sábado, 14 de janeiro de 2017

Política Além de Esquerda e Direita

É comum que manifestações e demandas políticas relevantes sejam agrupadas em categorias amplas, que fazem com que indivíduos com ideais semelhantes se encontrem e reconheçam outros movimentos facilmente. Entre tais categorias, "a direita" e "a esquerda" são quase sempre presentes nos debates políticos. A separação entre a direita e a esquerda não é livre de contradições nem diz respeito a objetos simples, mas costuma ser apresentada como se fosse assim, muitas vezes com cada uma das partes apresentando um desprezo profundo e inegociável pela contraparte. Nas disputas polarizadas que constituem hoje o caso normal na política democrática, fica evidente que a distinção entre a esquerda e a direita atingiu um nível mais profundo que a separação teórica entre tipos de demandas políticas. As tempestades de ódio e acusações absolutas entre os lados chegam e passam, enquanto a estrutura política e econômica da sociedade permanece no processo de entropia que preocupa ambas as partes. A polarização política, o impulso recíproco de proferir ataques à oposição é a motivação mais forte e notável para o apoio de cada lado a um respectivo partido. Não se pode dizer que Dilma pretendia fazer a revolução, nem se pode dizer que Temer pretende liberar o mercado da intervenção do estado. Não se pode dizer que Hilary e Trump tinham propostas radicalmente diferentes, mas a oposição entre aqueles que apoiam cada uma dessas lideranças ocorre como se um lado fosse a realização do socialismo, e o outro a aplicação do neoliberalismo. Diante do contraste entre tais certezas irracionais e o efeito dessas posições sobre a sociedade fica evidente que as questões entre a direita e a esquerda não contemplam exclusivamente assuntos políticos, mas também questões de identidade -- quando não apenas questões de identidade. Se tomada como algo mais que um modelo que representa vagamente a complexidade da política e dos indivíduos, como algo mais que um recurso heurístico, a separação da política entre esquerda e direita logo nos desvia das questões realmente públicas para um âmbito de questões individuais apresentadas em linguagem política -- uma disputa na qual as razões, a sociedade e o debate público não são o que realmente está em questão, mas apenas o pretexto para a afirmação de algumas identidades através da negação de outras, uma disputa com mais afetos que objetos.

É falso afirmar que a esquerda e a direita existem como objetos, como grupos políticos definidos e claramente responsáveis por alguma série de fenômenos do mundo. Se os professores de uma universidade entram em greve por alguma demanda, podemos afirmar que existe o grupo dos professores em greve da universidade x, e é perfeitamente viável analisarmos os fenômenos associados a tal grupo. Se tratamos do feminismo, estamos tratando de uma complexidade enorme de trabalhos e iniciativas com várias discordâncias internas entre diversas partes, mas podemos falar razoavelmente sobre o feminismo como algo que, se não for definível, é pelo menos identificável -- embora nesse nível não possamos mais atribuir fenômenos a esse objeto com facilidade. Quando tratamos da esquerda e da direita, tratamos de algo ainda mais amplo que o feminismo, porque no caso do feminismo ainda pode ser dito, na formulação mais genérica possível, que feministas combatem a opressão às mulheres. Mas qual formulação, mesmo se genérica, poderia definir a esquerda ou a direita? Não existem problemas da direita ou da esquerda como existem questões feministas ou os problemas dos professores da universidade x. A divisão entre os assuntos da esquerda e os da direita sempre se mostra repleta de contradições e exceções que trivializam ambas as definições. O que constitui uma postura de esquerda ou uma de direita? O apoio à autoridade do estado? A defesa da igualdade social? O apego aos valores tradicionais? Ambos os lados mostram todas essas características. A legalização de certas drogas é tipicamente recebida como uma demanda de esquerda, mas existem também muitos liberais que, para que o mercado seja liberado da intervenção profunda do estado, defendem que as drogas devem ser legalizadas, bem como o aborto e a prostituição. A defesa da legalização do aborto como um serviço que apenas o indivíduo pode requisitar ou evitar coincide com a causa feminista de afirmar que a mulher tem o direito absoluto sobre o seu próprio corpo, e vai contra a demanda cristã de que todo feto seja considerado um indivíduo com alma. O conteúdo filosófico do cristianismo, que é geralmente associado a movimentos conservadores (no sentido moral e também no político) , é facilmente compatível com os ideais socialistas e em vários pontos é incompatível com o incentivo capitalista da concorrência e do lucro (o cobrador de impostos é o vilão em diversas passagens bíblicas). Liberais frequentemente se colocam contra o estado paternalista, a favor da ideia de um estado mínimo, no qual o indivíduo pode comprar armas para se defender, estabelecer seus próprios contratos e buscar a educação que lhe convém. Isso é muito distante do status quo, mas tais ideias são tratadas como conservadoras, embora efetivamente não estejam conservando praticamente nada da ordem vigente. Socialistas costumam ser bem mais conservadores em relação ao alcance do estado. As propostas anarquistas foram historicamente ridicularizadas e até perseguidas entre os socialistas em diversos momentos fundamentais. É comum que socialistas fiquem presos na exegese escolástica dos textos de Marx como se necessariamente o autor canônico tivesse que ser a fonte da verdade, enquanto é mais comum entre os liberais o estudo sem apego irrefletido de diversas fontes e o elogio da inovação e da postura de concorrência também no plano intelectual. O indivíduo criativo é melhor considerado pelos "conservadores" que pelos "progressistas". Pense por um momento na complexidade e nas contradições da história e dos agentes políticos -- o uso dessas categorias é uma escolha narrativa.

Não existem questões, intenções ou opiniões que sejam intrinsecamente de esquerda ou de direita, o que significa que ações também não podem ter nem uma essência nem outra. A esquerda e a direita são mitos, conceitos usados para construirmos nossas narrativas que não dependem tanto do estado das coisas quanto dependem de nossos desejos e traumas. Pessoas se incomodam com o status quo quando suas ambições individuais são impossibilitadas pela coerção ou incompetência de outros agentes sociais, quando segundo seus valores a sociedade fere a dignidade de alguns indivíduos, quando os valores cristalizados na estrutura formal da sociedade não correspondem mais com os valores mais vívidos na população, etc. Os argumentos e os conceitos que justificam uma mobilização surgem muito depois do incômodo que de fato a motiva, como uma forma de esclarecimento e comunicação daquilo que está acontecendo não apenas na razão. mas também nos afetos. A compreensão da política sob a divisão entre a esquerda e a direita tem realmente duas funções na maioria dos casos, que são duas faces do mesmo processo: A primeira é simplificar o volume de informações diversas e contraditórias ao qual uma pessoa se expõe durante alguns minutos de discussões políticas, a segunda é motivar mais profundamente a mobilização política em torno de determinadas insatisfações. Acontece que, posto que a origem das demandas políticas não é estritamente racional, os meios para alcançar tais demandas raramente são racionais para além da superfície. Disputas políticas geralmente envolvem choques entre vontades de diversos agentes e grupos distintos, e os meios empregados sob tal confusão violenta frequentemente são dúbios de um ponto de vista moral. Não é raro que alguém que luta contra a opressão acabe justamente oprimindo alguém como um meio para atingir sua causa. Um indivíduo que decide usar demais a razão e se manter fiel a seus princípios morais durante sua atuação política quase certamente vai discordar de membros de seu próprio grupo ou movimento, e vai ainda concordar com a oposição em diversos pontos. Nessa situação, a intensidade afetiva de sua mobilização diminui, porque o indivíduo começa a questionar se sua causa nobre é realmente tão pura sendo que existe uma oposição que também tem uma causa nobre, e com tais questionamentos sua disposição para atacar membros da oposição ou para participar das trapaças empregadas por seus colegas desaparece. A razão não é capaz de fazer com que afetos se criem ou se dissipem, mas é capaz de fixar, ampliar ou reprimir o conteúdo irracional na consciência. Sem a certeza de que a oposição merece ser odiada e menosprezada, a certeza de que seu próprio lado na disputa merece adesão total também se perde, e o indivíduo fica propenso a se incomodar com as posturas de companheiros e opositores igualmente. A frente da atuação política costuma repelir aqueles que realmente buscam a verdade e a moralidade, favorecendo as simplificações e as verdades parciais.  

Por outro lado, tais conflitos internos não afligem o indivíduo que simplifica os fenômenos e agentes políticos com suas categorias. Tache uma pessoa de "esquerdista", "coxinha", "reacionário" e você não terá qualquer dificuldade em ignorá-la, desprezá-la, atacá-la. O indivíduo rotulado não é mais um ser humano passível de empatia para o intérprete que aplica a categoria, mas apenas um objeto indesejado colocado no caminho para sua justa causa. A certeza reforça a motivação e sua profundidade determina o quão longe um indivíduo está disposto a chegar por uma causa. Por isso mobilizações políticas tipicamente fazem uso de simplificações como uma forma de incitar o combate à oposição através dos meios necessários. Quando as coisas chegam a um ponto no qual ninguém mais sabe realmente o que quer da política, no qual os embates com outros agentes geraram outros traumas e demandas que soterram as motivações originais, as simplificações chegam ao ponto dos termos como "esquerdista", um grau de polarização e simplificação perigosamente próximo daquele promovido pelos regimes fascistas. Entendo que provavelmente é inevitável que tais ferramentas e simplificações existam na política. Não é a princípio um problema que a política não siga a rigor o caminho da moralidade (inclusive porque muitas vezes mudar a moral vigente é a demanda), e não é necessário que todo manifesto político seja uma belíssima obra filosófica. Isso porque a atuação política é, em grande parte, um teatro, uma exibição que precisa ser intensa para alcançar o resultado esperado. Nenhuma demanda política é alcançada por meios "politicamente corretos"*¹. A organização vigente precisa ser desorganizada a contragosto dos atuais encarregados para que outra possa surgir, e para que um movimento seja capaz disso se faz necessária uma propaganda, que não chega longe se for intelectualmente refinada. O que provoca problemas é o fato de que muitos indivíduos não sabem que estão usando de truques e sofismas na atuação política. Muitos indivíduos não cultivam suas capacidades intelectuais e sensíveis para além do estado bruto que se apresenta na política. Um indivíduo pode usar as ferramentas usuais na política estando consciente desse processo. Por exemplo, uma feminista pode dizer "todo homem é um estuprador em potencial" como um discurso chocante, destinado a coagir as autoridades de alguma instituição pública para que a implementação de mais medidas de segurança contra o estupro seja encaminhada, sem nunca tratar a nível pessoal um homem como um estuprador em potencial. Isso porque o papel daquela afirmação é ameaçar e desmoralizar a resistência da oposição e motivar a insistência cada vez mais intensa daqueles que sustentam a demanda. A afirmação em questão não tem a função de dizer a verdade, de explicar como o mundo funciona ou mesmo de expressar aquilo que a pessoa sente. Igualmente, um indivíduo pode agir em uma ocasião se colocando como um conservador, ou como um revolucionário, qualquer performance necessária para transmitir uma mensagem e atingir um resultado sem precisar carregar aquele papel para outras esferas nas quais tal postura não é pertinente.

Entretanto, é incomum que a relação entre identidade e política seja entendida dessa forma. Em geral, pessoas acabam transformando afirmações políticas estratégicas em verdades e discursos de identidade, que frequentemente resultam em discursos de ódio. Por exemplo, durante as tensões em torno do impeachment da presidente Dilma, diversos exemplos de amizades sendo desfeitas e relações familiares sendo deterioradas entre pessoas de lados opostos foram observados, acredito, por todos que acompanharam a situação nas redes sociais. Isso aconteceu porque o embate entre esquerda e direita certamente não foi tomado naqueles tempos como uma espécie de performance, na qual ambos os lados dependem da existência da oposição como condição de existência própria. Se a oposição tivesse sido entendida assim, não teria sido levada para fora daqueles assuntos políticos e ninguém seria tachado em outros âmbitos de "coxinha" ou "esquerdista". Termos como esses sequer existiriam em posições políticas. Em vez disso, a oposição foi tratada como uma questão identitária, como é de costume. A formação filosófica da maioria dos principais agentes políticos de hoje é extremamente pobre, às vezes inexistente. Não me refiro à formação filosófica no sentido formal ou acadêmico, mas sim ao sentido mais natural de filosofia, dos indivíduos serem minimamente habituados para a percepção da natureza, origem e sentido de ideias ou discursos e buscarem o refinamento de seus pensamentos mais que o acúmulo de informações particulares. Por causa dessa falta, a maioria dos agentes políticos trabalha ignorando distinções conceituais importantes e confundindo teorias com fatos, interpretações com dados, etc. Isso transforma a simplificação do discurso que é comum na política em uma simplificação do pensamento que permeia outros planos, porque o indivíduo não sabe como exigir mais de seus pensamentos e dos discursos alheios quanto é adequado (e.g em uma aula ou em uma conversa entre amigos). Outro fator bastante influente é a compulsão narcísica que se intensifica cada vez mais em nossas dinâmicas políticas e afetivas. Nossas dinâmicas sociais se apoiam demais no culto e no repúdio a determinadas figuras, e é comum que pessoas tenham como meta a "autodescoberta", no sentido da definição de uma identidade em vez do "conhece-te a ti mesmo", no sentido de uma lucidez filosófica e espiritual. Assim, além da falta de habilidades intelectuais básicas que levariam qualquer indivíduo a perceber o absurdo de certas posturas intelectuais diante dos temas políticos, existe um impulso narcísico*² que faz com que pessoas queiram, até a nível afetivo, rótulos como "conservador" ou "revolucionário". Tudo isso  afunda ambos os lados da disputa binária cada vez mais profundamente na estupidez e na má-fé.

Nas discussões que se colocam como de alto nível, a situação geral tende a ser a mesma. É muito comum que o termo "neoliberal" seja usado, mesmo entre acadêmicos dos quais se esperaria maiores conhecimentos, como uma espécie de insulto que desqualifica alguma postura ou ideia automaticamente (como ocorre com o termo "positivista"). Assim como nas discussões comuns pessoas se agarram às suas categorias como se isso fosse resolver suas contradições e compulsões internas, acadêmicos muitas vezes trabalham na forma de um exercício de categorização das ideias como se isso resolvesse as severas dificuldades éticas e epistemológicas que se apresentam àqueles que decidem definir o que é um trabalho "sério", "profissional", "rigoroso", "científico", etc. Incontáveis artigos acadêmicos exploram assuntos como "Camus era ou não existencialista? " ou "Popper era positivista?". Usando desses temas extremamente específicos e que praticamente ignoram a atualidade, especialistas encontram assuntos que são alheios ao público em geral e justificam assim uma posição de autoridade intelectual, afirmando que conhecem algo refinado e de difícil acesso, quando realmente esses assuntos costumam ser apenas particulares e nebulosos (por serem disputas em torno de interpretações obras, não de proposições sobre o mundo) demais para serem relevantes para o público. No meio acadêmico, uma máscara é o suficiente. Nosso "meio intelectual' gira em torno do culto e do repúdio a certas figuras tanto quanto a política no "senso comum", isso tanto em relação aos autores canônicos quanto em relação aos professores mais procurados para palestras, entrevistas, etc. Circula impune uma ideia corrupta de humildade intelectual, que consiste realmente em se delegar o esforço que meditar, discursar e dissertar envolve a certas figuras que são consideradas autoridades. Isso impede que o público maior perceba o quanto nossos supostos intelectuais abusam de vícios de linguagem e simplificações do tipo "bem versus mal" tanto quanto qualquer indivíduo "comum". A tentativa de se desqualificar algo com o termo "neoliberal"  mostra preguiça no discurso e superficialidade no pensamento, dada toda a complexidade da tradição liberal e a diversidade das teses dos autores que não são nenhum grupo uniforme (ou mesmo definido, realmente). Apesar de não ser muito difícil para qualquer um perceber tais insuficiências nas posições de certos (supostos) filósofos, o valor da humildade em sua forma corrompida pelo medo e pela preguiça faz com que os seguidores dessas figuras simplesmente copiem o exemplo e naturalizem cada vez mais esses vícios, sentindo-se orgulhosos desse estado de menoridade intelectual e detestando de imediato qualquer um que sugere que a originalidade é tão importante quanto a diligência. Mesmo no campo da atuação política, no qual a simplicidade das ideias é em grande medida conveniente, reações violentas imediatas à identificação de alguém com a esquerda ou com a direita são bastante perigosas e geralmente um estorvo. Em discussões que se pretendem intelectuais, é uma questão de princípio que a exigência com as ideias seja muito maior (acadêmicos frequentemente confundem isto com a exigência de formalismos). É bastante vergonhoso testemunhar um indivíduo com doutorado e que exige toda a "humildade" das "pessoas comuns" tachando isto e aquilo de neoliberal como um recurso retórico, como se essa espécie de discurso fosse suficiente para tratar quaisquer processos. O meio acadêmico atualmente é praticamente mantido por compulsões narcísicas, e pela mistificação dos títulos acadêmicos, que garantem bem menos do que a propaganda universitária sugere. Doutores saturam a produção acadêmica com mais e mais artigos de comentários sobre comentários como se estivessem contribuindo com a situação intelectual do Brasil (até do mundo, na mente de alguns). Isso torna quase impossível que alguém que não tem doutorado explique para um professor doutor que o sujeito não está fazendo o papel que pensa estar valorosamente praticando a anos -- e entre doutores tais críticas muito raramente surgem porque se forma ali um interesse pela própria classe, bem merecedora da ironia do termo "elite doutoral". Enquanto uns passam a vida saturando a produção acadêmica com apresentações formais das mesmas coisas em nada superiores ao "senso comum", aqueles que aparecem com frequência para o público em geral (os "formadores de opinião") geralmente produzem textos e discursos que entretém indivíduos de direita ou de esquerda reforçando suas certezas tolas e seus vícios de linguagem.  

A filosofia não é uma disciplina formal que requer as práticas e convenções acadêmicas atuais para existir, mas é essencialmente uma qualidade humana que, embora não seja tão imediatamente importante quanto outras habilidades mais simples, é fundamental para muitas questões mais refinadas que a mera sobrevivência, é um dos fatores que definem se somos algo mais que uma série de reações químicas. A habilidade filosófica simplesmente não tem sido exercitada e demonstrada o bastante, seja fora ou dentro do meio acadêmico, e o estado lamentável da política é apenas uma entre as diversas consequências disso. A ideia de que a filosofia é inútil não é responsabilidade da população em geral, mas precisamente dos especialistas que tentam repor a ideia da filosofia como um pensar casual, distraído e sem propósito com a ideia da filosofia como o conjunto dos formalismos e idiossincrasias da academia. A alternativa oferecida não colabora para que o preconceito comum em relação à filosofia seja rompido porque se trata também de um velho e cada vez mais obstinado preconceito, uma postura que ignora justamente o exemplo dado por figuras como Descartes, Kant e Nietzsche -- que são idolatrados nas universidades de uma forma que desagradaria imensamente qualquer um deles. Nossa sociedade está saturada de velhos hábitos intelectuais, especialmente de hábitos que parecem "humildes" com a excelência dos clássicos, mas que no fundo ignoram constantemente o exemplo, a atitude dessas figuras. A impotência das ações e discursos é diretamente relacionada com o desgaste dos conceitos, teorias e referências. Faça a seguinte observação (ou lembrança): Quantas das opiniões que você lê nas redes sociais são textos da própria pessoa que os publica, e quantas são citações de fontes que sempre são citadas por muitas pessoas? Quantos dos trabalhos acadêmicos que você lê são resumos, comparações e explicações sobre os trabalhos de outros autores mais famosos que o indivíduo que publica, e quantos são teses sobre algum tema nas quais o indivíduo que escreve fala em seu próprio nome e assume suas ideias como conhecimentos? Entendo que, operacionalmente, compartilhar um texto é mais fácil que escrever um, e que algo semelhante vale no meio universitário. Mas é bastante claro que existe também um medo que acompanha esse habito, um medo que é forçado e reforçado por supostas autoridades intelectuais e justificado por uma ideia incorreta de humildade. A capacidade para a formulação de textos autorais é pouco exercitada, enquanto o hábito de copiar e reproduzir é incentivado pelas redes sociais que lucram com isso e pelos acadêmicos que mantém suas máscaras assim.  

As grandes revoluções políticas geralmente acompanham o surgimento de revoluções filosóficas. Os discursos, conceitos e referências também se gastam com o tempo, e os conceitos precisam ser ou renovados ou recriados de tempos em tempos para serem capazes de inspirar e influenciar. Muito se perde quando o indivíduo não explora sua riqueza interior e tem medo ou incapacidade de comunicar suas ideias em suas próprias obras, porque cada indivíduo tem uma soma única de experiências, com a qual poderia chegar a obras, teorias, tecnologias e ideias que enriqueceriam a humanidade, como os clássicos fizeram antes de nós, que não o fizeram em um único e absoluto acerto, mas através de uma vida de aperfeiçoamento de erros. A coragem e a habilidade de se formular conceitos próprios é uma das razões pelas quais os clássicos foram capazes de influenciar a história com suas palavras. Aqueles que conseguem apenas citar os conceitos e formulações de outros estão sempre atrasados, sempre dependentes, sempre na menoridade intelectual. A população passiva intelectualmente (na qual consta a maioria dos acadêmicos) idolatra certas figuras esquecendo de si mesma. Louvando o trabalho de um alemão ou francês do século 17, o indivíduo se esquece de aprimorar suas próprias obras e capacidades e de apreciar aquelas de seus próximos. Um dos muitos resultados disso é que nossas discussões ficam saturadas e engessadas por termos que pessoas reproduzem automaticamente. A postura mais passiva e contemplativa tem sua importância, e um mundo no qual cada indivíduo é um Sócrates ou um Nietzsche seria tão difícil de suportar quanto o nosso é entediante. É apenas natural que a postura acadêmica seja menos original e mais formal, mais rigorosa e mais retrospectiva. Também não é um problema a princípio que mais pessoas observem e estudem e menos pessoas produzam e criem. Mas temos agora um problema de saturação, porque nossa cultura e nossas instituições não tratam adequadamente a originalidade e as propostas que desafiam ou expandem as perspectivas ortodoxas, apesar dos termos "inovação" e "crítica" serem tão frequentes enquanto propaganda.

O repertório da política precisa ser renovado de tempos em tempos, do contrário novas soluções não são desenvolvidas, novos ideais não são contemplados. Muitas pessoas pensam hoje que todas as possibilidades políticas da humanidade já foram exploradas. Um filósofo do século 17 escreveu essa mesma opinião antes do socialismo, do anarquismo e do capitalismo como conhecemos hoje. Nós mesmos ignoramos agora o comunalismo do Curdistão, uma forma política que não corresponde a nenhuma das que habitualmente discutimos. Isso porque na academia apenas os trabalhos canônicos são citados, o que faz com que "a coruja de minerva levante voo apenas ao anoitecer". Enquanto isso a população geral segue as sombras da academia, que são sombras das sombras do mundo... A política é um jogo de forças, o jogo do poder. Atuar politicamente significa querer que algo se realize, conduzir o ser na direção de um "dever ser", da imaginação de um futuro. Se nossos conceitos e hábitos intelectuais como a fixação narcísica de uma esquerda e uma direita produzem apenas um redemoinho de ódio e diversos desperdícios esporádicos de energia, manifestações violentas e de mínima duração na qual apenas a própria população é realmente derrubada, isso é um sinal de que nossos conceitos e referências já não nos oferecem muito poder. Não é realmente surpreendente que estejamos em tal situação. Os hábitos intelectuais da maioria de nós se resumem a seguir autoridades, figuras famosas que respeitamos mais que a nós mesmos. Esse estado de servidão e menoridade intelectual poderia apenas se espelhar na forma de uma impotência política. Não posso dizer com certeza que necessariamente novos termos trariam algum progresso à civilização, mas posso afirmar com convicção que nos faria bem, como indivíduos, se cultivássemos em nós um pouco mais do exemplo deixado pelos clássicos dos quais atualmente idolatramos apenas as palavras, nos faria bem um pouco menos de "humildade" e um pouco mais de coragem e esforço. O fracasso com dignidade é preferível ao fracasso por preguiça e covardia.

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Notas:

*1: Nenhuma demanda política é alcançada por meios "politicamente corretos".

Quando uma determinada ordem ou interesse de um grupo se instala na estrutura de uma instituição (ou do estado em geral), é comum que os próprios espaços onde a crítica ao status quo poderia ser feita de forma pacífica sejam modificados para que apenas discursos e ações favoráveis ao estado vigente sejam possíveis dentro da legalidade, o que torna necessária a ação ilegal ou incompatível com as atuais convenções sociais. Quando foi feita a marcha da maconha, a manifestação foi tachada pela mídia e pelas instituições públicas de "apologia ao uso de drogas ilícitas". Veja como isso é circular. Existe uma lei que proíbe a comercialização e uso da maconha, e existe outra que criminaliza o elogio do uso da maconha. Como seria possível uma manifestação de pessoas que discordam da primeira lei não infringir a segunda? Se uma pessoa vai a uma manifestação dessas, é óbvio que o indivíduo tem interesse em usar a droga e não acredita que existe algum mal nisso. Dada a natureza das manifestações políticas, fazer apologia do uso da maconha é uma propaganda necessária para qualquer movimento contra a legislação atual. Autoridades frequentemente criam situações nas quais a crítica fica suprimida ou colocada em uma posição completamente injusta, e depois cinicamente exigem uma postura cordial ou pacífica de seus opositores. Nesses casos, se fazem necessárias greves, posturas hostis, destruição de propriedade, etc. Entretanto, note que as transgressões morais utilizadas para se atingir uma causa dizem muito sobre seu valor. Uma causa que faz uso de extrema violência provavelmente não é das mais nobres.       

*2: Sobre o termo "narcisismo" 

Você conhece bem a noção psicanalítica de narcisismo? Se não, este texto talvez lhe interesse.

*3: Circula impune uma ideia corrupta de humildade intelectual

Uma pessoa humilde é aquela que trata suas limitações com honestidade, não tentando disfarça-las. Isso diz respeito ao tratamento com outras pessoas no sentido de que alguém que é honesto em relação às próprias limitações dificilmente julga com prepotência outros indivíduos, afinal a pessoa humilde percebe no outro qualidades que não percebe em si mesma. Entretanto, a pessoa que toma suas limitações como absolutas não é humilde tanto quanto é derrotista e preguiçosa. Não existem bons motivos para que qualquer indivíduo pare de tentar aprender, pare de tentar melhorar suas habilidades, refinar suas obras, tornar-se mais sensível, etc. Ser humilde significa admitir seu lugar no processo de aprendizado, não parar esse aprendizado e louvar eternamente quem parece estar mais à frente. Ser humilde não significa pensar pouco, não significa aceitar ordens e informações sem pensamento crítico. Ser humilde não significa ser intencionalmente idiota. E ser humilde também não significa subestimar seu lugar para agradar pessoas pomposas e arrogantes. Exigir humildade de alguém é arrogância, é impor ao indivíduo limites que não seus, é um julgamento tolo e uma ofensa. Pessoas frequentemente encontram motivos, quando são autoridades, para impor suas próprias trajetórias sobre outros. Doutores que foram subservientes com seus professores impõe uma postura acrítica a seus alunos. Pessoas de mais idade muitas vezes cometem o deslize de usar o tempo como argumento "na minha idade você verá" ignorando que o tempo e a experiência por si mesmos não ensinam, que muitos permanecem aos cinquenta anos com a mesma cabeça dos quinze. Aceitar de antemão as palavras de um doutor, filósofo clássico ou autoridade qualquer simplesmente pelo título de autoridade não é humildade, é superstição. Todo ser humano é passível de errar e exercita isso com frequência. Um suposto intelectual que finge que seu título de especialização o isenta da necessidade de argumentar, prestar contas e ser corrigido quando for devido é simplesmente uma farsa. Permitir que tal postura passe impune não humildade em sentido nenhum.

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