segunda-feira, 2 de março de 2015

Ilusão e Realidade

Nós frequentemente usamos as noções de real e ilusório. Falamos em "vida real" em comparação a filmes, videogames, experimentos, sonhos, etc. Chamamos de real um determinado contínuo que não está sob nosso controle, e geralmente chamamos de ilusões as imagens mentais que isolam partes desse contínuo. Por exemplo, muitos artigos científicos atualmente falam sobre a ilusão do livre-arbítrio, sobre como a ideia de fazer escolhas é apenas uma ilusão que torna a vida interessante, mas que não encontra nenhum lugar na explicação científica do universo.

Estamos fazendo bom uso desses conceitos? Isto é algo bem sutil, mas costumamos usar a palavra "ilusão" como se implicasse também em falsidade. Ilusão e falsidade são ideias bem diferentes. Uma ilusão é uma imagem mental, subjetiva, que é mantida através da concentração e da manipulação de aspectos da realidade. Por exemplo, certamente podemos dizer que os eventos de um filme são uma ilusão. Nós olhamos para a cena de um filme ignorando a identidade dos atores e o que de fato ocorre no local da filmagem, nós nos deixamos levar pelas ilusões induzidas pela narrativa e pela cenografia. Mas podemos dizer que tais eventos são falsos?

Uma falsidade é um conjunto de palavras que nega aquilo que, por acordo, chamamos de verdade. Por exemplo, é falso dizer que o Sol é frio e tem um brilho azul. Também é falso dizer que não existe um personagem chamado James Bond, ou que esse personagem é um encanador italiano chamado James Mario Bond. Podemos dizer então que James Bond é uma ilusão, mas não podemos dizer que ele é uma falsidade, que ele não exerceu influência alguma sobre nós e não existe em nosso universo. É falso dizer de uma ilusão que ela não existe. Uma ilusão é a realidade repartida, distorcida e selecionada sob alguma intenção. Uma ilusão pode exercer poder sobre nós e sobre os demais animais. A moralidade é baseada em ilusões, nossos modelos teóricos são ilusões. A falsidade, porém, não tem nenhum poder sobre a realidade e se origina do erro e da corrupção de caráter.

Aqueles que se empenham em erradicar nossos artífices mentais não imaginam o mal que estão praticando. São como Platão querendo expulsar os artistas da república. A erradicação da ilusão erradicaria também o caráter moral e as relações humanas estáveis e profundas. Confúcio foi superior a Platão quando disse que enquanto a música floresce os criminosos são menos numerosos. Quando pensamos apenas em como as coisas são, nos tornamos incapazes de realizar transformações, além de sermos mentirosos. Pensar como as coisas deveriam ser é construir uma ilusão, colocar as próprias expectativas sobre algo que independe delas, mas esse exercício é extremamente importante. Por exemplo, se nenhuma mulher alguma vez tivesse deixado de pensar sobre o ser para imaginar o dever ser, nenhum movimento de libertação feminina teria ocorrido, porque as mulheres teriam todas admitido as regras machistas como se elas não fossem arbitrárias. A maior parte de nossa existência é guiada por imagens mentais e arbitrariedades, precisamente isto nos faz humanos. Um projeto de restringir a humanidade aos fatos nos reduziria a algo menos que macacos. Os fatos são apenas nossa matéria prima, a interpretação é mais importante que o texto.

Isso coloca a questão do livre-arbítrio sob uma forte luz, não? É evidente que se procuramos a liberdade fora de nossas próprias mentes, não a encontramos. Não há evidências de que, no processo causal infinito que parece existir na natureza, existam seres capazes de agir de maneira indeterminada. Entretanto, nós pensamos na liberdade e ela tem poder causal sobre nós e, portanto, sobre o meio aparentemente determinista que nos cerca. Pensar em uma ideia que por definição nos coloca a parte do processo causal determinista e por consequência nos faz atuar sobre esse processo pode parecer de início uma contradição, mas observe atentamente seu pensamento. Se você pensa em ter livre-arbítrio, você sente que é livre. Se você pensa em não ter livre arbítrio, você se sente coagido(a) pelas forças da natureza. Isso satisfaz exatamente a noção clássica de livre-arbítrio, sem nenhum conflito com a causalidade do meio.          

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