sábado, 28 de julho de 2018

Espiritualidade e Religião

Teorias, fórmulas, conceitos, tradições e símbolos são apenas ferramentas que podem tornar um pouco mais aparente e maleável a pequena parte da verdade que pode de alguma forma ser apreendida. Observamos o efeito contrário, porém, quando tais ferramentas são utilizadas de forma compulsiva. Nenhuma fonte de sabedoria, conhecimento ou inspiração é aproveitável diante de interpretações compulsivas e da expectativa por orientações absolutas. Nada é capaz de esclarecer ou elevar o indivíduo que transfere suas responsabilidades intelectuais para uma autoridade qualquer -- seja religiosa, filosófica ou científica. Antes da religião enquanto instituição da sociedade existe a espiritualidade enquanto dimensão da condição humana. Um indivíduo pode, por exemplo, acreditar que não existe nada que possamos chamar de alma e ainda assim cuidar de sua espiritualidade, se compreender realmente em que isso consiste. Igualmente, os preceitos de qualquer religião podem ser seguidos ao mesmo tempo com absoluto rigor e nenhuma espiritualidade verdadeira. Existe uma característica filosófica da consciência humana que costuma ser ignorada ou distorcida por disputas políticas ou entre identidades (praticamente sinônimos atualmente). A existência da religião é quase sempre explicada ou como um resultado direto de alguma vontade divina, ou como um fruto do medo e da ignorância, uma espécie de pré-filosofia. Essas são explicações superficiais. Ouço e leio que o conceito "religião" deriva de "religare", que significa algo como religar, reconectar. Mas o que é ou deveria ser reconectado? A alma do indivíduo seria reconectada a Deus? "Alma" e " Deus " são conceitos específicos, expressões possíveis de questões universais para as quais existem inúmeras respostas. 

Antes de qualquer definição do que seria a "consciência", dizemos que somos seres conscientes porque possuímos um processo interno que é aparentemente ausente nos objetos que nos cercam. Nós experimentamos coisas como pensamentos, emoções, percepções, memórias e desejos enquanto o meio material parece indiferente a esses processos. Embora a subjetividade, a cultura e nossos interesses em geral nos pareçam em essência mais importantes e nobres que simples objetos e mecanismos, a natureza não parece partilhar dessa preferência, ou mesmo das distinções que nos organizam. Uma pessoa repleta de história, sonhos, sentimentos e conhecimentos pode morrer ou sofrer imensamente por transformações em seu corpo que são eventos comuns na natureza. A interrupção ou continuidade de um processo vital particular é um evento pequeno se considerado objetivamente. O corpo no qual de alguma maneira se manifesta o sujeito apenas é, se forma e eventualmente se dissolve em outra coisa tal como todos os objetos, elementos químicos, mecanismos -- tal como tudo que racionalmente delimitamos com palavras desse tipo. O sujeito, porém, não apenas é, mas desenvolve propósitos, valoriza isto ou aquilo, sente e acredita, cria relações com outros sujeitos que não parecem ser apenas de causa e efeito. De alguma forma existimos em tal condição, como seres dotados de uma dimensão que para nós mesmos é tudo, a "alma", a "liberdade", a "vida", apesar de tudo isso ocorrer em um meio que não nos comunica nenhuma predileção por nossos propósitos ou por qualquer tipo de sentido. Diante dessa aparente dissonância entre o subjetivo e o objetivo questões se tornam inevitáveis, como se alguma resposta tivesse que existir, como se nossa existência tivesse que ter uma finalidade.

Uma vida enquanto interioridade, subjetividade ou espírito depende de condições materiais, de uma vida enquanto mecanismo biológico, físico e químico. No espírito se manifesta uma série de anseios, apegos e propósitos que parecem ausentes nos elementos físicos dos quais sua continuidade depende no nível prático. Diante disso, o sujeito tende a buscar uma relação entre seus propósitos interiores e a natureza, uma relação de integração e continuidade entre a consciência e o meio material. O sentimento ou desejo de "religare" consiste principalmente nisto, no estabelecimento de uma conexão entre o fato da vida, a vontade interna do sujeito e o mundo que apenas é. Essa conexão pode se refletir em inúmeras construções psicológicas e culturais, variando da ideia de que as forças da natureza são deuses com características humanas até a ideia de que a natureza é racionalmente construída e pode ter todas as suas estruturas examinadas pela razão humana. De qualquer forma projetamos nossas faculdades internas no meio ao nosso redor como se tivessem algum significado central no universo. Pela simples observação, nada nos conduziria a tais crenças. Nossas ciências empíricas, doutrinas religiosas, conjecturas e preces parecem ser apenas fenômenos tanto quanto o vento, a chuva, a morte de uma árvore -- embora alguns desses fenômenos nos causem impressões mais fortes de pertencimento, importância, escolha, etc. Uma religião é uma instituição cultural que estabelece e ensina uma forma de unir o subjetivo e o objetivo, uma construção que revela no físico características espirituais, propósitos maiores que os óbvios, um encantamento do mundo através do qual o indivíduo adepto encontra um pertencimento e uma segurança sobre si mesmo. Esse interesse fundamental existe também sob formas diversas na ciência, na arte e na filosofia. Nenhum desses campos é superior aos demais.

Você pode acreditar que o universo é absolutamente material e que a vida se desenvolveu essencialmente por acaso a partir da matéria, que a vida é uma obra racional de uma inteligência suprema ou simplesmente não acreditar em nada. De qualquer forma, está posto que nossa razão não é o centro do universo, seja porque existe outra superior ou porque não existe realmente nenhuma. Nada obriga a natureza a ser entendida por nós. Todos os mistérios, teorias e verdades são fenômenos exclusivamente humanos. A racionalidade é apenas um aspecto da humanidade e uma ciência é apenas um modelo de racionalidade. A necessidade que muitos sentem de provar e demonstrar suas escolhas através da ciência não parte de nenhuma qualidade especial dos modelos científicos, mas sim de um velho desejo que em outros tempos a religião foi mais qualificada para atender. Se trata do desejo por uma sensação de controle sobre a realidade, uma sensação de que sabemos o que a realidade é, que sabemos como conhecer seus mínimos detalhes ou interagir com o mundo sabendo o que nos espera. No nível social, isso se reflete em um desejo por uma palavra de autoridade sobre as razões de outros indivíduos. Afirmações como "isto é um fato" surgem mais frequentemente como simplificações dogmáticas em debates que como juízos cuidadosamente construídos ao longo de rigorosas pesquisas. O cultivo de dimensões irracionais não é necessariamente ilusório e o fato de que uma determinada doutrina não cabe nos padrões atuais do que é uma racionalidade científica significa muito pouco, especialmente se levarmos em conta que interpretar o mundo é apenas um dos muitos objetivos humanos possíveis, apenas um aspecto da vida -- o buddhi, a inteligência que separa em partes e analisa, entre os tantos outros aspectos da inteligência, entre os tantos outros atributos do universo. A espiritualidade não é necessariamente irracional apenas porque não é formalizável como discurso científico, e qualquer valor ou pratica que seja irracional não deixa de ter sua dignidade apenas por esse fato. Não se pode raciocinar honestamente sem a consciência de que a razão humana é limitada, tanto no sentido de não ter alcance infinito quanto no sentido de não ser o único nem o maior dos propósitos.

A separação conceitual rígida entre as áreas de atuação como a filosofia e a ciência é de todo arbitrária. As divisões que facilitam a prática (por exemplo a distinção de que um laboratório não é uma igreja) são muito frequentemente tratadas como se fossem mais que apenas arranjos práticos que tornam a sociedade mais eficiente. Não existem fenômenos exclusivos da filosofia, da ciência, da arte, da religião ou de qualquer outro nome que se separa dos demais apenas porque nos comunicamos e organizamos dessa forma. De fato, o uso de termos como esses no sentido de áreas do conhecimento é recente, contemporâneo da cultura de especialização que educa indivíduos como se cada dimensão da existência humana precisasse de uma formação distinta para passar a existir ou ser acessada. Para além dos documentos e dos meios de convivência, todas as questões religiosas existem na ciência tanto quanto o recíproco é verdadeiro. Acontece que muitas vezes, como um meio se especializa em abordar certas questões mais claramente que outras, as próprias questões são consideradas como se fossem intrinsecamente pertencentes a determinadas áreas. A atenção a temas como a vida após a morte é relevante para a ciência tanto quanto para qualquer religião particular, entretanto tais questões costumam ser associadas aos conceitos específicos que determinadas religiões produziram como forma de abordá-los. O hábito com tais separações e apegos faz com que muitas vezes um indivíduo deixe de cultivar uma dimensão de seu ser apenas porque sua formação é em "outra área" ou porque não participa de uma comunidade específica. A solução ocidental de que o domínio da religião é um e o domínio da ciência é outro acaba aumentando as piores tendências em ambos, e os movimentos de diálogo geralmente acabam em posturas de prepotência de ambas as partes. A maioria das dificuldades na relação ocidental entre ciência e religião é causada por uma pobreza filosófica que existe tanto nas comunidades científicas quanto nas religiosas -- e também entre os filósofos acadêmicos. A cultura de especialização atua apenas na direção contrária do desenvolvimento filosófico tanto do indivíduo quanto da sociedade.

A capacidade que um indivíduo tem de manter uma postura filosófica consciente é um dos aspectos que concilia a racionalidade com o restante, que concilia as teorias com os desejos, a observação com a imaginação. O abandono da filosofia ou a adesão inconsciente a um sistema conceitualmente pobre pode resultar em um empobrecimento da própria vitalidade, porque a sabedoria é essencial para o investimento de energia em caminhos que desenvolvem a vida. Cada questão ignorada é uma porta fechada, um caminho possível que a consciência ignora. Talvez um exemplo torne isso mais claro. Afirmo que a temática da vida após a morte e sua importância não dependem da crença em nenhum conceito de espírito, de céu, reencarnação, etc. Um indivíduo chegará, por praticamente qualquer processo de observação ou reflexão, à conclusão de que a vida como a experimentamos sofre em algum momento uma transformação ou ruptura, que chamamos de morte. Tudo indica que quando o indivíduo morre, a vida ao seu redor continua. Se eu, com minha história, meus anseios, meus conceitos de bem e mal, sei que a vida continuará no mundo após minha morte, minhas preocupações vão além de minha longevidade. Sei que quando eu morrer as pessoas e projetos que amo continuarão no mundo, e dessa consciência surge uma série de questões éticas, pragmáticas e existenciais fundamentais. Meus descendentes terão acesso a recursos sociais, como tratamento médico disponível e adequado? Serei lembrado por alguém? E tal lembrança será o tipo de lembrança que me agradaria? Os projetos nos quais acredito hoje continuarão se desenvolvendo? O que eu posso fazer para que minha vontade continue manifesta mesmo após minha morte? Um indivíduo perde a atenção a algo que o afeta essencialmente se abandona temáticas como essas. A simples possibilidade de pensar nessas questões afeta a sensação que o sujeito tem de si mesmo. Mesmo que não exista nenhuma vida desencarnada após esta, não estamos livres das consequências de quem somos agora, porque a projeção de tais desdobramentos existe no presente e tem um forte efeito psicológico, talvez tanto mais se ignorada ou dissimulada com distrações. A reconciliação com o mundo depende de uma relação consciente com a "vida após a morte" ou, simplesmente, com a posteridade. Sem conciliação com o mundo futuro a existência presente rapidamente se esvazia, oscilando entre o tédio, a distração e o sofrimento.

A espiritualidade pode ser definida como a sensibilidade e o cuidado com a conexão entre a consciência particular e o universal. Essa sensibilidade é dada em grande parte através da apreciação de outras subjetividades, e no geral através da apreciação do mundo como algo mais que apenas um objeto ou uma coleção de eventos. Ter ou não um encanto pelo fato da existência independe de qualquer sistema teórico específico. É possível que um sujeito profundamente adepto de uma religião pratique os preceitos em questão como uma relação quase completamente formal e particular com um conceito de Deus que apenas serve para espelhar suas necessidades -- um traço muito comum na religiosidade ocidental -- bem como é possível que um cientista de crenças absolutamente materialistas estude a natureza em um espírito de comunhão com o universo. Além da sensibilidade, o cuidado com essa conciliação entre "Deus" e "alma" se dá através de rituais e narrativas. Embora o positivismo tenha sido historicamente associado ao exemplo máximo de atitude objetificadora diante do mundo, foi sob tal influência que foi construída a Igreja Positivista do Brasil, com a proposta de cerimônias em celebração a grandes figuras para a ciência e para a filosofia. Existe uma compreensão bastante sábia sobre a importância da dimensão simbólica nessa iniciativa. Um culto a Einstein pode lhe parecer uma proposta excêntrica, mas observe que rituais semelhantes acontecem o tempo todo na vida acadêmica. A autoridade que a citação de um autor renomado provoca no meio acadêmico me parece francamente um tipo de delírio -- mas entendemos que dar esse grande sentido ao nome de certas figuras cria uma sensação de pertencimento ou de maior envolvimento com o conhecimento para muitas pessoas, talvez a maioria. A importância existencial desse tipo de processo exemplifica bem como o aspecto espiritual da vida humana é por essência laico. Se trata antes de tudo de um encanto com a existência ou, ao menos, com um meio do qual se participa e que poderia igualmente ser considerado de forma cínica ou "objetiva". A esterilização dessa rica irracionalidade não nos aproximaria em nada da verdade, mas antes intensificaria os quadros de depressão que são tão comuns atualmente. A vida como um ciclo de sobrevivência e reprodução sem nenhum sentido maior é uma narrativa bastante triste entre as tantas valorações possíveis, todas igualmente ligeiramente racionais em um universo que é claramente maior que a razão humana.


Nenhum comentário:

Postar um comentário