quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Sobre a criatividade

Qualquer um que examina a história ou mesmo a realidade presente com atenção percebe como a humanidade é movida por obras que se destacam entre as demais por serem inovadoras e, ao mesmo tempo, de qualidade excepcional. Realizar tais obras científicas, filosóficas ou artísticas costuma nos parecer uma tarefa impossível para a maioria das pessoas. É notável que a grande maioria, diante de uma escolha, faz a opção por produzir segundo uma tradição já estabelecida atingindo de maneira segura um padrão de qualidade determinado pelos próprios adeptos da tradição. O medo dos riscos envolvidos na criatividade e na inovação é aparente em tal escolha. Mas em que consiste o poder criativo de certos intelectuais e artistas e por que isso falta em seus admiradores?

Primeiramente, vamos explicar um termo importante. Vamos definir "criatividade". Eu nunca presenciei alguém desprezando a criatividade em si mesma como se fosse um vício. Parece ser nosso consenso que ela é uma virtude, algo a ser cultivado. Embora a criatividade seja elogiada, sua expressão é sempre esperada como algo espontâneo, até mesmo misterioso. Nenhuma prática didática é empregada por nós para favorecer seu surgimento, principalmente porque não a compreendemos corretamente. É evidente que a criatividade dos grandes gênios da humanidade não é um milagre e deve ter surgido através de alguma espécie de treino ou estudo. Disso se segue que se nós não nos submetemos a equivalente treinamento, não nos tornaremos criativos como eles.

O que é a criatividade? O que significa criar? Objetivamente, é impossível para um humano criar algo. A máxima de Lavoisier  "Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma" explica uma quantidade impressionante de fenômenos. Os fenômenos da natureza, segundo praticamente todas as nossas evidências, seguem essa regra. Os fenômenos da cultura, aparentemente, também. Quando falamos em criação, devemos então estar falando de algo subjetivo, isto é, algo que faz sentido de uma perspectiva particular e diretamente correspondente às nossas expectativas psicológicas. Nós nos acostumamos tanto com determinados hábitos de pensamento, que uma obra elaborada por pensamentos diferentes nos parece algo novo que antes estava ausente.

Isso é apenas uma aparência. Tudo aquilo que aparece nas obras revolucionárias está presente sob outras formas nas obras antecessoras ou na realidade vivida pelo criador. As possibilidades percebidas estavam presentes na natureza desde o início, apenas não tinham ganhado atenção. Criar é, então, transformar elementos da realidade dando a eles um aspecto diferente do atual que desperta percepções inesperadas e elucida outras possibilidades que não as usualmente concebidas. A imensidão da natureza e da diversidade humana faz da criação uma possibilidade infinita, a decadência natural de nossas instituições e doutrinas faz da criação uma eterna necessidade.

Ser criativo significa observar bem a realidade a ponto de perceber no arranjo atual das coisas e das ideias alguma combinação possível. A criatividade é a vontade de conhecer unida ao desejo de transformar. É possível transformar sem conhecer, mas isso caracteriza experimentos muito rudimentares e de pouca utilidade em comparação com esforços mais inteligentes. Conhecer sem transformar também é possível, como é o caso da maioria dos eruditos. Esta definição nos mostra que não há nenhuma contradição entre o trabalho artístico e o científico, embora concepções específicas de conhecimento possam excluir por engano a arte, ou o caso inverso. O conhecimento que não revela possibilidades de criação raramente é algo além de um aglomerado de dogmas, enquanto a arte que não revela a realidade em seu processo pode ser chamada de exibição vazia.

Com este rápido exame da noção de criatividade, não desvelamos o segredo das grandes obras?
As grandes obras rompem paradigmas, ao mesmo tempo os superando, porque os grandes mestres da humanidade compreendem perfeitamente as ideias contidas no paradigma vigente, usando de todo seu potencial para gerar uma proposta mais adequada ao futuro próximo do que aquelas arrastadas pelos eruditos conservadores em resistência ao passar do tempo. O desejo de transformar a realidade, de dar a ela um aspecto novo e mais inspirador, seja isso progresso ou a renovação de um eterno ciclo,motiva alguns indivíduos a conhecer as coisas e ideias com profundidade, o que faz de seus trabalhos ao mesmo tempo inovadores e excelentes segundo a tradição.

Para a maioria dos eruditos, que conhecem com desinteresse na prática, apenas é possível elaborar obras com uma linguagem muito complexa e com uma riqueza de estudos em obras consagradas. Estas obras são, por mais que contenham grande esforço e tratem de assuntos cruciais para a sociedade, irrelevantes para o progresso -- ou renovação -- e simplesmente desaparecem com o tempo, ou são recicladas durante alguns anos pelos herdeiros desses eruditos. Em todo caso essas obras não mudam a sociedade e geram apenas lucro e fama para o indivíduo responsável, porque seu desprezo pelo senso comum se torna recíproco.

Para a maioria dos inovadores, que atuam na prática sem interesses teóricos, apenas é possível elaborar obras excêntricas e polêmicas. Tais obras, por mais que sejam chamativas de início, com pouco tempo se mostram um movimento de aparências sem muito conteúdo que desafia a tradição sem conservar dela o que há de valoroso. Isso se mostra claro quando fazemos o exame dos movimentos políticos atuais em comparação com aqueles que marcaram a história porque de fato geraram resultados. O sucesso de um movimento depende de seu teor científico e filosófico. Pouco duram os resultados das palavras belas em si mesmas e das insatisfações irrefletidas.

Temos um jogo entre as tradições conservadoras, que unem muitos dogmas aos conhecimentos que de fato preservam para que o status quo seja mantido, e os movimentos revolucionários, que recusam os dogmas para transformar a realidade de acordo com as novas demandas sem preservar os verdadeiros conhecimentos. Isso se reflete na ciência, na arte, na filosofia, na religião e na política. Assim, os idólatras das grandes obras enfatizam a erudição, a tradição e a técnica ou a audácia, a inovação e o aspecto crítico presentes em tais trabalhos. A maioria da população se enquadra em alguma dessas categorias, e por isso as grandes obras são raras, porque nós repartimos entre nós os pedaços do que um gênio seria como um todo. Eu diria que uns têm o coração, outros a cabeça.

Como isso poderia mudar em nossa educação? Penso que o desejo de mudança é natural à juventude. Eu diria que nosso problema é que o conhecimento é há vários séculos obtido em um modelo baseado na hierarquia entre autoridades intelectuais, um modelo no qual o constrangimento costuma acompanhar o estudo e os argumentos ad hominem são assustadoramente comuns. Assim, com sua permanência em tal meio, um indivíduo obtém os conhecimentos que poderia usar para dar poder às suas criações, mas é contaminado simultaneamente por um certo cinismo diante da realidade social que está além desse jogo político, que passa a ocupar sua mentalidade completamente. Os eruditos são muitas vezes mais artistas vazios do que conhecedores cínicos, dependendo do quanto se encantam pelo jogo de poder associado ao conhecimento de tradições intelectuais e artísticas cultuadas. Separar a autoridade do conhecimento parece ser o primeiro passo. Quantas possibilidades se abririam diante de uma educação clássica sem narcisismo?

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