terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

É possível ensinar?

Todos compreendemos que a educação é algo fundamental para a sociedade, e é muito frequente
no Brasil a noção de que nossa deficiência social está associada ao nosso ensino precário.
São extremamente comuns discursos a favor de um investimento público maior na educação,
mas eu me pergunto se nosso problema é realmente financeiro. É claro que a infraestrutura é
importante para qualquer instituição, mas o objetivo de cada instituição é o que determina seu
sucesso. Se nossa noção de ensino for incorreta, capital nenhum corrigirá nossa deficiência.

A ideia mais comum de ensino é a de que um sujeito que tem conhecimento de algo transmite
esse conhecimento a outro que não tem. Existem vários problemas nessa noção aparentemente
simples e eficiente. É impossível causar conhecimentos em outras pessoas segundo nossa vontade.
O conhecimento sempre parte da disposição do próprio indivíduo para conhecer. Nenhum grau
de coerção física é capaz de fazer com que alguém mude suas convicções e teorias. Nenhuma
exposição a ideias pode fazer com que um sujeito aceite uma tese, ou mesmo a racionalidade
em geral, se o indivíduo em questão não estiver disposto a criticar sua próprias opiniões.

É a própria vontade do indivíduo que o leva a conhecer. Qual é então o papel do transmissor de
conhecimento? Em primeiro lugar, compreender que não é um transmissor, que o pensamento
alheio não pode ser manipulado de acordo com seu próprio e que ideias apenas são compartilhadas
se um ambiente adequado para isso for estabelecido. Além disso, o sujeito a ser educado talvez
já tenha conhecimentos relevantes no caso, e isso precisa ser percebido e respeitado.
Um educador, de alunos ou de seus próprios filhos, estabelece o ambiente adequado para o
aprendizado e para sua valorização, em vez de se preocupar com ideias particulares.

Existem alguns métodos gerais para estabelecer o ambiente para o aprendizado.
O primeiro e mais comum é a coerção. Nós podemos fazer com que um indivíduo se disponha
a aprender o cercando por todos os lados com ameaças e recompensas estratégicas. Por exemplo,
se um aluno não reproduz os raciocínios que seu professor espera transmitir, ele será reprovado,
provavelmente punido por seus familiares, e será coagido a repetir o exame até alcançar o
resultado esperado, sendo atrasado e punido todas as vezes que falhar. Em oposição, se um
aluno reproduz o comportamento e o discurso que seu professor espera, ele será aprovado, livrado
do exame constante e elogiado por diversas pessoas como um indivíduo bem sucedido e moralizado.
Assim, a recompensa é oferecida em contraste com a punição, reforçando o peso de ambas e
coagindo o indivíduo ao esforço intelectual exigido por suas autoridades.
  
Esse é o método mais frequentemente empregado em nossa sociedade, a partir da educação
familiar até o ensino superior. Qualquer um pode observar isso a partir da própria experiência.
A vantagem desse método é que ele funciona com uma alta taxa de sucesso. Fazer com que
a falta de conhecimento custe ao indivíduo sua dignidade e sua liberdade esgota ao longo
do tempo qualquer resistência. As desvantagens desse método nos revelam o segredo da
precariedade de nossa educação e de nossa deficiência intelectual em geral.

Quando um indivíduo aprende pela via da coerção, ele não apreende um dado conhecimento, apenas os hábitos correspondentes.  Por exemplo, é possível forçar um aluno, pelo método descrito, a estudar matemática. Porém, tal aluno não compreende o pensamento axiomático e analítico da matemática, embora seja capaz de reproduzir as operações básicas exigidas pelo seu professor. Além disso, como é natural que um indivíduo procure se livrar da coerção assim que possível, o aluno educado nesse modelo tende a evitar os estudos que foi forçado a desempenhar assim que obtém o direito de tomar decisões. Dessa forma, o modelo de ensino que nós mais frequentemente utilizamos educa operadores, indivíduos capazes de memorizar orientações e aplicá-las no contexto relevante.

O que esses indivíduos não são capazes de fazer é dar continuidade ao legado do conhecimento. Nossa massa de operadores não é capaz de improvisar, fazendo acréscimos aos sistemas teóricos aprendidos de acordo com as demandas correntes, e é ainda menos capaz de gerar novas teorias filosóficas e científicas. Indivíduos constrangidos aprendem a prezar pela segurança em todos os casos, e a criatividade é impossível sem a admissão de riscos e tolerância ao erro. O aluno que tem sua dignidade esmagada se convence de que é mais conveniente garantir uma vitória pequena sem correr riscos do que apostar em
um projeto ambicioso e aceitar todas as dificuldades decorrentes.

Eu proponho outro modelo geral para propiciar o aprendizado. Um educador pode, em vez de se focar em coagir a mente alheia, mudar a própria de acordo com o que espera transmitir. Se pretendemos educar sujeitos criativos e capazes de pensar profundamente, devemos nós mesmos adotar essas características e transmitir o bom exemplo. É impossível que um operador de matemática estimule alguém a ser matemático. Nosso maior problema na educação é que formamos geração após geração de intelectuais sem nenhuma coragem ou dignidade restante, estabelecendo hierarquias perniciosas em todas nossas instituições do conhecimento.

Novamente, é impossível coagir alguém a aprender genuinamente. Pela coerção apenas forçamos alguns resultados operacionais para acalmar nossa própria consciência, em detrimento do potencial para o sucesso de nossos alunos. A ideia de dar uma educação voltada para o pensamento crítico para as massas é mais que uma "mentira branca", é algo que falsifica o significado da educação. Um educador apenas atinge seu fim sendo ele mesmo um sujeito sábio e demonstrando sua forma de raciocinar aos seus alunos, esperando que alguns deles aprendam a admirar o conhecimento a partir do anseio pela virtude, e deixando que os desinteressados sejam desinteressados, em vez de forçá-los a admitir nossa própria hipocrisia.

É claro que agora estamos em uma situação na qual o ensino de massas está estabelecido de maneira economicamente precária e geradora de dependência, o que faz o abandono imediato desse modelo de ensino algo inviável.Porém, cabe a todos os genuinamente interessados na educação de um público esclarecido e filosófico esclarecer que nosso maior problema no ensino é um problema relacionado aos nossos hábitos intelectuais preguiçosos que insistimos em transmitir. Uma vez feita a crítica e estabelecidos alguns bons exemplos, a adequação do ideal à realidade poderá começar a ser pensada, e nós talvez encontremos formas para desfazer os erros de nossos antepassados.        

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