que causam parte daquilo que criticam. Eis a fórmula para a banalização do mal.

A relação do indivíduo com o mundo por intermédio de figuras de autoridade é realmente um fator importante para a formação da subjetividade tal como a conhecemos. O patriotismo, por exemplo, leva indivíduos a se importarem com causas que de outra forma lhes seriam alheias, e fornece um senso de pertencimento cuja falta atormenta muitos. A existência da autoridades oferece um apoio psicológico, e esse é um dos motivos pelos quais os indivíduos interiorizam as figuras de autoridades e passam a defendê-las. É verdade que isso ocorre, mas não seria isso tudo justamente mais uma base para argumentos contra a preservação das autoridades? Mesmo se Freud tinha razão sobre a origem das figuras de autoridade, nas figuras do pai e da mãe, temos de manter em mente que o fato de que os indivíduos são levados naturalmente a uma analogia inconsciente entre os pais e os professores, por exemplo, não significa que essa analogia seja correta ou positiva. Naturalidade nem sempre implica em bem ou perfeição como alguns imaginam. O apoio psicológico resultante da confiança em autoridades bloqueia, a meu ver, o desenvolvimento intelectual e moral do indivíduo, Por exemplo, é mais fácil ler os textos de um kantiano do que ler uma autêntica obra do próprio, mas o enfrentamento direto de tais dificuldades permite que o indivíduo entenda suas limitações intelectuais e trabalhe para superá-las, enquanto a delegação do problema gera apenas uma ilusão de sucesso. Por extensão, é mais fácil ler Kant que escrever obras como as suas, mas vale novamente o raciocínio. Ser patriota, ter um partido, ter uma ideologia são todas coisas que dependem de autoridades e que resultam em uma confortável simplificação do mundo. Mas justamente isso é um sinal de corrupção. Se dois países estão em guerra, o que nos leva a acreditar que os soldados de um país merecem a morte mais que os de outro? Nenhum fato, se a história nos ensina qualquer coisa sobre a questão. O que nos leva a estarmos de acordo com tudo que um determinado grupo sustenta e a recusarmos tudo que alguns outros sustentam? Nenhuma boa razão, se as discussões atuais são algum exemplo significativo. A confiança em autoridades intelectuais coloca barreiras confortáveis em nosso próprio raciocínio, a confiança em autoridades morais faz o mesmo e ainda transforma o mundo em uma fantasia de heróis e vilões.

Levando em consideração esses efeitos negativos do Estado, e que existem muitos outros, devemos nos perguntar: O que é exatamente o Estado? De qualquer perspectiva, o Estado é uma abstração, um produto ideal de uma série de estruturas concretas que não teriam por si mesmas ou mesmo em combinação (na ausência do conceito) o poder sobre cada indivíduo que o Estado tem. Se, por exemplo, o poder sobre o corpo que a polícia tem sobre mim existe em forma de abstração – porque ela não é onipresente nem onisciente – se o poder sobre a mente que os doutos tem sobre mim existe em forma de abstração, se a influência do Estado me atinge por intermédio de minha própria mente e, portanto, de minhas ideias, o poder do Estado é um fantasma, que eu escolho continuar imaginando. A coerção não vem dessa abstração, mas de indivíduos que assim como eu continuam imaginando que esse fantasma exerce sobre eles sua vontade. Os serviços públicos também não são prestados por um fantasma, mas por pessoas, que aprenderam com seus professores que alguma espécie de orientação externa é necessária para que o indivíduo entenda qual ação ou trabalho é pertinente a cada contexto. Esses professores também escolhem a servidão pela crença no mesmo fantasma, quando ensinam aquilo que são forçados a ensinar não pelos seus diretores – que, novamente, não são onipresentes ou oniscientes – mas pelas suas próprias memórias desses diretores, e de seus antigos professores. São as condições materiais e as interações reais entre indivíduos que exercem nossas relações de poder. Não existe mercado, existem pessoas vendendo e comprando coisas (e outras pessoas). Ninguém é afetado pelo mercado, cada um é afetado por transações específicas. Dessa forma, tudo aquilo que é providenciado ou privado pelo Estado é, na verdade, realizado por indivíduos que atribuem suas ações a uma instância superior de presença imaginária, indivíduos que sustentam juntos um fantasma.

A autoridade em geral funciona de forma semelhante. Um exemplo. Se um especialista, uma autoridade intelectual, resolve um problema, não foi seu título (mestre, doutor , etc.) que gerou resultados, mas uma ideia ou ação especificamente, não essa garantia imaginária de sucesso mas o sucesso na contingência, em constante risco. Sendo assim, sendo o sucesso ou fracasso características de ações específicas e não características que um indivíduo realmente possa manter dentro de si através de um título bom ou mau, alguém sem aquela autoridade poderia também resolver o problema, mesmo que de outra forma. Será mesmo tão estranho afirmar que a autoridade e as hierarquias são dispensáveis e, no fundo, imorais? A autoridade como a conhecemos é exercida através de ideias, porque não poderia ser duradoura de outra forma, e me parece difícil negar que muitas de nossas ideias são erros, dogmas e mentiras. Penso que o espírito questionador que enaltecemos hoje apenas pode ser autêntico se complementado por uma postura desobediente.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Sobre Anarquia

A ideologia anarquista é muito mais recente que a palavra "anarquia". Em seu uso mais antigo, "anarquia" faz referência a um fracasso político no qual a falta de administração da sociedade por parte de um governo resulta em um estado de desordem. Essa interpretação do termo geralmente parte de indivíduos que tomam a autoridade e suas instituições como características naturais de uma sociedade avançada. Originalmente, o termo "anarquista" era um insulto sinônimo de "desordeiro". Foi apenas no século 19 que alguns intelectuais socialistas se declararam anarquistas, como uma resposta irônica ao modo como suas ideias políticas e econômicas eram recebidas por seus interlocutores, interessados em reformar o governo. Por causa da paixão de alguns e da repulsa de outros por essas ideias a ironia se perdeu com o tempo, e o anarquismo se tornou o nome de uma ideologia. Apesar de anarquistas declarados terem sido protagonistas de muitos eventos importantes ao longo da história, o anarquismo está atualmente às margens nos debates políticos.

A propaganda anti comunista foi usada por diversos governos ao longo da história como uma tática de manipulação das massas, dirigindo todas as insatisfações da população contra um inimigo comum. Um resultado disso é que mesmo atualmente muitas pessoas odeiam profundamente o comunismo, mesmo sem clareza sobre o motivo. Apesar disso, o comunismo frequentemente aparece de uma maneira ou outra em debates políticos, e ainda existem nações que se consideram comunistas. Por que o comunismo é levado a sério na maioria das ocasiões e o anarquismo não? Ambos se baseiam na mesma crítica política, no diagnóstico de que a direção que as grandes civilizações tomam não é a evolução da sociedade, mas sim a exploração da maioria da humanidade por parte de alguns poucos. Ambos propõe que o sistema de exploração pode ser desfeito, e que o poder político não deve ser um privilégio para poucos, mas sim uma força coletiva que beneficia todos os membros de uma sociedade.

Existe um fator essencial que separa o anarquismo do comunismo e do capitalismo. Na maioria das ideologias presentes nos debates políticos, podemos observar um projeto de unificação e centralização da humanidade. O capitalismo estabelece um critério universal de valor, o capital, e a globalização baseada nas relações econômicas é sua consequência mais natural. O comunismo estabelece o trabalho e as relações econômicas, de um ponto de vista materialista, como fonte principal de todos os eventos na história humana. Além disso, o comunismo depende da implementação de um estado, de uma autoridade, comunista. É verdade que os marxistas em geral afirmam que esse estado seria temporário, mas ele seria temporário porque depois de pelo menos um século de autoridade comunista as leis desse estado se tornariam valores, seriam interiorizadas pela população. De qualquer maneira persiste a tendência de centralização e universalização. Ambas essas ideologias, em todas suas variações, dependem do pressuposto de que a sociedade precisa da autoridade de algum governo para evoluir politicamente.

O anarquismo recusa esse projeto de unificação das culturas e das vontades individuais. Diversos anarquistas ao longo da história argumentaram que a tentativa de somar as vontades dos indivíduos em um todo a ser administrado por um governo resulta em incontáveis injustiças contra todos os indivíduos em questão. As diferentes vontades e as diferentes culturas não são redutíveis, e não podem ser compreendidas a partir de um único conjunto de regras. Para os anarquistas o governo não é um elemento fundamental da política, mas sim uma farsa, um intermediário por essência abstrato entre os indivíduos e as suas demandas. Os governos e os governantes por si mesmos não realizam absolutamente nada, eles apenas emitem as ordens que seus subordinados, aqueles que de fato agem e que de fato detêm o poder de agir, foram treinados para aguardar. Na visão de mundo anarquista, a única razão para que a população em geral precise das ordens de algum governo é o próprio condicionamento a essa dependência, feito a partir de diversas formas de violência. A falta de iniciativas inteligentes e de organização espontânea que muitos usam para justificar a necessidade de um governo e de uma centralização dos valores são, para os anarquistas, um resultado do medo que a campanha mundial de violência e repressão cristalizou em diversas culturas.

O tipo de pensamento que alguns chamam de "anarcocapitalismo" não é uma forma de anarquismo no sentido explicado. Um capitalismo sem estado levaria às ultimas consequências a tendência de globalização econômica e de redução do valor ao quantificável que se observa nos estados capitalistas atuais. Além disso, os anarquistas como Bakunin e Proudhon partem de um contexto socialista e sustentam uma noção de liberdade diferente daquela que predomina no contexto neoliberal, no qual surge o anarcocapitalismo. No anarquismo, se trata de uma liberdade essencial à própria natureza humana, enquanto no anarcocapitalismo se trata de uma liberdade intrinsecamente relacionada à propriedade privada e ao poder econômico individual. Esse é um dos problemas do anarcocapitalismo. Para que qualquer tipo de dinheiro seja impresso e autenticado, são necessárias diversas instituições dedicadas a essa tarefa, além de pelo menos uma que fiscalize o processo como um todo. Uma economia sem governo é impossível em um sistema capitalista, porque o capital é uma medida abstrata de valor que não é baseada nos bens concretos que circulam na sociedade. O dinheiro se origina em uma relação entre os bancos e as autoridades vigentes, uma associação que atribui um valor de troca em essência fictício a uma mercadoria universal, algo que não poderia se manter sem um rígido contrato social . Não há uma forma de "libertar a economia capitalista" porque ela é como um todo parte do estado, um sistema de poder.

Uma resposta frequente às ideias anarquistas á a ideia de que as leis são fundamentais para a organização da sociedade. Isso pode ser mais um preconceito forçado por nossa cultura. A ética é de fato fundamental para a vida em sociedade, enquanto as leis são uma tentativa de forçar a postura ética através de imperativos e de ameaças. A intenção de agir moralmente (ou não) parte sempre do próprio indivíduo, seja por uma moralidade baseada no dever ou por uma baseada em consequências. O sucesso de uma ação bem intencionada depende sempre de muitos aspectos do contexto em que ela ocorre e apenas o indivíduo colocado diante de uma escolha pode examinar aquilo que precisa entender para agir. A lei não colabora para que os indivíduos busquem dentro de si mesmos a forma mais pura de seus conceitos de bem e mal, a lei apenas estabelece ordens e punições, em um processo generalizado, além de burocratizado. É no mínimo razoável questionar se a relação entre as leis e a ética é positiva, especialmente se considerarmos como os governos de todos os países do mundo lidam com aqueles que agem de maneira considerada criminosa, os colocando em prisões durante alguns anos ou os matando, e nada mais, como se isso fosse alguma espécie de educação para a moralidade. Enjaular inimigos da sociedade é um método de controle extremamente primitivo, violento e de pouca eficiência, algo difícil de associar a uma cultura que incentiva a evolução dos valores e o crescimento intelectual dos indivíduos. É estranho que alternativas a isso sejam tratadas como absurdos, enquanto nossos métodos de aplicar a justiça são hipócritas e destrutivos.

Penso que os pensadores anarquistas nos lembram com suas críticas que estamos tomando escolhas nossas como se fossem fatos da natureza humana. Uma noção particularmente interessante e simples ao mesmo tempo é a de ação direta. Para qualquer anarquista, um indivíduo pode e deve simplesmente fazer o esforço necessário para que ele obtenha aquilo que deseja, em vez de pedir a ajuda de instituições burocráticas e de autoridades, que em última instância iriam simplesmente designar a tarefa necessária a algum outro indivíduo. Isso vale também para necessidades coletivas e para a disseminação de informações importantes. Atualmente o público em geral mostra pouca compreensão de como os mecanismos políticos que regem nossa sociedade de fato funcionam. Por exemplo, poucas pessoas parecem entender que quanto maior a abrangência da jurisdição de um funcionário público, mais esse funcionário trabalha com estatísticas, ou seja, mais abstrata e quantificada se torna sua compreensão do que se passa em seu território de atuação. Isso por si significa que a população e a classe das autoridades falam a partir de domínios e de experiências diferentes, mesmo quando tratam dos mesmos assuntos.

O crescimento do PIB pode não significar absolutamente nada para a população e a satisfação de suas demandas, por ser uma medida muito simples em comparação com a diversidade qualitativa de bens que uma sociedade pode adquirir ou perder, mas é esse tipo de indicador que um presidente acompanha enquanto elabora e implementa suas políticas econômicas. Considerando esse tipo de diferença de perspectiva, fica claro que seria melhor se cada porção da sociedade fosse capaz de se organizar e de agir localmente. Existem hoje inúmeros relatos de casos em que moradores de diversas comunidades apenas observam a manutenção de suas habitações não sendo feita. Além de educar a população para sempre aguardar a autorização e a inciativa de instâncias superiores, o governo também tira da população, através da propriedade e de ameaças, os meios naturais e diretos de ação. Enquanto isso os governantes se ocupam de encontros diplomáticos e eventos internacionais, demandas que se encontram em um domínio completamente distinto, que a maioria da população não acessa e não compreende.

Apesar de ser uma perspectiva muito mais interessante do que muitos julgam, o anarquismo, pelo menos nas obras que pude estudar, não se mostra como uma fonte proposições e métodos com viabilidade pragmática. É muito comum o discurso de que o anarquismo parece bom quando imaginado mas quase certamente é impossível na prática, e existe uma verdade importante nessa afirmação. Muitos anarquistas atuais admitem que "o anarquismo é uma imagem", um ideal mais ou menos vago que alguns acreditam ser a chave para a descoberta de uma sociedade melhor. Isso não muda, porém, o fato de que é injusta a recepção do anarquismo no meio intelectual. O capitalismo e o comunismo, embora sejam muito mais fáceis de imaginar, também deixam muito a desejar em aspectos fundamentais de suas teorias. Por exemplo, autores comunistas raramente discutem o lado antropológico da "ditadura do proletariado", e da história em geral. É uma falha, no mínimo, notável. Autores capitalistas raramente explicam o sistema monetário e as implicações de suas características, com um foco em palavras como "liberdade" e "indivíduo" que certamente seria interpretado de maneira diferente se colocado em contraste com a implementação dessas noções na forma de instituições econômicas. Penso que a afirmação de que nós já exploramos todas as possibilidades políticas no campo teórico é incorreta e nociva. Os sistemas que temos atualmente são incompletos e a tarefa desses sistemas ainda está muito longe de ser cumprida, especialmente se considerarmos a possibilidade de estarmos na direção errada. O anarquismo se baseia em uma crítica social que coloca em evidência possibilidades que outras correntes de pensamento escondem. Talvez esteja nisso a chave para algo melhor que os "ismos" que dominam a política atual.  

sábado, 5 de setembro de 2015

Sobre o progresso técnico

O avanço da tecnologia é geralmente tratado como algo intrinsecamente positivo, como o tipo de coisa que demonstra o valor de uma determinada sociedade. Afinal, com o avanço tecnológico tarefas se tornam mais fáceis e eficientes, novas formas de mídia e de arte são possíveis, a pesquisa científica avança e a segurança aumenta. Essa noção simplificada de progresso esconde, porém, que toda tecnologia, assim como toda teoria científica, têm seu verdadeiro impacto desenvolvido a longo prazo. Diante de uma nova possibilidade tecnológica, engenheiros, cientistas, empresas e consumidores muito raramente mostram resistência. Essa adesão geralmente é motivada pela falta de pensamento profundo ou simplesmente por demandas egoístas que não trazem para a sociedade nenhum progresso.

Cientistas contemporâneos não são os heróis sábios mostrados na propaganda que cerca as universidades. Não são heróis porque a motivação principal incentivada pelo meio acadêmico não é o avanço da humanidade, mas sim a produção e obtenção de propriedade intelectual. Cientistas trabalham principalmente tentando descobrir ou elaborar algo que possa ser patenteado, uma tese ou produto que possa gerar lucro e orgulho. Não são sábios porque as áreas de atuação científica são especializadas e cada uma adota critérios distintos de verdade. Um indivíduo que se torna um excelente biólogo, por exemplo, não terá tempo para se manter educado em sociologia, antropologia, filosofia, física, etc. A rotina acadêmica exige que o indivíduo persista na sua área de escolha, revisitando conhecimentos, ministrando aulas, produzindo material didático e fazendo traduções. A cultura acadêmica faz com que um indivíduo possa publicar trabalhos apenas na área na qual ele é considerado qualificado. Os diletantes, considerados nesse meio amadores, são ignorados. Somando esses fatores e outros, podemos entender que os cientistas de hoje são formados, digamos, com uma visão em túnel.

As virtudes particulares de cada cientista não significam muito nesse cenário, Para que teorias sejam incorporadas na produção acadêmica, avaliadas como verdadeiras e utilizadas no avanço tecnológico, a superestrutura como um todo deve colaborar para isso. Mesmo que o indivíduo por traz de uma descoberta seja um verdadeiro filantropo, ele dependerá de um grupo e de uma estrutura que simplesmente não funcionam nessa direção. A tecnologia é desenvolvida e testada principalmente nesse meio, o que significa que a implementação de uma tecnologia na sociedade corre grande risco de ser feita independentemente de suas consequências a longo prazo. O meio científico é movido pelo lucro e pelo egocentrismo. Não vejo outra explicação possível para que o desenvolvimento de armas de destruição em massa e de armas biológicas esteja sempre em alta enquanto o desenvolvimento de curas para doenças genéticas esteja sempre em atraso. Não existe justificativa moral para o aumento constante no poder de destruição de nossas armas, e se os cientistas não trabalhassem de maneira tão fragmentada, certamente teríamos mais avanços na medicina e em outras áreas. A verdade não é dada em fragmentos, como nossas áreas de especialização.

Os aparelhos tecnológicos não trazem apenas soluções e possibilidades, mas também novos problemas e dependência, A partir do ponto que um determinado produto é divulgado ao seu público alvo, surge uma demanda e um mercado para supri-la. A partir disso, se torna necessária a obtenção constante de diversas formas de matéria prima e fontes de energia, além de algum espaço para que os produtos sejam descartados após perderem a utilidade. Uma vez que a cultura se desenvolve em torno da existência de determinados aparelhos, não há volta. Dos hábitos de lazer da população até a infraestrutura das instituições do estado, a sociedade se torna dependente da continuidade de determinados serviços. Uma pessoa nascida no século XXI dificilmente imagina uma sociedade sem eletricidade e sem mídia digital, apesar da maior parte da história humana ter se passado dessa forma e da maior parte de nossos bens culturais terem sido criados independentemente dessas tecnologias.

Existem muitos discursos na internet sobre como a mesma traz mais liberdade individual e coletiva em relação ao estado. O exemplo mais comum utilizado como argumento é a primavera árabe, uma revolução supostamente organizada em redes sociais. Essa linha de raciocínio não é falsa, mas é incompleta. De fato é praticamente impossível evitar que indivíduos com acesso á internet se comuniquem. Mas a comunicação constante não tem apenas implicações positivas. Em qualquer sociedade, os indivíduos exercem pressão uns sobre os outros para que determinados costumes sejam mantidos, especialmente sobre aqueles manifestam o desejo de agir de maneira peculiar. Os governantes e as empresas geralmente fazem uso dessa tendência, manipulando os valores que os constituem e mantém, às vezes aproveitando os valores já presentes na população com pequenos acréscimos e às vezes gerando na sociedade valores intencionalmente artificiais, tudo por meio da propaganda, que hoje financia praticamente todos os serviços da internet. Além disso, os fenômenos da internet são efêmeros em comparação com os do mundo concreto. O exemplo da primavera árabe, nos lembra que a internet não deve ser subestimada, mas também que sua memória é de curto prazo. Me pergunto qual é a situação política atual resultante dessa revolução. Mas isso não está mais nas notícias e debates. Me resta apenas imaginar quem exatamente foi beneficiado pelo fenômeno.

Conforme nossos aparelhos se tornam cada vez mais uteis e interativos, também ocorrem mudanças psicológicas na população que os utiliza constantemente. A existência de espaços virtuais um dia foi uma ferramenta para a organização de informações, mas atualmente é fácil observar no cotidiano sinais de que o espaço virtual se tornou um plano da realidade. A partir do ponto em que uma ferramenta passa a ser usada obsessivamente, como se fosse uma parte da mente, seus benefícios passam a ter um efeito menor e seus problemas são ampliados. Por exemplo, uma das grandes vantagens da internet em relação às mídias anteriores é que nela o usuário pode ser ativo, ele pode escolher o que quer ver, pode produzir seu conteúdo e interagir com outros usuários. Porém, a partir do ponto em que chegamos, com o acesso à internet sendo parte obrigatória da rotina da maioria da população, voltamos em grande medida ao formato anterior de mídia. Nós não temos uma população em massa de produtores de obras artísticas e teóricas, uma população de indivíduos bem informados e de mente aberta, nós temos em vez disso uma massa que troca memes, com a atenção de cada indivíduo guiada passivamente pela expansão "viral" de certos fenômenos no espaço digital. O humor bem pensado muitas vezes diz muito sobre nossa sociedade. Confira este vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=9oagLOyopRw

O avanço da tecnologia também atrapalhou a filosofia e a ciência em diversos pontos. Com o avanço da inteligência artificial surgiu nos estudos sobre a mente uma estranha metáfora, que logo saiu do controle. Frequentemente, intelectuais contemporâneos tratam a verdadeira inteligência, a dos humanos e dos demais animais, como um software. A "inteligência" artificial nada mais é que uma complexa combinação de operações binárias (0 ou 1). .Máquinas não tem nenhuma vontade, nenhum impulso interno. Os componentes eletrônicos que conduzem ou impedem corrente elétrica em determinados pontos de um circuito não são como os neurônios, que são células vivas, parte de um organismo vivo capaz de ambivalência emocional, de criatividade e de aprendizado para além da simples absorção de conteúdo. Além de confusões conceituais como essa, a obsessão pela ferramenta descrita anteriormente também ocorre na relação entre os cientistas e os aparelhos utilizados em experimentos. Inicialmente, aparelhos como microscópios permitiram que os cientistas observassem fenômenos para além dos sentidos naturais. Atualmente, porém, a dependência da verificação empírica tal como convencionada entre os "especialistas" faz com que o avanço da ciência dependa demais do avanço tecnológico, simplesmente porque os cientistas contemporâneos, em especial os acadêmicos, se recusam a usar o cérebro em vez de alguma ferramenta externa. Mesmo a noção atualmente popular de verdade, a "objetividade", é um produto da desconfiança que a maioria dos intelectuais contemporâneos têm em relação as faculdades que ergueram a humanidade desde os seus primórdios.

Habilidades são mais importantes que ferramentas. O desenvolvimento de cada indivíduo deveria ser a prioridade, e o desenvolvimento de artífices apenas um complemento. Isso é válido tanto para o campo prático quanto para o campo teórico. Muitos artistas e cientistas especularam ao longo da história sobre a possibilidade de que um dia o artificial supere por completo o natural e tome controle. Quando observo nossos intelectuais passivos, que se comportam como máquinas de sintaxe, assim como os computadores, não vejo esse grupo avançando muito além do ponto em que chegamos hoje. Também não acredito muito na ideia de que estamos em uma era de comunicação, porque algumas habilidades psicológicas básicas como a empatia e a simpatia não aumentaram em proporção com nossas ferramentas de comunicação, e talvez tenham diminuído em geral. Enquanto não tivermos uma sociedade com uma administração inteligente o bastante para implementar a tecnologia com estratégias de desenvolvimento e preservação dos verdadeiros bens da humanidade, podemos apenas utilizar dessas estratégias em nossas vidas particulares.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Sobre Ética

A maioria de nossas decisões em relação a outras pessoas  não são feitas com base em doutrinas filosóficas, científicas ou religiosas, nem mesmo com base em algum raciocínio profundo. Essas decisões geralmente são rápidas ou habituais demais para isso e parecem fáceis, além de tudo. Isso simplesmente não se oculta, nem mesmo quando narramos nossos atos como se a explicação tivesse gerado ação. Os impulsos, as emoções e mesmo a falta de atenção controlam boa parte das decisões exigidas de nós pelo passar do tempo. Uma ciência da ética capaz de regulamentar os impulsos exigiria tanto da teoria quanto dos seus praticantes uma coerência que simplesmente nunca existe. Todos praticam aquilo que chamam de mal diversas vezes ao longo de suas vidas, mesmo que isso nunca faça parte de suas intenções, mesmo que sejam honestamente leais a seus princípios.

Existem decisões que não são tão rápidas e habituais, que permitem a um sujeito um tempo para refletir previamente, tanto porque as consequências são mais numerosas e duradouras quanto porque ocorrem em situações complexas que levam naturalmente ao raciocínio. São essas as decisões para as quais filósofos costumam construir doutrinas e conceitos, como o utilitarismo e o imperativo categórico. São, em sua maioria, decisões tomadas na esfera pública evidente como as decisões tomadas por servidores públicos, por prestadores de serviços privados de extrema importância e por usuários desses serviços, além das relações interpessoais com consequências numerosas e que refletem posicionamentos em relação aos valores fundamentais de uma dada cultura. Um movimento que pode ser observado na filosofia contemporânea é o abandono da ética como conceituação do bem e do mal e sua substituição pela ética como ciência da justiça e do direito. Isso tem relação, entre outros fatores, com as demandas geradas pelas guerras mundiais.

De fato, sempre existe racionalidade evidente no tipo público de decisão, mas isso não significa que uma ética universal possa ser estabelecida para essas situações. Os valores com que a racionalidade trabalha nesses casos se modificam frequentemente, em cada indivíduo e em cada cultura. Não é possível que alguém construa uma ética sistemática que possa ser rigorosamente aplicada a indivíduos e culturas que contém valores distintos. O fundamento moral da organização do público é o conceito de justiça, que independe de definições específicas de bem e mal e que não pode ser esclarecido por agentes externos a uma dada relação entre sujeitos ou grupos. Não afirmo com isso que o contato entre diferentes culturas ou indivíduos não pode modificar valores. Afirmo que essa modificação de valores não é determinada por qualquer sistema ético e que a tentativa de interferência em valores, individuais ou culturais, costuma provocar desastres. O campo do direito não é campo no qual ocorrem trocas de valores.

Existem algumas decisões especiais que não são imediatas e superficiais e que também não são públicas e objetivas. Decisões que tomamos sobre e para nós mesmos. Tais decisões definem o que nós pensamos de nós mesmos. Esse tipo de ideia depende da rotina e de interesses mundanos, depende da cultura e da política, mas não faz parte das discussões éticas mencionadas anteriormente porque contém elementos a mais e consequências diferentes. O aspecto existencial da ética, o estado da consciência antes e depois de uma decisão é a essência da ética e da moralidade de qualquer espécie, e justamente por isso é tão facilmente esquecido nos diversos esforços sistemáticos que se voltam demais para fora e pouco para dentro. A noção de verdade como sinônimo de objetividade é adversa à investigação da esfera primordial e mais profunda da ética. Essa noção é justamente apoiada em argumentos que excluem a filosofia do domínio do que se considera conhecimento. É natural que a ciência contemporânea não possa dizer nada sobre a ética, embora a demanda por fundamentos morais para a sociedade permaneça clara.

Uma decisão pode despertar em um sujeito uma incrível riqueza de ideias e emoções, uma riqueza que se perde de vista quando a pergunta que temos em mente é "como fazer com que a moralidade não seja subjetiva?". O projeto dos sistemas morais objetivos, que foram transformados em instituições apesar de suas falhas práticas e conceituais, é encontrar alguma natureza humana, ou pelos menos alguma inevitabilidade da condição humana de tal forma que a moralidade possa ser registrada e ensinada como um conjunto de leis científicas. Condicionar para a liberdade através de imposições benevolentes é o projeto dessa linha de filosofia. Não é por coincidência que muitos estudiosos tenham hoje a impressão de que as alternativas possíveis na ética já foram exploradas e registradas. É claro que o número de formas possíveis de se construir regras para a conduta alheia ignorando a riqueza e a veracidade da subjetividade é relativamente pequeno. Restrições e possibilidades são afinal coisas opostas.

Se considerarmos, porém, a realidade da subjetividade e a parte da comunicação que não é limitada pela escolha de uma ou outra linguagem, compreendemos que existem ainda muitas possibilidades no campo da ética. A separação total, popular atualmente, entre subjetividade e objetividade empobrece a discussão sobre a moral de tal forma que as opções disponíveis são o relativismo moral ou o recurso constante a doutrinas populares entre os acadêmicos. Isso porque o campo da ética, em todas as culturas que se desenvolveram filosoficamente, sempre foi o estudo sobre como um ser humano pode viver a melhor possível e deixar um legado para as gerações posteriores. É simplesmente impossível acessar essa discussão a parir de uma negação do valor da subjetividade, sendo a ética a busca de sua afirmação máxima. É impossível acessar a ética a partir de uma postura absolutamente cética ou relativista, porque nesses casos não há nada para ser discutido, e a direção geral da discussão acadêmica sobre a ética é mais pertinente ao direito e tem suas possibilidades contadas. As normas são sempre uma sombra dos valores

Eu diria que a moral é em essência uma arte, e a ética uma estética do comportamento. Quando tomamos decisões sobre nós mesmos não usamos como base algo que pode ser compreendido em suas partes individualmente. Uma decisão moral pode se basear simultaneamente em normas, emoções, reações imediatas, acidentes, enfim, em uma infinidade de fatores que apenas como um todo têm um significado moral. Isso é muito semelhante à criação artística, que utiliza métodos, ferramentas, conhecimentos, intuições, ideais e sentimentos sem que cada um desses fatores defina particularmente o resultado final. Assim como um artista é capaz de comunicar com suas obras, nós nos comunicamos constantemente a partir de nossas escolhas. Assim como um artista cria a partir de uma visão artística, nós moldamos nossas interações a partir de uma imagem moral que temos de nós mesmos. O ideal de bem é intimamente ligado ao ideal de beleza. Religiões sempre utilizaram a beleza dos templos e dos rituais para evocar um sentimento de divindade e de pureza moral. Líderes políticos sempre utilizaram construções imponentes como demonstração de invencibilidade e de superioridade moral em relação a outras culturas, A força natural que as belas palavras têm sobre a razão se origina precisamente dessa ligação essencial entre beleza e virtude.

A pergunta central da ética não deve ser " como criar valores indiscutíveis?" e muito menos "como moldar nosso comportamento com a ciência?". Esses são projetos derrotados de início pelas fraquezas epistemológicas de nossos métodos usuais de investigação diante da variedade imensa do universo e da subjetividade, além do fato de que a cultura ao longo do tempo impõe grande mutabilidade aos valores. A pergunta central da ética é "como podemos viver uma vida digna?" Se trata de uma pergunta que dispensa a escolha entre uma escola de pensamento e outra oposta. O critério de verdade da ética não está na organização lógica de um sistema de conceitos, e sim na satisfação intelectual que temos e expressamos em nossas escolhas e palavras. A moral apenas se eleva acompanhada pela liberdade, porque depende intrinsecamente da vontade de cada indivíduo. A discussões morais acontecem em torno das diferenças entre as vontades, algo que, apesar do aspecto caótico, tende a fortalecer todas as visões individualmente.

A comunicação na moral é baseada em inspiração ou em repressão. Não sei se uma sociedade onde todos são inspirados simultaneamente é possível, mas sei que uma sociedade onde todos são reprimidos é, pois esta é precisamente a nossa. Quando a sociedade trata a reflexão séria como um exercício de negação da subjetividade e a afirmação da subjetividade como algo anti intelectual, as diferentes posturas morais se tornam rasas, baseadas em raciocínios que afastam a discussão do seu objeto mais importante. A maior parte de nossa população é afastada do pensamento profundo na ética pela forma como nossa educação funciona, baseada em cópia e reprodução em vez de auto descoberta. Isso certamente incluí nossos supostos intelectuais e suas discussões " de alto nível" sobre qual doutrina moral do passado é superior.
Em nossa sociedade a riqueza da subjetividade é escondida e, precisamente por isso, nossas verdades não passam truques e mentiras e nossas virtudes não encontram lugar.

domingo, 19 de julho de 2015

Sobre História

Interpretações de eventos passados são narrativas construídas em algum momento posterior, um momento no qual não se experimenta, apenas se imagina o objeto de análise. As narrativas históricas que consideramos objetivas ou científicas são um exercício de conciliar documentos e artefatos arqueológicos com algum paradigma de análise atualmente bem sucedido. Em outras palavras, usamos a razão para reconstruir a cena histórica que queremos descrever. Mas não é possível descrever algo que não podemos mais acessar, é possível apenas imaginar, especular e narrar.

A história científica ou objetiva, aquela que é considerada parte da educação básica, é o melhor exemplo desse exercício mas certamente não é o único. Psicólogos e psicanalistas também encontram a necessidade de esclarecer o passado, tanto de indivíduos como de fenômenos culturais. Discussões na internet entre aqueles buscam combater a opressão quase sempre citam eventos do passado para definir o sentido de opressão e para intensificar o apelo retórico dos argumentos. Diversos argumentos sobre os mais diversos assuntos são repletos de narrativas históricas. Quando argumentamos e sabemos o que isso significa, tentamos dar a maior coerência possível aos nossos argumentos, além de fazer com que eles pareçam adequados ao contexto em questão. Mas quando interpretamos o passado temos apenas uma percepção já interpretada do contexto e não estamos tratando de uma sistema fechado no qual facilmente compreendemos as regras de coerência. Existem várias ideias e pressupostos muito frequentemente empregados por narradores da história que parecem em um primeiro momento superar essas dificuldades.

A noção de causa e efeito é a mais ingênua e provavelmente a mais perigosa, porque costuma levar o pensador a não apenas estabelecer causalidade onde não sabemos nem podemos saber se existiu mas também a interpretar o presente com base nessa relação imaginada entre eventos do passado, incluindo alguns que talvez sequer sejam reais. As possibilidades e impossibilidades de um sujeito do presente muitas vezes são previstas ou mesmo ditadas por outros indivíduos com base em estudos do passado que contém a espécie mencionada de dificuldade. Ou seja, alguns indivíduos partem de leituras sobre o passado, que em grande parte é em si uma interpretação, constroem suas interpretações sobre ele, observam e julgam um indivíduo do presente sobre o qual muitas vezes tem pouco ou nenhum conhecimento com base em categorias extraídas do processo mencionado e ainda fazem previsões explícitas e implícitas sobre seu futuro, tão difícil de acessar quanto o passado. O estado de confusão e inutilidade no qual se encontram muitos dos debates atuais e grande parte da produção acadêmica se deve em parte ao uso frequente desse caminho dúbio de raciocínio.

A noção de dialética atribui à dinâmica entre opostos os desenvolvimentos da história. Um claro exemplo é a dialética marxista entre a classe trabalhadora e a classe dominadora, que deve conduzir ao fim da opressão, à revolução. Análises dialéticas são extremamente populares atualmente, tanto nas formas grosseiras quanto nas refinadas. Em qualquer um dos casos, existe um problema fundamental na nomeação de opostos na interpretação histórica. A base para a associação de um fenômeno a dois conceitos opostos que se revelam em alguns agentes práticos costuma parecer arbitrária e baseada apenas no enviesamento do intérprete dialético. Por exemplo, é evidente porque um dialético socialista encontra na relação econômica entre o patrão e o empregado o sentido da história. Esse é seu foco, seus conhecimentos giram em torno dessa questão. Ele talvez sequer fosse dialético se entendesse a realidade por mais perspectivas distintas e de outras áreas. Além disso, a finalidade do processo dialético costuma ser também completamente enviesada. Um dialético marxista me diria que o fim da história é a revolução, enquanto um dialético liberal me diria que o fim da história é uma anarquia capitalista. As intenções e expectativas do sujeito parecem estar tomando o lugar que deveria ser dado a bons fundamentos nesses dois casos.

Análises sobre a história que usam o próprio passado como base parecem ter um problema intrínseco, o de que esse passado é em si a leitura de um recorte feito intencionalmente. Esse problema é atenuado em grande medida quando a intenção do narrador é encontrar documentos e fazer com que os dados disponíveis formem um cenário coerente, e é intensificado quando a intenção do narrador é tirar alguma implicação política do passado. Eu não sei resolver a dificuldade científica do primeiro caso e não sei se ela precisa ser resolvida. A precisão atual parece ser suficiente para fins científicos. Meu interesse está nas dificuldades políticas e filosóficas do segundo caso. Estamos educando narradores históricos em massa mas estamos calando discursos propositivos onde quer que eles apareçam, por estarmos habituados demais com os métodos de narração histórica mencionados. Um pensamento sempre retrospectivo é sempre um pensamento fraco e atrasado.

Não temos meios para afirmar que a natureza muda em essência de tempos em tempos de tal forma que raciocinar em uma época seja em absoluto diferente de raciocinar em outra, de forma que coisas como o individualismo, a subjetividade, a metafísica e a própria filosofia tenham surgido e desaparecido. Também é incorreto exigir implicitamente ou explicitamente que nosso interlocutor tenha consultado qualquer série de referências históricas para que sua vontade seja respeitada e suas razões sejam devidamente consideradas. De forma geral a política deve sempre privilegiar a vontade, tanto o ser quanto o querer-ser, dos vivos e atuantes, evitando ao máximo ídolos e processos causais ou dialéticos que são no fundo misteriosos e que talvez sejam puras superstições. A filosofia que acompanha a política é profunda na medida em que faz história em vez de apenas narrar. Nenhum indivíduo que preza pela própria liberdade deve aceitar para si o conjunto de narrativas que determinou quem ele é antes do dia de seu nascimento, e nenhum indivíduo que preza pela liberdade alheia deve se ocupar de propagar o folclore que predomina nos debates políticos.