segunda-feira, 27 de abril de 2015

Filosofia da Religião I

Nós nascemos nesta terra, como quaisquer outros animais. Nossos corpos retêm vitalidade por pouco tempo por obedecerem as mesmas leis da matéria inanimada. Nossas mentes são limitadas pela experiência, assim como nosso controle sobre nossos próprios impulsos. Somos seres limitados. Mesmo assim, dentro dos limites dos sentidos, nós imaginamos o cosmos. Observando tudo que é efêmero nós imaginamos o eterno, experimentando nada além da matéria nós imaginamos o espírito.

Pelos seus mecanismos fisiológicos, o intelecto humano não deveria ser capaz de nenhuma transcendência. Mas foi neste intelecto que ocorreu a mais profunda epifania: "Se o mundo é tão profundamente inteligível, talvez ele seja em si inteligente". A possibilidade de outros planos de existência além do sensível possibilitou um plano superior de pensamento. Buscando o pensamento do absoluto, mentes humanas formaram ideias como razão, beleza, virtude, verdade, justiça, eternidade e, é claro, alma e divino. Da imaginação do cosmos surgiu a própria essência da humanidade. Isso diz algo sobre o mundo, ou apenas sobre nós mesmos? Independentemente de onde vieram tais profundas ideias, delas provém uma tarefa. A partir do momento em que se imagina o belo, se imagina também o grotesco e decadente. A partir do momento em que se imagina o divino, se imagina também o profano. Pela luz se revelam as trevas, e foi no meio da escuridão que os antigos se perceberam. A condição humana sempre foi distante das belas ideias.

Com a vontade de evoluir nossos corpos e mentes, e mesmo a natureza ao nosso redor, algumas mentes ao longo das eras buscaram caminhos para superar a simples condição humana e aproximar o particular do todo. Mas, nem todos aqueles com um anseio espiritual entendem a profundidade do intelecto, e uma grande parte da humanidade ignora esse anseio. Assim, aqueles que acreditam ter contemplado a verdade deixam suas doutrinas e métodos para que a humanidade em geral desfrute dos resultados,embora não participe do processo. Nós, hoje em dia, estamos muito mais acostumados com os resultados do que com os processos. Nós usamos um artífice sem compreender sua engenharia, nós usamos um método sem compreender sua essência e sua intuição inicial. Perdemos nosso passado e a essência da razão de vista.

Atualmente, nós damos grande preferência a tudo aquilo que é seguro e automático quando tratamos com problemas de organização. A nossa forma de educação mostra isso com clareza, especialmente no contexto acadêmico. Nós tratamos o conhecimento como uma série de resultados coletados e procedimentos a serem seguidos que resulta naturalmente em progresso, em descobertas e em lucro, principalmente. A maioria dos interessados na ciência se adapta com facilidade a esse modelo, e alguns poucos não se adaptam, mas insistem. Os que se adaptam bem raramente produzem algo para a posteridade, porque tendem a reproduzir as doutrinas já estabelecidas, enquanto os que não se adaptam e não desistem costumam romper as doutrinas de suas épocas e construir as doutrinas do futuro

A noção de ciência que é propagada pelas massas é a ideia de um trabalho que gera produtos pelos mesmos mecanismos que qualquer outro trabalho. Um cientista aprende e segue as regras, e assim produz descobertas, segundo essa noção. Essa ideia também caracteriza a "ciência de laboratório" como algo em perfeita continuidade com aquilo que os pensadores clássicos chamavam de ciência. Essa noção de ciência é falsa nos dois aspectos. Nenhuma descoberta pode ser feita reciclando os sistemas conceituais existentes, e mesmo novas experiências empíricas são limitadas por tal prática, porque o conhecimento desperta através da experiência mas não está na experiência em si mesma, e sim nos conceitos formados para explicá-la, como muitos filósofos compreenderam. As descobertas de maior impacto são feitas por indivíduos que compreendem o conhecimento em sua essência e, portanto, não se se apoiam na estrutura automática que rege as universidades e o mercado. Também é falso que a ciência como compreendida atualmente seja a evolução da ciência clássica. Características como a burocracia, o mercado e a individualidade como entendida atualmente, além do foco em experimentos absolutamente controlados , são aspectos que mudam a própria essência do que, por exemplo, um metafísico do século XVII chamaria de ciência.O misticismo é bastante nítido nas formas antigas de ciência e tecnologia, e existe um motivo para isso.

Aqueles que tomam a ciência como uma busca são mal compreendidos pelo senso comum atual e pelos acadêmicos que misturam os criadores e os imitadores. O trabalho científico profundo responde justamente ao mesmo anseio inicial da religião. A melhora e embelezamento do corpo, a cura do incurável. O conhecimento do microcosmo ao macrocosmo. A descrição e o domínio sobre o cérebro. A artificialização da natureza. Os traços da ciência profunda são semelhantes aos da religião profunda, no seguinte sentido. A verdadeira pesquisa científica não é uma contemplação inútil, como um lazer para a classe média. nem é um movimento por algum benefício em particular.A verdadeira pesquisa busca a evolução da humanidade como um todo. A ciência, quando compreendida em sua profundidade, depende de várias proposições das quais a religião também depende, e por isso as tensões entre aqueles que entendem religião e ciência como polos opostos sempre retorna. A ciência depende da ideia de que existe uma verdade, isto é, que o mundo existe independe da percepção para existir, e também da ideia de que essa verdade é mais profunda que aquilo que a experiência ingênua pode alcançar, e que uma série de doutrinas e métodos nos aproximam dessa verdade. 

A ciência entendida de forma mesquinha é oposta à espiritualidade porque nasceu de uma cultura de objetificação, simplificação, automatização e particularização. Em uma palavra, "desencanto", como disse Weber. Nessa forma mal compreendida, os textos relevantes são lidos mal e ensinados dogmaticamente. Os vivos servem o trabalho deixado pelos mortos, em vez do contrário, e o progresso se torna impossível, porque as instituições relacionadas são dominadas pela hipocrisia e pela falta de distinções importantes. Discursos progressistas se unem a estruturas de autoridade extremamente retrógradas. A consequência da ciência ser praticada fora de contexto, como uma profissão voltada para o lucro e para o narcisismo é que cada vez maior é o número de pesquisadores com pouco conhecimento epistemológico, pesquisadores que simplesmente seguem as regras e imitam aquilo que parece funcionar, não sabendo distinguir entre fatos, teorias, experimentos, experiência, realidade, ilusão, falsidade, verdade, validade, etc.

Uma semelhante perda de essência ocorre hoje com as grandes religiões, também. A preferência pelo automático, particular e superficial desestrutura as instituições religiosas tanto quanto as científicas. Isso porque a religião em geral absolutamente não é um investimento particular, por definição, porque é a busca pelo todo, pelo absoluto, pelo eterno. Apesar desse senso de comunidade, ou comunhão, é necessário a essa busca a liberdade intelectual, que não pode existir quando um indivíduo interpreta o mundo direcionado pelo raciocínio de outro indivíduo. Cada indivíduo precisa observar os fatos e criar representações por conta própria, e apenas depois compartilhar e receber ideias com outros. Infelizmente isso pouco ocorre hoje, porque textos como a bíblia são lidos de maneira incrivelmente superficial, fora de contexto histórico e simbólico, e pregados à população que aceita esse dogmatismo por uma mistura de medo, ignorância e preguiça.  

Por exemplo, é notável na bíblia um código moral extremamente severo em relação à sexualidade e à reprodução. Claramente o texto bíblico condena a homossexualidade e também as relações heterossexuais que não tem a reprodução como finalidade. Mas será que um cristão deve hoje sustentar esses ideais? Em geral, conhecer os motivos por traz de uma proposição é mais importante que a conhecer a proposição em si. Se imaginarmos a quantidade de pessoas que habitava a Terra e a precariedade dos conhecimentos médicos, além da ausência do cosmopolitismo, no período e na região na qual a bíblia provavelmente foi escrita, nós podemos compreender que naquela época a decisão de não ter filhos poderia de fato ser igualada a cometer um crime, assim como toda decisão que desorganizasse a estrutura familiar, porque a espécie humana corria de fato risco de se extinguir em doenças, guerras e períodos de escassez. É nesse sentido em que a bíblia deve ser lida com o contexto em mente, porque hoje em dia o contexto é um tanto diferente. A interpretação é mais importante que o texto interpretado. Aquilo que lemos deve servir aos vivos e honrar os mortos, e não servir como um modo de viver no passado como fazem os cegamente conservadores.

Com uma interpretação literal da bíblia, a única interpretação que ambos ateus e cristão dogmáticos estão dispostos a aceitar, as instituições religiosas se tornam espaços de hipocrisia, porque é evidente que práticas descritas na bíblia como o apedrejamento de mulheres adúlteras não são toleráveis atualmente, mas as passagens com esse conteúdo são também lidas como a revelação literal e analítica de Deus. Sustentar uma tese que não pode ser aplicada é o início da hipocrisia que corrompe moralmente uma instituição. De algumas poucas hipocrisias chegamos ao ponto no qual existe o cristianismo não praticante, o ponto no qual ateus são frequentemente mais cristãos que os auto declarados cristãos, porque a hipocrisia quanto as fundamentos ruins se alastra aos fundamentos bons. Qualquer doutrina se degenera se não for administrada e renovada através da razão. Além disso, qualquer doutrina pode ser utilizada como forma de manipulação.

Os nossos erros atuais em relação à espiritualidade são provocados por uma trama complexa. A religião em geral foi usada em inúmeros períodos históricos como justificativa política para guerras e hierarquias de riqueza, mas assim se consolidaram as maiores tradições religiosas que temos hoje, porque através da infraestrutura (riqueza e poder) erguida por líderes aparentemente corruptos se propagaram os discursos religiosos que ainda contém algo do conhecimento e do propósito dos antigos, mas é frequentemente difícil discernir o conhecimento das tradições pragmáticas. Os próprios religiosos têm essa dificuldade, mas aqueles que tentam criticar as religiões de fora a têm em um grau ainda maior e geram insegurança nos religiosos, que recorrem a figuras de autoridade, prática que é justamente uma das principais causas da confusão em relação aso textos religiosos.  

É muito infeliz que os textos religiosos sejam tão mal interpretados e usados ou repudiados tão banalmente. Nós estamos justamente em uma época na qual o estabelecimento de valores profundos é dificultada pela falta de distinção entre sujeito e objeto, ou melhor, pelo respeito do universo enquanto subjetividade absoluta. Assim como a histeria era a doença psicológica da era vitoriana, por causa da repressão moral ao corpo. as doenças de nossa época são a depressão, a impossibilidade de direcionar próprias energias para algo, e o narcisismo, a impossibilidade de direcionar as energias para algo além do próprio sujeito, ou seja, males causados pelo impacto da cultura de objetificação quando recusada ou aceita, respectivamente.

Como uma busca de conhecer o absoluto, o espírito, o sentido da existência e tudo que se relaciona a isso, a religião em geral pode despertar muitas coisas profundas em seu estudo adequado, em seu estudo que pretende não simplesmente seguir ou recusar regras mas sim evoluir teorias e dar continuidade a um legado de conhecimento e evolução.  

sábado, 4 de abril de 2015

Karma

Você provavelmente já ouviu falar em Karma, como um princípio de ação e reação envolvendo nossas ações e intenções. Na interpretação mais comum desse conceito, ele significa algo como" ações boas terão um retorno positivo, e ações más terão um retorno negativo", algo bem próximo da noção de justiça divina, sustentada por muitos cristãos.

Essa é uma interpretação válida, mas não creio que ela seja nem a mais adequada nem a mais proveitosa. Primeiramente porque é falso que agir com maldade resulta sempre em punições, e também é falso o inverso. Se uma sociedade está organizada de maneira corrupta, ela irá em todos os aspectos recompensar justamente seus corruptores. Uma sociedade de mercenários recompensa os que lucram sem escrúpulos, uma sociedade de hipócritas recompensa os mentirosos, e assim por diante. Igualmente, em uma sociedade de mercenários aqueles que recusam o lucro indigno são motivo de riso, e em uma sociedade de hipócritas os indivíduos sinceros são odiados.

Existem algumas particularidades importantes na filosofia budista em comparação com as ideias mais comuns sobre a natureza humana no ocidente, Na filosofia budista não existe um "eu" separado de nossas ações no mundo, o que significa que nós somos aquilo que fazemos. Além disso, não existe separação entre pensamento e ação. Pensar também é agir. As consequências dessas ideias simples são muito interessantes. Nós não causamos nada no ambiente ao nosso redor sem causarmos antes algo semelhante em nós mesmos. Se conto uma mentira, afasto de mim mesmo a verdade antes de fazê-lo com qualquer outro indivíduo, eu enfraqueço e manipulo a mim mesmo por gastar energia formulando uma falsidade e por preservar em mim o hábito da covardia.

Com esses pressupostos em mente você pode entender minha proposta sobre o significado de Karma. O Karma significa que praticar ações( isto inclui pensar, lembre-se) de um certo tipo nos leva a praticar mais ações da mesma natureza. Se procuro praticar atos de generosidade, a tendencia é que eu pense nisso com cada vez mais facilidade, frequência e foco, e que eu esteja cada vez mais cercado de situações nas quais minha generosidade é útil ou até esperada por outros. Isso não significa que "Deus me pagará em dobro", como costuma-se dizer. Pelo contrário. Toda virtude tem seu custo. A beleza de se praticar uma ação virtuosa está no cultivo da virtude, não em uma de troca interesseira. De fato, aqueles que sempre priorizam as recompensas imediatas e particulares raramente desenvolvem virtudes, e nunca o fazem de maneira profunda e duradoura. Afinal, quando agimos com egoísmo afastamos de nós os generosos, porque nossos pensamentos e intenções são mais aparentes do que gostaríamos de imaginar.

Essas ideias me agradam. Acredito que nós gostamos de superestimar nossa capacidade de ocultar, como se nós tivéssemos um santuário interno imaculado por nossas ações e palavras maldosas e tolas. A forma como nós separamos sujeito e meio externo favorece a ignorância e a preguiça porque corta pela metade processos de causa e efeito que deveriam ser observados de maneira ampla. A ideia de Karma, do poder das ações sobre as futuras ações, favorece que um indivíduo cultive artisticamente em si o que deseja vivenciar no mundo, o que é a verdadeira base da virtude.