segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Evolução pela Razão

Quando se trata da relação entre as instituições públicas e a educação, as discussões quase sempre giram em torno do acesso à educação. Discute-se se o estado deve ampliar ou reduzir seus investimentos nestas e naquelas instituições, discute-se se a profissão dos professores é valorizada, tanto no sentido financeiro quanto no cultural, etc. Mas existe outro aspecto igualmente importante da questão que é muito frequentemente ignorado, em alguns casos propositalmente. Além da questão de como e em quais condições o conhecimento é transmitido e disponibilizado, existe a questão de como e em quais condições o conhecimento é formulado. Assumir de antemão que aquilo que está registrado nos materiais didáticos ou que é trabalhado de forma especializada nas universidades é a verdade, a convenção mais útil, ou mesmo informação relevante simplesmente porque existe um cânone de especialistas transmitindo e reforçando os mesmos métodos e verdades é ingenuidade. Assume-se com muita facilidade que a educação básica se encontra em estado precário, que um indivíduo pode passar pelo processo de formação básica sem construir de fato metade das habilidades que se espera de alguém que passa por tantos anos de disciplina escolar. Quando se trata do ensino superior, porém, a proposição de que alguém tem doutorado mas não tem um grau de conhecimento ou sabedoria que justifique todo o esforço do processo costuma causar escândalo. Todos entendem que alguém pode passar pelo ensino médio sem saber, por exemplo, o nível de matemática exigido durante o ensino fundamental, que uma instituição educacional pode se corromper e se tornar um espaço no qual todos os envolvidos desperdiçam tempo e esforço, seja em aulas que se tornam inúteis ou em avaliações que se tornam hipócritas. Com isso em mente, deveria ser evidente que as instituições de ensino superior são sujeitas ao mesmo risco de corrupção. Sendo essas instituições a fonte e o depósito daquilo que se certifica como racional, até como verdade, é de fato um grande perigo assumir de antemão que nossos especialistas e tradições merecem alguma autoridade sobre o conhecimento.

A esmagadora maioria dos trabalhos e debates acadêmicos atuais não chega e não poderia chegar ao público*¹. A coisa mais próxima de um contato do público com a produção acadêmica ocorre na forma de notícias vagas comunicadas no formato " cientistas afirmam que x", ou na forma de palestras que divertem alguns indivíduos, que contemplam e aplaudem as banalidades ditas pelo filósofo x ou economista y. A justificativa mais comum para esse cenário é a de que a universidade é e deve ser uma " torre de marfim ", um espaço no qual ideias e conhecimentos do mais alto e inacessível nível são trabalhados, um nível que não pode ser trabalhado fora da universidade porque a sociedade não é livre o bastante, ou porque as pessoas de fora não são cultas o bastante. O problema dessa mentalidade é que ela bloqueia toda espécie de crítica às possíveis limitações na forma de se produzir conhecimento no meio universitário, porque ela postula e reforça circularmente que existe uma qualidade ou virtude comum aos grandes especialistas acadêmicos que é necessariamente ausente no público externo. Se os grandes especialistas trocam artigos e elogios entre eles mesmos em uma linguagem que ninguém mais pode compreender (nem mesmo grandes especialistas de outras áreas), isso deve ser porque a dedicação dos especialistas àqueles conhecimentos refinadíssimos é tão nobre e tão difícil que pouquíssimas pessoas poderiam ter o espírito virtuoso o bastante para essa missão cristã. Uma missão cristã de tal magnitude deveria estar salvando nossas almas, apaziguando conflitos políticos, curando o câncer, propagando o espírito filosófico, etc. Se isso não acontece, e ainda notamos que no meio acadêmico cada um disputa por conta própria para ter um nome famoso ou associado a alguma patente lucrativa, que mesmo os grupos que se formam são grupos de interesse no sentido mais mundano e, talvez, mesquinho, questionar essa estrutura é uma questão de dignidade, posto que as práticas intelectuais e políticas consideradas adequadas dentro desse meio talvez sejam elas mesmas transgressões de diversos princípios morais e dos ideais que supostamente defendem.

Qual é o propósito de uma universidade? Ainda antes, qual é o propósito do conhecimento? Porque alguém se empenharia em uma construção de conhecimento? Sabemos que informações são úteis, que entender isto ou aquilo em particular permite que um sujeito organize sua vida. Mas acontece que a dedicação ao conhecimento implica na busca, criação e comunicação de noções que fogem aos nossos interesses imediatos. Por exemplo, é muito fácil convencer alguém que mora perto de um rio de que é importante sabermos se aquele rio não está poluído. Mas convencer o mesmo indivíduo a estudar como um rio se torna poluído, como impedir que isso aconteça ou quantos rios serão poluídos no futuro volta nossa razão para um interesse que não é imediato, porque nós em particular (e boa parte de nossos descendentes) estaremos mortos antes desse tipo de previsão se tornar imediatamente relevante. Convencer um indivíduo de que o aquecimento global é relevante não é tão simples quanto convencê-lo de que a temperatura de amanhã, em particular, é relevante. A construção do conhecimento conduz um sujeito à pretensão de entender isto ou aquilo em geral, universalmente, na forma de teorias ou conceitos filosóficos, e sob interesses em grande medida abstratos, interesses em previsões válidas a longo prazo, no entendimento da constituição daquilo que existe, etc. A superstição de que existem buscas desinteressadas pelo conhecimento não é inteiramente infundada, se trata de um exagero, mas não de uma falsidade. Acontece realmente que os interesses de quem busca o conhecimento ou a sabedoria são mais complicados e idealizados, e não necessariamente se relacionam bem com o mundo concreto, tanto menos com os mecanismos da sociedade. Um indivíduo pode passar sua vida buscando entender algo, e até chegar à conclusão de que o compreendeu, sem obter com isso nenhuma recompensa por parte da sociedade, sem viver para saber quais frutos seu trabalho cultivou. E, mesmo assim, muitos buscaram precisamente esse tipo de vida, uma vida para a arte, e mesmo entre aqueles que não veem e não querem ver nada além dos interesses imediatos, é comum que exista uma admiração pelos espíritos "profundos". É precisamente essa admiração que leva muitos indivíduos mais, digamos, diretos, ao meio acadêmico. A proporção entre pessoas interessadas no conhecimento e pessoas interessadas apenas em informações é igual dentro e fora da academia, mas dentro da academia um indivíduo pode se beneficiar da fantasia e da fama de ser "profundo". É também pela mesma admiração que se sustenta a confiança cega do "senso comum" naquilo que se produz dentro da academia.

Quando se fala em evolução das espécies, geralmente se trata estritamente de biologia, ou de uma interpretação biológica de algum aspecto da cultura. Mas se existe tal coisa como a cultura, se podemos formular, comunicar e concretizar ideias, se podemos produzir e cultivar afetos, se podemos planejar e manipular experiências a evolução da espécie humana não depende estritamente de mutações genéticas aleatórias e da resposta do ambiente a tais mutações. A humanidade pode evoluir cultivando obras e ideias, cultivando um legado para que as próximas gerações possam partir de mais possibilidades que nós. Essa é minha explicação para a admiração ao cultivo do conhecimento. A admiração aos artistas também pode ser explicada de forma semelhante, tanto no campo da arte mais focada no entretenimento quanto no campo da arte que se pretende contemplativa ou transformadora. Em todos esses casos se tratam de esforços que aumentam a quantidade e qualidade de livros, filmes, ideias, experiências, teorias, enfim, que aumentam o legado da humanidade. Não sei se existe algum progresso na civilização, no sentido clássico de progresso, mas parece evidente que o número de possibilidades, de obras e conhecimentos dos quais alguém pode partir cresce com os esforços coletivos daqueles que se dedicam à arte. Se estou certo, se o sentido do conhecimento é evoluir a humanidade, isso coloca uma série de questões morais sobre as instituições que supostamente se encarregam dessa tarefa e coordenam as demais esferas da sociedade nesse aspecto.  

Ninguém sabe realmente se a dedicação a projetos abstratos ou até póstumos é no fim das contas algo valioso. É possível que toda a aparência de progresso na ciência, nos direitos humanos, em todas as palavras e fórmulas que mudam e se complexificam ao longo do tempo sejam apenas desenvolvimentos circulares, nos quais as coisas mudam de forma, mas não de essência, no qual a própria ilusão de que algo muda em relação ao passado faz parte de um processo cíclico. Também é possível que esses esforços mais complicados mudem de fato a realidade, mas para pior, em um processo de destruição do mundo pela razão pretensiosa e cega. O cultivo do conhecimento e da arte envolve uma fé, a fé de que existe algo intrinsecamente nobre e valoroso nos esforços que fazem a humanidade ao menos parecer algo profundo, distinto da visão traçada pelo materialismo mais rigoroso. Sendo assim, não se pode impor que alguém sustente essa fé no conhecimento dentro de uma universidade, tanto menos fora. Um indivíduo que se dedica a apenas obter informações não é imoral nem impassível de ser admirado por não ver no estudo mais do que pode ser de fato visto, testado e comprovado. Informações são úteis, e ater-se a essa utilidade é apenas racional. Entretanto, é difícil encontrar um indivíduo desse tipo que é consciente de que ler um certo volume de obras escritas pelo autor x não equivale a ter ou construir conhecimento sobre o assunto abordado pelo mesmo. Historiadores da filosofia acreditam que são filósofos, ou pelo menos o máximo da filosofia possível entre nós meros mortais. Revisores de artigos científicos e formuladores de experimentos que servem apenas como exercícios didáticos acreditam que são cientistas no mesmo sentido que Galileu ou Newton. Como a fama de ser profundo é algo racionalmente útil, indivíduos que apenas acumulam informações particulares costumam almejar também a categoria daqueles que buscam o universal. É nesse ponto que o próprio conceito de universidade ( ou academia) passa a ser  corrompido.

A prática de se buscar o desenvolvimento da arte ou do conhecimento enquanto objetivo principal é diferente da prática de se buscar a obtenção de informações, a pesquisa no sentido acadêmico vigente, como objetivo primeiro. No primeiro caso, como discutido antes, o indivíduo faz um esforço que tende a não se relacionar bem com o mundo atual, porque é em diversos sentidos extemporâneo*³. No segundo caso, o indivíduo faz um esforço pela sua carreira acadêmica, por benefícios práticos bastante observáveis que geram vínculos e obrigações também bastante observáveis. Aqueles que são vistos como loucos por seus contemporâneos são justamente por isso liberados do peso da normalidade, de uma série de expectativas que acompanham as recompensas da sociedade. Em contrapartida, um doutor não pode mudar sua linha de pesquisa do dia para a noite se quiser conservar seu renome, mesmo que seu espírito queira a mudança. Como antes dito, não se pode exigir de alguém a fé no conhecimento ou na sabedoria, mas uma vez que os diferentes estilos de carreira intelectual e artística são confundidos, em geral propositalmente, ambos os lados são corrompidos, e essa corrupção tende a prejudicar mais aqueles que sustentam a fé na evolução da humanidade. Acontece que o meio acadêmico é mantido por regras institucionais e por uma hierarquia que, em última instância, dependem de relações de autoridade em relação ao conhecimento. Um especialista não seria nada de especial se não tivesse o monopólio de seu assunto e a autoridade de censurar aqueles que, segundo sua informação e juízo, não são treinados como ele. Assim, aqueles que buscaram informações, que sabem se Kant disse isso ou aquilo na página x do livro y ou que assistiram centenas de comunicações científicas, esses indivíduos passam a assumir a autoridade sobre o conhecimento no sentido mais profundo, que eles não cultivam e frequentemente sequer entendem. Não existem cursos de história da filosofia ou de técnicas de se trabalhar com os conteúdos da física, mas simplesmente cursos de filosofia e cursos de física, e é de interesse imediato dos especialistas encarregados que os procedimentos que são exigidos no meio acadêmico sejam chamados de filosofia ou de física, e assim o público em geral, dentro e fora das universidades é levado a confundir as buscas mais particulares e imediatamente úteis com o salto de fé que existe no avanço do legado da humanidade. Essa confusão prejudica o público, os especialistas, aqueles que buscam realmente alguma sabedoria, o legado da humanidade e o funcionamento da academia.

A partir do ponto em que meras informações são tratadas como conhecimentos, e sob a autoridade de especialistas que perpetuam essa confusão, a frágil fé daqueles que talvez busquem um conhecimento ou arte no sentido profundo mas que ainda não se decidiram firmemente sobre essas questões é massacrada por um meio que afirma que ler Kant é ser como Kant, que pune o iniciante que se atreve a tentar ser original com provas, seminários, críticas maldosas e tudo mais que na rotina acadêmica se chama de "formação". O número de filósofos, cientistas e artistas tende a ser proporcionalmente pequeno por uma série de fatores. O fato de que tantos indivíduos passam pelo meio acadêmico sem a consciência das distinções que existem entre filosofia e história da filosofia, entre ciência e a disciplina em técnicas científicas, essa falta proposital de distinção tende a diminuir ainda mais esse pequeno número de possíveis criadores, especialmente porque, por exemplo, a ideia de que um leitor e comentador de filosofia não é diferente de um Kant ou um Descartes em tipo de trabalho, mas em grau de sucesso, essa ideia nos conduz à conclusão de que o leitor e comentador é intrinsecamente inferior aos "gênios". Essa conclusão humilhante e incorreta (por comparar pelos mesmos padrões práticas qualitativamente distintas) cria nos acadêmicos formados uma tendência ao autoritarismo, baseado na descrença na possibilidade de seus alunos e colegas serem filósofos, cientistas e artistas "geniais" como os clássicos. Afinal, o historiador acadêmico observa durante muitos anos que as obras normais no meio universitário não realizam nada daquilo que as obras clássicas realizaram, mas não admite que estas e aquelas obras são de ofícios muito distintos, porque precisa desse engano. Uma vez que o sujeito recebe uma autoridade que não merece realmente, que não corresponde àquilo de fato cultivou, resta ao indivíduo manter sua imagem não com as atitudes correspondentes, que exigiriam um conteúdo que não foi desenvolvido, mas forçando o meio ao seu redor a encenar, a fingir que o doutor encarregado é de fato um grande sábio. Os espaços dedicados ao avanço do conhecimento são poucos, e aqueles que tem a fé na evolução humana acabam convivendo durante muito tempo com aqueles que sustentam essa grande encenação que é o meio acadêmico. Isso é um fator a mais para a desmotivação de um tipo de trabalho que, em geral, dificilmente se recompensa em vida -- e em que mais alguém pode se basear, dadas as evidências? Além de serem reprimidos diretamente por autoridades acadêmicas, de muito raramente serem compreendidos ou apreciados, aqueles que se dedicam ao conhecimento lidam constantemente com o fato de que, do ponto de vista de uma busca mais profunda pela verdade ou pela criação de obras imortais, as figuras mais famosas e cultuadas pelo público são verdadeiros impostores que degeneram ativamente a humanidade com uma ideia decadente de razão -- e outra ainda pior de arte.

Uma vez que os indivíduos com a fé na construção do conhecimento se reduzem em número, o legado da humanidade reduz seu movimento, sua dinâmica se torna uma letargia, e essa sensação de estagnação na razão e na arte contamina com um profundo sentimento de tédio e futilidade muitas outras esferas da vida humana. Sem esse objetivo de evolução, Deus pode apenas permanecer morto, enterrado na supervalorização de certos indivíduos e obras em detrimento daqueles que estão vivos e próximos de nós, e de nós mesmos. O falso sinônimo entre informação e sabedoria também pesa sobre aqueles que o perpetuam mais ativamente. É comum que especialistas, especialmente doutores, acreditem realmente que trabalham pelo conhecimento, pela arte, pela democracia, enfim, que o benefício do trabalho com informações particulares não é também particular. Essa crença, essa fé confusa leva um indivíduo a contradições como ministrar uma longa aula expositiva destinada a transmitir conteúdos como se essa prática fosse um debate, algum movimento crítico e conjunto de ideias universais e profundas. Isso muitas vezes resulta em um profundo e confuso tédio no ambiente da sala de aula, a até mesmo em determinados congressos. Esse tédio, que nasce e se intensifica com o cinismo que ignora os cochilos, os celulares ligados, e as mentes distantes... o lento porém constante colapso de uma mentira não é visto pelos especialistas como algo que eles mesmos causam com suas promessas não cumpridas, com seus debates que sequer são diálogos. Então, a mente do indivíduo precisa formular fantasias nas quais sua postura é verdadeira e coerente, e o erro parte de outras fontes -- um processo de narcisismo doente provocado pela ideia fortíssima de identidade na qual boa parte do meio acadêmico se apoia. Isso resulta nos mais diversos complexos e neuroses, dado que o indivíduo adapta seus cursos ou suas falas tentando responder aos fantasmas que formula, enquanto um engano inicialmente simples e casual se torna cada vez mais complexo e coberto por uma espiral de razões e experiências. Além disso, o abismo entre a postura que se toma no meio universitário, supostamente profunda, e a postura que se toma nas demais esferas da vida pública e privada, que não poderiam ser realmente afetadas por títulos e palavras tão superficiais, gera também uma série de contradições e feridas. Em geral, apenas o acadêmico que é de fato desonesto e leviano consegue sustentar essa farsa sem sentir o peso da verdade ignorada. Aqueles que acabam se especializando mais por ignorância do que por falsidade, que acabam acreditando que o pobre meio acadêmico é a "torre de marfim", esses indivíduos sofrem com as próprias ilusões, talvez tanto quanto seus aprendizes.

O conhecimento e a sabedoria não são objetos e não podem ser oferecidos por um processo previsível de formação como aqueles oferecidos nas universidades ou nas escolas. Um curso tem a função de oferecer informações e de exercitar habilidades, não de desenvolver a autonomia, a razão, o espírito, etc. As promessas mais amplas e profundas geralmente associadas à educação podem servir como discursos motivacionais, mas é de princípio absurdo assumir que um processo burocratizado e impessoal de formação pode desenvolver sabedoria, ou mesmo conhecimento. Uma formação ensina um sujeito a utilizar técnicas, interpretar resultados técnicos, analisar textos, a administrar ou executar projetos, a se comportar dentro dos padrões exigidos pela sociedade, enfim, é um processo que torna o indivíduo útil, enquanto objeto. A aversão à ideia das escolas e universidades serem processos mecanizados e praticamente desprovidos de espírito é simplesmente um vestígio da confusão já discutida entre a busca pelo conhecimento, pela verdade, pela sabedoria e a busca por informações imediatamente úteis, que é aquilo que de fato ocorre em massa em todas as instituições de ensino da humanidade. Observe como as coisas procedem e negue isto se for capaz -- ninguém encontra ou cria nada de profundo sem se dedicar aos seus próprios métodos, sem assumir todos os riscos da inutilidade social a curto prazo. É muito comum a opinião de que a educação deve ser melhorada com um volume maior de conteúdos a serem estudados, sob um tempo também maior. Na realidade, as instituições de ensino serviriam a humanidade melhor se tanto a disciplina escolar quanto os cursos de ensino superior durassem muito menos, mas com muito mais qualidade, isto é, com turmas menores, com alunos mais dispostos por terem um volume menor de aulas, com professores mais bem pagos e responsáveis por menos turmas, etc. No ensino superior, alguém que se dedica de fato ao conhecimento não precisa de mais de um ano de curso. Passado esse período, o aluno se torna intelectualmente desinteressado no ritmo dos mestres acadêmicos, e o vínculo forçado prejudica ambos. No caso daqueles que estudam superficialmente apenas aquilo que é útil, que apenas querem saber e falar sobre a visão de um autor sobre um assunto... quanto tempo alguém realmente precisa para isso? Todos que frequentam a academia sabem que a grande maioria dos trabalhos, tanto de alunos quanto de professores é feita de última hora, e que todos sabem fazer um estudo de seis horas parecer um estudo de seis meses. O preço da hipocrisia e do orgulho infantil daqueles que negam esses traços completamente óbvios da dinâmica acadêmica é, a longo prazo, uma série de processos que os prejudicam tanto pragmaticamente como moralmente. Por exemplo, os diversos cortes de verbas e censuras (e.g "escola sem partido") que afetam a educação são formulados por uma elite política imoral, mas são apoiados por pessoas que observam o fato de que existe um grande desperdício envolvido com as instituições de educação, e que mesmo os poucos resultados atingidos às vezes são prejudiciais aos estudantes. A percepção dessas pessoas é confusa, mas podemos realmente culpá-las por serem confusas diante de tantas falsidades?
Sem nossas próprias corrupções, essas medidas corruptas teriam alguma chance?

As tarefas de formação básica atualmente atribuídas à escola também seriam melhor desempenhadas de uma maneira não institucional. Muitos percebem o fato de que poucos alunos se formam no ensino médio sendo mais que analfabetos funcionais, quando muito, e isso torna comum a opinião de que os alunos precisam de mais aulas de português. Mas qual seria o efeito desse maior volume de aulas se preservamos uma cultura na qual a maioria da população não lê sequer um livro por mês e nunca escreveu nada próprio (redações exigidas não contam!)? O problema tem sua raiz em um traço de nossa cultura, para muito além do ambiente escolar, e um aluno aprenderia melhor a escrever e interpretar vivendo em uma sociedade na qual os adultos não são tão fracos nesse aspecto. A escola mesma deveria oferecer o mínimo para o sujeito desenvolver suas habilidades vivendo, trabalhando, criando, enfim, se desenvolver pela experiência em um processo de autodescoberta. Pense na quantidade de tempo que alguém desperdiça com estudos inúteis porque precisa de um diploma, um pedaço de papel feito para agradar um futuro chefe em um emprego no qual se usa o equivalente a menos de seis meses de instrução, ou então em todo o tempo que alguém gasta suportando o ego dos professores universitários, ou de colegas que são futuros imbecis... a comparação entre o tempo que alguém investe naquilo que de fato lhe importa com o tempo que um curso qualquer exige mostra um proporção assustadora. Isso se torna ainda pior quando consideramos que uma grande porção daquilo que se reforça como conhecimento nas universidades está sob a autoridade de pessoas que estagnam o meio e que tratam rodeios e aleatoriedades sobre o conceito x na obra y como se fossem verdades profundas sobre o mundo. O tempo gasto com uma formação completa rende muito pouco, e mesmo se rendesse integralmente, mesmo se cada hora de aula registrasse no aluno cada palavra do professor , mesmo assim boa parte dessas informações seriam completamente inúteis para além do teatro acadêmico, afinal a utilidade a curto prazo geralmente tem a desvantagem de ser também de curto alcance, enquanto as verdades profundas permanecem valorosas ao longo da história e afetam todos os âmbitos da vida humana. Pense sobre qualquer doutor com a pergunta "o que esse sujeito sabe fazer" em vez da pergunta "quantos livros esse sujeito já leu" e você verá que o período que de fato desenvolve habilidades é muito menor que os potencialmente trinta anos de estudos que uma formação completa envolve.

Ninguém conhece realmente o destino da humanidade, então é claro que a evolução do legado da humanidade depende de um "salto de fé" por parte de cada indivíduo (ou ao menos de sua  consciência de não estar disposto a saltar sobre o abismo). As encenações que se passam nas instituições de ensino são apenas exercícios, desenvolvem habilidades e técnicas, mas não a razão, a sabedoria, a arte, etc, Um indivíduo que cultiva suas próprias obras medíocres ou até mesmo terríveis faz mais para movimentar o legado da humanidade, para estender uma corda sobre o abismo, que aqueles que apenas repetem as palavras e fórmulas dos outros, porque assim como a evolução no sentido biológico depende de mutações aleatórias e de diversos genótipos recusados pelo ambiente para resultar em novas espécies, a evolução da cultura depende de inúmeros testes e fracassos para que obras imortais possam surgir -- as "pesquisas" seguras dos acadêmicos, que coletam informações particulares dentro de um conjunto no qual todos os resultados já são esperados, esses procedimentos técnicos reforçam o que já é conhecido, e nada mais, enquanto os erros dos tolos que não se adequam no mecanismo social desbravam aos poucos o desconhecido e revelam novas possibilidades. A arte de repetir e transmitir não deve ser julgada como inferior ou menos importante que as loucuras proféticas que levam alguém a cair no abismo do desconhecido -- buscar a utilidade imediata e mundana é mais racional que buscar a verdade. Mas a confusão hipócrita entre esses âmbitos sobrecarrega nossas instituições de expectativas impossíveis e de falsas promessas, uma soma que paralisa a evolução das obras e ideias humanas.

O mérito de um indivíduo que se envolve com a arte, com a filosofia ou com a ciência depende mais do quanto ele é consciente e claro em relação a essas distinções do que propriamente do conteúdo que produz. Não se pode dizer que alguém que passou a vida inteira pesquisando de fato, se arriscando no desconhecido, mas que não descobriu nada no fim das contas não foi um verdadeiro pesquisador, assim como não se pode afirmar que um sujeito com inúmeros livros e artigos publicados apenas sobre história da filosofia foi um verdadeiro filósofo. As normas institucionais que tentam forças esses juízos com critérios burocráticos de qualificação, que determinam o que é "um trabalho sério" fazem muito mais para piorar do que para melhorar o cenário de letargia e ineficiência do meio acadêmico. Os tipos com os quais trabalho aqui (filósofo verdadeiro, historiador da filosofia, etc.) são apenas tipos abstratos destinados a mostrar alguns traços da cultura. Na realidade, a maioria dos indivíduos está em um meio termo entre esses tipos, e o que geralmente faz a diferença no resultado final do indivíduo é o grau e tipo de pressão social que ele sofre. Os critérios burocráticos pelos quais trabalhos acadêmicos são qualificados ou desqualificados acabam sendo uma forte barreira para a experimentação (leia-se, para os erros) dos quais o avanço do conhecimento depende. As normas acadêmicas deveriam barrar e julgar moralmente apenas práticas claramente criminosas -- que, a propósito, deveriam envolver os experimentos irresponsáveis que são feitos com animais, e sob um critério mais rígido de responsabilidade. De resto, um avaliador acadêmico não tem autoridade nenhuma para julgar quais esforços são e não são sérios, apenas o tempo faz esse juízo. Mas isso cria uma dificuldade: Trabalhos acadêmicos são financiados, e sem critérios rígidos de exclusão, não haveria capital o suficiente para financiar todos os trabalhos. Eis um forte indicativo de que viver da arte e viver para arte são mentalidades que são como água e óleo, que podem habitar o mesmo recipiente mas que não se dissolvem uma na outra em hipótese alguma. A própria existência de um mecanismo de financiamento de certos trabalhos conduz esses esforços em uma direção interesseira, o que significa que um sujeito, apesar de poder ser pago para esse tipo de trabalho e ser ao mesmo tempo um verdadeiro artista, filósofo ou cientista, não pode mostrar sua essência enquanto faz esse tipo de trabalho. Se o fizesse, teria que criticar a própria estrutura que o sustenta. Esse mecanismo não pode se tornar desinteressado ou comprometido com a evolução da humanidade, posto que é uma expressão clara da racionalidade pragmática.

É muito comum hoje um discurso de crítica da racionalidade, que faz um elogio do corpo e dos afetos como as verdadeiras formas de libertação e evolução da humanidade. Esse engano básico se deve exatamente ao fato de que as instituições encarregadas do que se chama de razão foram e são horríveis, sobrecarregadas de falsidades, repletas de corrupção e dirigidas por almas perdidas. A liberdade é por essência racional, é uma ideia acima de tudo, e não é algo binário que se tem absolutamente ou simplesmente não, mas algo que pode aumentar ou diminuir em diversos graus. A ideia de liberdade se torna mais presente ou ausente dependendo de certos fatores. Um fator determinante para essa tendência é precisamente a expansão e refinamento do legado de obras e conhecimentos da humanidade. Se a cultura se encontra em um estado de expansão, no qual experimentos são sempre bem-vindos, a ideia de liberdade se torna mais convincente e passa a ser uma sensação, até um espírito de época. Em contrapartida, em períodos de estagnação chega a ser difícil argumentar que seres humanos são mais que um conjunto reações químicas. Esse processo de expansão ou estagnação é dado pela razão, não pelos afetos. As posturas irracionalistas e solipsistas são muito mais claramente associadas à tirania do que à liberdade. Um indivíduo que toma seus afetos com verdades da natureza, como impulsos que precisam ser seguidos simplesmente porque são impulsos naturais, é um tirano, sobre si mesmo e sobre os outros, porque não admite o elemento artificial e racional envolvido em suas ações, isto é, seu poder de escolher a partir de pensamentos, que podem ser trocados com outros. A "razão dominadora" não pode ser desfeita com devaneios e expressões livres do corpo -- especialmente não quando nossos corpos são educados por instituições culturais que são verdadeiras prisões. A "dominação" é uma forma corrupta e impessoalizada de poder, que pode ser colocada de lado apenas com uma forma nobre de poder, com uma razão mais vívida, que não pode ser construída no culto eterno ao passado e aos clássicos, mas sim com a criação dos futuros clássicos.  

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Notas:

*1: O formato exigido e os critérios de qualidade colocados sobre as publicações acadêmicas garantem que trabalhos acadêmicos sejam sempre destinados aos próprios especialistas em questão. São trabalhos úteis para especialistas, compilados de informações relevantes no meio. A distância que há entre o público em geral e esses trabalhos não se deve a uma ignorância do público ou a uma nobreza dos especialistas, mas se trata apenas de uma questão de pertinência.

*2: Cito aqui a distinção de Schopenhauer entre "viver para a arte" e "viver da arte". As perspectivas daqueles que buscam lucrar com suas obras como objetivo primário são muito diferentes daquelas de quem pretende refinar e expandir o legado da humanidade com um esforço que se vê como nobre e importante universalmente. O tempo de vida de cada um é limitado, e o tempo de estudo e criação é ainda mais limitado. Portanto, cada segundo gasto com artigos medíocres faz uma exclusão do processo de formação própria necessário para a criação de obras geniais.

*3: "Extemporâneo" se refere a algo que ao mesmo tempo pode antecipar o futuro e recorrer a algo perdido na história, a esforços que são muito mais indomáveis que "seguir contra a corrente". Em outras palavras, falo de ideias essenciais e profundas que não são apagadas pelo tempo, que foram construídas pelos clássicos e que certamente serão reconstruídas pelos futuros clássicos, sob outras formas.