domingo, 18 de setembro de 2016

Dignidade

Existem muitas teorias e doutrinas sobre o comportamento humano ideal, sobre o que significam bem e mal, sobre como é uma vida que merece ser vivida. Por uma afinidade profunda, por uma questão de gosto ou pela influência alheia pessoas se organizam em grupos que seguem esta ou aquela doutrina moral, que buscam um ou outro estilo de vida, que sustentam alguma causa política. As doutrinas, estilos e demandas políticas que orientam tais grupos são passíveis de definição, ideias podem fundamentar categorias como "feminista", "cristão", "punk", etc. A subjetividade, entretanto, não pode ser definida seriamente nem por observadores, nem pelo próprio indivíduo, posto que aquele que observa um indivíduo não acessa sua consciência por completo, e que mesmo o indivíduo pensando sobre si não acessa a parte inconsciente do seu ser. As transformações constantes (e muito frequentemente inesperadas) da subjetividade mostram a trivialidade de qualquer definição rigorosa do ser, tanto no indivíduo quanto na espécie. Os ideais, as promessas que trocamos são racionais, se sustentam em argumentos, definições e categorias, essa é a natureza da linguagem. Mas as pulsões que sustentam nossas dinâmicas sociais são "cristãs", "de esquerda", "nomes, adjetivos, razões" apenas a posteriori, os argumentos da doutrina, os traços do estilo e os motivos da luta surgem depois de um grupo estar definido e ter atingido algum resultado -- as razões não geram o movimento, apenas formam uma narrativa. E, mesmo sendo assim, o que não fazemos em nome de uma palavrinha? Como se os conceitos e as categorias fossem os próprios fenômenos e indivíduos, não é raro observar alguém disposto a perseguir em nome de uma libertação, a omitir e mentir por uma ideia de esclarecimento. Uma noção vulgar de verdade faz da sociedade um inferno de salvadores.

No palco da sociedade, razões são apresentadas como se fossem causas, são tratadas como se fossem aquilo que forma um grupo que por sua vez gera uma demanda, uma forma de narrar que omite os casos nos quais essa sequência é inversa e as razões são apenas adornos. Assim nos parece uma vez que o processo de adesão como um todo é assimilado em uma narrativa, que marca a memória mais intensamente que os impulsos e sentimentos originais, que não podem ser repetidos e reforçados tão facilmente quanto as palavras. Mas a seriedade diante dessas ilusões (provavelmente uma atitude necessária para a existência da sociedade) produz falsidades uma vez que cada grupo afirma seus axiomas, que cada indivíduo fixa em sua identidade tais e tais sequências de palavras sem que a natureza desse teatro seja lembrada com frequência suficiente. O movimento artístico de nossas ilusões, dessa capacidade humana de embaralhar, de refazer o mundo na imaginação e de agir de acordo com as ideias resultantes, essa coisa fascinante que chamamos de cultura na espécie e de identidade no indivíduo se torna violenta e depois pesarosa quando os indivíduos não conseguem usar imagens sabendo que são apenas imagens. Onde é pregado o ódio ao artificial, o conceito de verdade existe apenas como uma doença, como uma máscara para a megalomania de um eu. Se o narcisismo é justificado com "fatos", não pode existir aprendizado mútuo, apenas desculpas e chantagens -- o cristão que afirma que outras religiões são inferiores porque o seu livro favorito contém a única revelação verdadeira, o cientista que faz um teste de laboratório e produz um artigo sobrecarregado de jargão para provar que tem o direito de provar, o filósofo que afirma que seu sistema é absoluto ou que nenhum é respeitável com base em seus argumentos metódicos (ou em seus devaneios incriticáveis), aquele que "luta" por "uma sociedade justa" escolhendo um pedaço da história como base para um rancor incondicional... desculpas e mais desculpas! Um eu quer transformar sua escolha narrativa em uma característica intrínseca do mundo, digna de ser imposta sobre o outro... ou de justificar seu anátema.

"A natureza humana", "a história" ," a vida como realmente é", "os machos", "as mulheres", "os burgueses"... as verdades construídas sobre noções como essas acabam sempre na mesma forma e fixam no mundo o fundamento de uma convicção (isto é, de uma escolha), desempenhando uma função de autoridade. No fundo, os indivíduos mais violentamente fanáticos e dogmáticos são também os mais covardes diante de si mesmos -- o medo de afirmar "eu quero", "eu escolho", "assim é o meu capricho" cria a demanda por afirmações como "a verdade não nos deixa escolha" e "sei como eles são, por isso estou agindo assim". A hesitação diante dos próprios desejos e escolhas se torna um hábito em qualquer indivíduo que tenha sido criado sob autoridades que exigem e se justificam com razões. Assim, é preciso que alguém prove algo sobre o ser para conseguir narrar suas ações. Além desse papel de autoridade pela teoria, de afirmação indireta dos caprichos do ser, essas simplificações buscam esconder uma certa forma da ideia de liberdade. Se levada à sério, e não apenas citada como propaganda, a ideia de liberdade não é uma fonte de conforto, é o mais pesado desafio: Ser livre não é libertar-se das correntes da sociedade e buscar aquilo que o ser de fato deseja, ser livre é carregar a responsabilidade por toda a glória e toda a desgraça do indivíduo e da espécie humana, e também dos demais animais, e ainda da própria Terra. Você, que se diz livre, afirma com isso que escolheu tomar seu café da manhã assim como escolheu passar indiferente por um pedinte que precisava de uma moeda que não te faria falta. Qual falsidade, qual má-fé permite que alguém afirme que tem a liberdade em seu ser aqui, mas não ali, diante disto, mas não diante daquilo? Se as implicações da ideia de liberdade não forem camufladas com a noção de um deus que administra o universo, com uma ideia de opressão que culpa alguma categoria pela insuficiência da sociedade, com um determinismo que resolve tudo tratando o universo como um artífice sem criador, com uma ideia de história que atribui aos mortos e aos grandes feitos do passado a responsabilidade que cabe aos vivos... se formos honestos, a ideia de liberdade nos conduz à mais profunda sensação de responsabilidade, porque existem muitas coisas no universo que não podemos desfazer ou mudar, mas não existe nada sobre o qual um indivíduo não possa tomar alguma decisão.

Tratar a liberdade como a questão de provar ou desmentir a possibilidade do livre-arbítrio é uma forma de evitar uma questão mais profunda a transformando em um objeto (que é falso), que precisa ser encontrado em alguma pesquisa científica ou prática milagrosa, em vez de tratá-la antes de tudo como uma convicção: Você assume ou não a ideia de liberdade sobre suas ações? Você afirma ou não que sua força de agir é livre? Você "sente" que é livre?  Nesse ponto é irrelevante se suas ações poderiam ou não resolver algo que você identifica como um problema, e é tão pouco importante sabermos se, do ponto de vista da totalidade do universo, você poderia ou não agir de formas diferentes em uma dada situação. Usando o exemplo anterior, não importa se sua moeda mudaria algo na situação econômica do pedinte ou em geral, de sabermos o que aconteceria caso você tentasse fazer algo mais por aquela pessoa. A verdadeira questão é se você é capaz de assumir a possibilidade daquela pessoa morrer um dia desses de fome ou de frio, a possibilidade de uma vida humana ser ceifada pelo estado de natureza como algo que você escolheu, como algo que, naquilo que dependia de uma ação sua, você preferiu. As formas de disfarçar o peso da liberdade que mencionei anteriormente são justamente meios para que um indivíduo estabeleça sua identidade evitando tais considerações, são formas de formular a liberdade como um bem do indivíduo sem relação nenhuma com o outro, ou como um bem que o outro sequestrou por maldade, formulações que me parecem por completo falsas, posto que toda essa propaganda de liberdade é sustentada por uma massa de indivíduos que se consideram autônomos e únicos, ou guerreiros que conquistam mais liberdades a cada dia, enquanto a evidência e até mesmo o ridículo mostram constantemente o contrário. Acontece que não se formula uma ideia de liberdade capaz de resultar em ações, mudanças, afirmações que não ficam apenas em palavras, sem que se tome a responsabilidade pelo estado das coisas, tanto nas relações mais particulares quanto no funcionamento geral da sociedade. Os roteiros de pensamento mais populares atualmente prometem alguma forma de libertação oferecendo ao mesmo tempo alguma justificativa que isenta o adepto do peso da liberdade, isenção que também impossibilita que o grupo em geral atue de fato em seus objetos de interesse, porque essa expectativa de uma libertação como um bem sem custos é uma falsidade.  

A ideia de liberdade é o fundamento mais profundo de qualquer ética ou estética que não seja fixada pela via da coerção. Se um indivíduo acredita que não pode pensar sobre suas ações e definir ou alterar seus hábitos, não existe nesse caso nenhuma questão moral possível, resta apenas o mecanismo arbitrário da lei, social e natural. Se um indivíduo acredita que a forma de uma existência não pode ser modificada pela imaginação, não existe nenhum estilo, nenhuma arte, apenas estímulos e respostas. Ambas essas crenças são contrassensos, que geralmente aparecem quando um indivíduo tenta encontrar a liberdade como se fosse um objeto, como se pudesse ou precisasse ser algo além de uma ideia. Sendo as afirmações morais as mais frequentemente usadas em tentativas de persuasão, até mais frequentes que a exposição de vantagens e desvantagens, é comum que a ética seja tomada como algum tipo de ciência, como algo que tem objetos sobre os quais podemos provar proposições. É de fato possível tratar a ética como uma coleção de teorias e descobertas, tratar os filósofos como os cientistas teóricos, os legisladores como engenheiros e o público em geral como os indivíduos que utilizam a tecnologia sem a capacidade de modificá-la -- e talvez essa abordagem tenha sua importância. Mas no nível mais profundo, a ética como uma ciência nunca persuadiu ninguém. Como disse antes, as razões e argumentos que apresentamos fazem parte das encenações que movem a sociedade mas não são a origem da adesão de um indivíduo a um grupo, um indivíduo busca uma religião, uma visão de mundo, uma causa movido por uma pulsão que depende de vários outros fatores além das razões que apresenta, que servem principalmente como um instrumento de assimilar e comunicar um processo muito mais profundo que um debate ou a leitura de um livro. Quando dois grupos disputam com suas opiniões sobre alguma questão, muito acontece, mas não aprendizado mútuo. No caso mais comum, ocorre uma troca de longos argumentos e críticas ácidas, e os indivíduos de cada grupo seguem ainda mais firmes em suas posições. Mas parece-me claro que um indivíduo não descobre seus princípios apenas olhando para si mesmo, mas também para o outro, parece-me claro que nas questões morais, de estilo, na espiritualidade, enfim, em todos os âmbitos da ação e do pensamento existe a possibilidade de aprendizado mútuo, de inspiração e de influência. Simples palavras são capazes de despertar e até causar afetos dos mais variados tipos. A razão claramente influência todos os fenômenos da ética e da estética.

Pessoas não mudam ou agem porque algum teorema ou demonstração de alguma "fonte objetiva" provou qual é o melhor caminho, a crença nisso é apenas uma forma de racionalizar a influência como se fosse inspiração. O poder transformador da razão e do contato com o outro sempre se mostra no exemplo mais do que na promessa, nos afetos mais do que nos teoremas. A liberdade, em sua forma completa, esplendorosa e pesada, possibilita que um ser humano tome a si mesmo e sua história como uma obra de arte, como uma criação que expressa seus impulsos mais profundos dando forma a eles através de decisões racionais, como algo que pode ou não ter uma mensagem, que pode querer inspirar a alegria, a calma, o ódio, ou não querer inspirar absolutamente nada. Os diversos grupos que são nomeados na sociedade existem porque esse artista existe em todos nós, e a expectativa de que a moral de algum grupo prevaleça sobre a dos demais pode ser parte da encenação social em alguns momentos, mas não pode ser levada à sério para além dessas poucas exceções. A ética é antes de qualquer outra coisa uma arte, na qual um indivíduo formula ou aceita princípios para transformar a si mesmo e a história ao longo de sua vida em algo mais próximo da imagem que lhe agrada. Moldar a própria realidade em torno de uma imagem, de uma inspiração ou influência, esse é o movimento pelo qual a razão transforma a ação, pelo qual se forma um código de conduta ou um estilo de vida. Mesmo a moral mais abstrata e universalista me revela essa origem quando observo por um instante a satisfação com a qual um kantiano fala do seu dever, a felicidade com a qual sustenta seu solene imperativo categórico. Se uma ideia de moralidade ou de estilo não inspira um indivíduo a criar-se na direção dessas imagens, e se também não influência seu espírito com alguma chantagem ou coerção, nenhuma lei que dependa dessas imagens será seguida sinceramente pelo sujeito em questão, e nenhum argumento lhe impedirá de mandar todas as leis e maneiras ao diabo quando não estiver sendo vigiado -- e é ainda possível que, se algo contrário o inspira, o sujeito faça questão de ser flagrado e preso, até fuzilado, para combater pelo escândalo disso a imagem que rejeita. Quando, porém, ocorre inspiração ou influência, tais leis e maneiras se tornam hábitos profundos, que independem dos mecanismos brutos e barbáricos de manutenção que nossas civilizações ainda usam amplamente. Parte do medo de muitos diante da ideia da ética ser uma arte (em vez de uma ciência capaz de provar ou garantir) parte da possibilidade de que, por exemplo, tal arte tornaria possível que um assassino esteja seguindo alguma espécie de ética. Em primeiro lugar, isso já é possível e bem conhecido por aqueles que conhecem algum "marginal" em vez de sustentarem suas opiniões em mistificações do "criminoso". Se consideramos que as inclinações do assassino existem e sempre existirão tanto quanto as demais, assim como os comportamentos resultantes, temos que assumir que a ética pode resultar na forma do "criminoso" tanto quanto na forma do "cidadão de bem". A ilusão de salvação social, de que todos os seres humanos poderiam ser "bons" ao mesmo tempo é um dos fundamentos da lei, mas conduz apenas a imagens fracas e estéreis se aplicada à ética ela mesma. Assumir que um indivíduo que você considera degenerado é tão humano quanto você em sua degeneração, que se analisada friamente é apenas outro modo de ser, é parte do peso da liberdade.

As causas, por razões perfeitamente compreensíveis e importantes para suas cenas, costumam carregar a promessa de que são capazes de melhorar a humanidade. Mas de tempos em tempos, que seja lembrado que uma "sociedade igualitária" é diferente de uma "sociedade autoritária" no mesmo sentido que uma pintura barroca é diferente de uma pintura cubista: a afirmação de que uma delas é superior pode ser feita apenas como um reflexo de época, apenas como parte da cena atual. Qualquer um que observe as duas com distância se verá incapaz de julgar uma como objetivamente superior à outra -- embora provavelmente se sinta mais atraído por uma delas. Por exemplo, uma sociedade na qual gênero e sexo são estabelecidos de uma forma "sem opressão" é possível se isso for produzido artisticamente, como algo que queremos, como algo que poderia muito bem ser diferente, como foi e é. As tentativas de gerar tais transformações provando objetivamente que elas são um resultado necessário da história, ou o caminho necessário para que a humanidade "melhore" são tão estéreis e doentes quanto as racionalizações que produziram a "opressão" atual. "Você é relativista!", alguém poderia me dizer. Veja que isso é principalmente assumir que as diferentes perspectivas existentes para cada assunto moral têm todas o direito de existir, não apenas como opiniões, mas como estilos de vida, que se seres humanos são "machistas", "elitistas", "vagabundos", "esquerdistas"...se existem pessoas seguindo algum grupo, alguma ideia, estilo ou causa, é porque algo no mundo faz com que a existência de tais caminhos faça sentido na perspectiva de seus adeptos independentemente da sua luta, do seu gosto, da sua opinião. Diga-se de passagem que a combinação da tolerância diante da opinião com a violência reativa diante de quaisquer práticas decorrentes de uma forma de pensar é uma das marcas do autoritarismo contemporâneo. Por exemplo, diga que é contra uma lei atual e nada lhe acontecerá, mas se você protestar com a expectativa de que a lei mude, você sofrerá diversas punições. Isso é autoritário no estado "democrático" tanto quanto no indivíduo que afirma que aceita que cada um tenha sua opinião mas está sempre pronto para atacar alguém que mostra sua visão em ações ou expectativas reais. A ideia de tolerância nesse caso é deturpada de uma forma semelhante àquela que ocorre no caso da liberdade, descrito anteriormente. Se queremos que algum caminho mude, não o fazemos como seres moralmente superiores, mas como seres que partilham da mesma humanidade, da mesma liberdade bela e pesada, e da mesma responsabilidade. A liberdade permite que tomemos critérios de valor que negam a possibilidade de algum grupo, desejo ou ideal ser moral, mas não consigo deixar a impressão de que qualquer um que não tenha visão de túnel, que não esteja focado demais em sua cena, é capaz de perceber a arbitrariedade da exclusão e a beleza da diversidade.

Eu diria antes que o valor moral de uma ação ou de um modo de ser está no quanto é capaz de inspirar, de gerar e transmitir vitalidade, de fortalecer o indivíduo e aqueles ao redor abrindo possibilidades e refinando aquilo para o qual já existe inclinação, diria isto antes de dizer que alguém deve ser julgado de acordo com sua adequação a qualquer uma das doutrinas morais e políticas que tive a oportunidade de conhecer, mesmo muitas delas sendo absolutamente fascinantes -- e aplicaria um raciocínio semelhante para as questões de gosto e estilo. Esconder ou destruir possibilidades nos outros, pisar desesperadamente sobre ervas daninhas que poderiam ser cultivadas, sustentar a compulsão por influenciar e deixar-se ser influenciado até mesmo nas questões mais íntimas, esses são os hábitos de quem se fixa em um único sistema, em vez de conhecer o suficiente para ser um artista da vida. O relativista e o solipsista também não me parecem artistas, porque desconheço qualquer grande obra que não tenha tido inspirações e até mesmo um grande número de influências. Aquele que trivializa a razão, em vez de moderá-la para que as falsidades que acompanham as pretensões exageradas sejam repostas por valores efetivos, é como um pintor que decide que uma pintura não precisa de cores, nem de formas, não precisa ser feita em uma superfície nem ser feita com instrumentos. Ele pode dizer que fez uma pintura, mas vai apenas dizê-lo. Aquele que se recusa a admitir que seu caminho não é apenas seu negligencia o outro, que está ali quer em presença ou em memória, e nisso negligencia a si mesmo, negligencia grande medida de sua história, afunda em um mundo de falsidades, em sua liberdade sem peso e sem efetividade.

Forçar o hábito de se buscar a verdade como um objeto, como algo a ser recebido como uma dádiva ou recompensa talvez seja o maior pecado que um grupo pode cometer, a coisa que eu estaria mais próximo de declarar como "má influência". Se um indivíduo vai ou não buscar alguma ideia de originalidade em sua vida, se um sujeito vai ou não se inspirar para criar sua teoria, seu estilo, sua obra, isso diz respeito exclusivamente ao indivíduo em questão, e ninguém tem o dever de se esforçar para avançar a história e abrir novas possibilidades, ninguém tem o dever de pagar o preço por isso, principalmente porque ninguém sabe ao certo que valor há em alguém ser "extemporâneo" . Porém, quando a possibilidade dessa busca é massacrada pelos mais diversos grupos, quando os mais diversos indivíduos se tornam autoridades em seus meios e estabelecem que a verdade não se busca como uma decisão, mas sim estudando este e aqueles livros, olhando para estas e aquelas questões especificamente, tais indivíduos não apenas não colaboram para a ampliação da liberdade e para a continuidade da narrativa histórica, mas geram um estado de letargia em seus respectivos meios, e logo seus grupos como um todo se tornam armadilhas para potenciais "espíritos livres". Quantas pobres almas buscam a filosofia universitária por um desejo de pensar profundamente, de encontrar verdades, de obter sabedoria, apenas para serem trituradas pouco a pouco por alguma "formação"? Uma pessoa entra em um curso de filosofia acreditando que grandes mestres a ajudarão a pensar mais profundamente e encontra apenas um grupo de leitores compulsivos, de especialistas no parágrafo x da obra y, ou, quando muito, "especialistas" em algum tema que depende de alguns autores para existir. O infeliz aprende então que buscar a verdade é ler aqueles livros, daquele jeito que seus mestres aprovam, e em poucos anos nada mais importa realmente para o indivíduo além de adequar sua identidade às maneiras de seus mestres. Um processo semelhante ocorre nos mais diversos grupos de "emancipação", quando atraem quem procura aumentar sua liberdade, mas oferecem apenas a obsessão em torno de algumas questões e um estilo de vida a ser seguido. A verdade, se for algo que corresponde à alma de um indivíduo e que é capaz de fortalecê-la, de expandi-la em ações e criações, deve partir antes de tudo de decisões próprias, a capacidade de julgar se enfraquece com cada intermediário da qual ela passa a depender, com cada livro que precisa ser consultado, com cada aprovação alheia que é necessária para uma aprovação própria. É observável que até mesmo a capacidade de crer é enfraquecida naqueles que adotam muitos intermediários -- e não porque "quanto mais se estuda, mais se percebe a própria ignorância", como os orgulhosos eruditos por treinamento gostariam que fosse.  

A falsidade daqueles que afirmam que a excelência está em adequar-se bem ao estilo de um determinado grupo, dos doutores que afirmam que ser um intelectual sério é ler aquilo que eles leem, escrever como eles escrevem, trabalhar como eles trabalham, a falsidade dos que "lutam" quando afirmam que a emancipação é alcançada trabalhando com os conceitos que eles trabalham, com as práticas que eles realizam, o egoísmo ingênuo das figuras que deixam que se afirme que elas são o critério de estilo, de beleza, de sucesso... a insistência ativa nessas falsidades. nesses lapsos do juízo, nesses produtos do medo e da carência, uma sociedade na qual um sujeito aprende por todos os cantos que a cura está nesse veneno transforma o ser em objeto, esvazia o espírito no indivíduo e na espécie. Ninguém tem o dever de inspirar-se e de lutar para criar, para abrir, para avançar, nenhum estudante de uma arte ou ciência é menos que algum outro por não querer produzir nada de novo, por querer apenas absorver e ser influenciado por algo que o fascina, ninguém pode ser considerado inferior por não querer nada além de gostar daquilo que "é moda", por não querer o estranho peso de ser um indivíduo mal adequado, inadequável -- mas não sei de algo que eu não daria para ver um mundo no qual ninguém corrompe tão ativante os poucos indivíduos que por uma razão ou outra descobrem que querem fazê-lo mesmo contra todas as chances, mesmo sem propósito aparente. Você decide se carregará ou não a ideia de liberdade, se você se responsabiliza por uma questão ou outra, ou por nenhuma, se você é uma obra de arte ou um produto de seu tempo, se você cria ou reproduz. Essas decisões não dizem respeito a nenhuma autoridade, a nenhuma evidência, a nenhum processo, nenhuma teoria, são decisões que não dependem de objetos, que não decidem primariamente sobre objetos. As teorias, doutrinas, as regras, os costumes, a opinião, as razões, todos acessórios de uma pulsão mais profunda do ser, que se permite realizar menos com cada pequena negligência da responsabilidade que cabe a um ser livre, a responsabilidade de ter escolhido seu destino, qualquer que seja, mesmo que você mesmo ou você mesma não entenda qual foi essa escolha. Se é o medo que conduz à superstição, é certamente por superstição que um ser demoniza o outro e seu modo de vida, é certamente por medo que se alguém não acredita que sua escolha é absoluta, baseada em algo objetivamente verdadeiro, não é capaz de sustentá-la e criar-se a partir dela. Insisto: a coragem não é um dever. Mas as bandeiras, os estilos, os métodos, os grupos em geral podem ser chamados de fracos, até de doentes quando são marcados pela covardia que há em se afirmar a liberdade de maneira seletiva, monopolizando objetos de disputa, sinais de aprovação, ou lançando a culpa daquilo que se chama de mal em um outro, de maneria falsa e irresponsável.

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Notas:

1 - "A sociedade é um inferno de salvadores!", afirma Cioran na "Genealogia do Fanatismo". O proselitismo que sempre acompanha o fanatismo não pode ter outro resultado além de inúmeras "causas justas" massacrando ou atormentando umas às outras. As trocas infinitas de acusações são uma forma de entretenimento, alguém pode passar uma vida ofendendo "a esquerda" ou "a direita" e no fim absolutamente nada terá mudado em função disso, mas a vida terá passado...o eu poderá cair no abismo convicto da coerência de sua imagem, poderá desaparecer vitorioso sem nunca ter lutado por nada.

2 - Existe uma grande diferença entre algo ilusório e algo falso. Se, por exemplo, vejo o Sol como uma esfera que caberia em minhas mãos, se me emociono com o destino trágico do personagem de um filme, minha mente não está sendo guiada pelos fatos, mas sim pelas minhas impressões imediatas ou pela fantasia para a qual estou aberto. Ilusões, sejam acidentais ou propositais, não são falsas e muitas vezes têm enorme poder de influência. Alguém determinado a erradicar todas as ilusões teria antes que eliminar de todas as mentes a própria ideia do eu, a sensação de liberdade, os pilares da sociedade e da cultura. Se sustento, seja propositalmente ou por um engano de raciocínio, algo que não me aparece sequer como uma ilusão, ou algo que contradiz minhas verdades mais profundas, sustento algo falso. Por exemplo, se tentasse me convencer de que estou de fato segurando o Sol em minhas mãos, ou de que o personagem em questão existe fora do filme, estaria me fixando em ideias falsas que não influenciam a realidade de uma forma ou de outra. Minha loucura e obsessão potencialmente resultantes, entretanto, afetariam a realidade.

3 - Um indivíduo é influenciado quando suas ações ou suas ideias são constrangidas, formadas ou corrigidas pelo contato com uma obra, por uma punição, por uma experiência, por uma tendência das massas, enfim, por alguma força externa e humana. Aquele que é influenciado passa a reproduzir uma ideia, um estilo, etc. A inspiração acontece quando o contato com algum conhecimento, com alguma obra magnífica e original, com o exemplo de algum feito excepcional, enfim, o contato com algum resultado da ascensão do espírito humano estimula o indivíduo a criar também algo do mesmo nível -- ou até superior. Aquele que se inspira, faz uso de conhecimentos, técnicas e possibilidades descobertas por outros, mas com a finalidade de criar algo que seu próprio espírito pede, algo que irá também influenciar e inspirar outros. O influenciado repete, aquele que se inspira cria, a influência forma os seguidores, os que se inspiram não seguem nem podem realmente ser seguidos. Confundir esses dois processos geralmente resulta em influência.