domingo, 21 de fevereiro de 2016

Justiça sem igualdade

Quando tratamos de política e de ética, uma das questões fundamentais que devem ser respondidas é " existe alguma meta universal para todos os seres humanos, de tal forma que se um indivíduo for corrigido para se adequar a esse objetivo, ele não estará sendo injustiçado? ". Observe qualquer um dos grandes sistemas políticos e éticos presentes nos debates sobre essas questões e você perceberá que essa pergunta é respondida de uma ou outra maneira. Alguns exemplos: Kant respondeu que a razão é universal, e que dela decorre o dever. Muitos dos cientistas contemporâneos que participam desses debates costumam enfatizar que nós somos uma espécie animal, e que é possível estudar cientificamente a distinção entre comportamentos que beneficiam a espécie e aqueles que a prejudicam. Aqueles que questionam o objetivo de criar um sistema ético e que adotam em vez disso uma espécie de ética artística, como Nietzsche, quase sempre argumentam no sentido de mostrar que a tentativa de universalizar algum valor além da própria afirmação do indivíduo, interpretada por ele mesmo, é inútil e prejudicial para a humanidade como um todo.
A meritocracia e as demais noções associadas como " esforço" e " oportunidade " são também uma resposta para aquela pergunta.

Na maioria dos casos, ao menos nas sociedades liberais, cada indivíduo acredita ou gostaria de acreditar que suas ações são escolhas, e que sua insistência em determinadas ações é esforço. Através dessas duas crenças o indivíduo pode acreditar que de alguma maneira merece aquilo que possui, e que de alguma forma escolheu não ter aquilo que não possui. Mesmo com a popularidade da noção de que " o livre arbítrio é uma ilusão " em determinados espaços, é fácil observar que no nível psicológico mais básico, naquilo que o indivíduo faz e pensa em sua rotina, as crenças mencionadas persistem. O apelo ético e político da meritocracia parte do fato de que muitos indivíduos querem sentir que são livres que e conquistam metas, e da noção de que uma sociedade que recompensa o esforço e de alguma maneira pune sua ausência satisfaz essa demanda psicológica básica. Nessa lógica, não é injusto que aquele que não se esforça seja deixado em condições piores que aquele que se esforça. A exceção dessa regra ocorre quando é de alguma maneira comprovado que faltam oportunidades para alguns indivíduos. Essa é a forma racional da meritocracia.

Você já se perguntou por quê as discussões políticas e éticas tendem a ser tão violentas, confusas e no geral desagradáveis ? Alguns dizem que é porque " o povo é ignorante " , como se existisse algum grupo especial de humanos entre os quais a situação é diferente. Outros dizem que existe nesses debates um choque de posições contrárias e inconciliáveis que gera esse mal-estar. Mas nada que seja humano é no fundo incompreensível, e opostos tendem a conviver bem uma vez que conseguem se entender mutualmente. Em nossa civilização, que se pretende como orientada pela razão e por debates, é como se tudo precisasse ser de origem racional e dialética para ser válido. Mas isso é fundamentalmente e psicologicamente impossível. Assim como temos desejos individuais que são racionalizados apenasa posteriori, temos desejos sociais que funcionam da mesma forma. Por exemplo, eu sou bastante simpático ao feminismo, na maioria de suas formas. É verdade que eu penso que seja imoral que mais da metade da população humana seja desfavorecida, e é verdade que eu penso que os indivíduos não devem ser julgados como homens ou mulheres mas apenas como indivíduos, etc. Mas essas são racionalizações posteriores à minha experiência de vida em geral positiva com as mulheres. Entenda que eu poderia dizer ( e frequentemente digo ) que é imoral que as mulheres sejam consideradas a princípio menos capazes que os homens, mas minha expectativa pela igualdade civil entre os gêneros parte verdadeiramente do fato de que eu convivi com mulheres que foram extremamente capazes e agradáveis e que, por conta dessas experiências, o machismo não é uma inclinação minha. Eu digo em nossos debates hipócritas " o machismo é imoral ! ", mas em linguagem mais honesta eu teria que dizer " eu não gosto de machismo nem de ser machista . "

Nós construímos socialmente os conceitos de subjetividade e objetividade, sendo a subjetividade o domínio intocável e inatingível que cada indivíduo tem em sua consciência e a objetividade o domínio da realidade e das coisas sérias. A partir dessa divisão do mundo, não é aceitável em nossa hipocrisia que um indivíduo diga " eu quero que isso mude, a situação atual me desagrada ". O indivíduo precisa provar que o que ele sustenta é uma tese sobre a realidade que foi encontrada com bons raciocínios e que pode ser defendida com argumentos ainda melhores. A verdade objetiva, que deve ser obtida na conclusão desses nobres debates intelectuais, só pode ser uma, e assim fica decidido qual demanda social merece ser atendida. Você já deve ter percebido o quanto isso é insustentável. Pessoas diferentes têm desejos diferentes e experiências diferentes. Essas diferentes vidas poderiam se entender através da empatia e de negociações, mas o debate racional como conhecemos é claramente uma competição, na qual a empatia não é possível porque a subjetividade precisa ser mascarada com argumentos improvisados e a negociação não é possível porque apenas um lado pode ser vitorioso -- ou correto, na nossa linguagem social. Um indivíduo precisa provar que acredita no que acredita e não em outras crenças possíveis porque as outras crenças são de alguma maneira incorretas ou maldosas, e por extensão isso significa que ele precisa provar que quem não pensa como ele e não deseja o que ele quer é incorreto ou maldoso. Essa segunda parte fica nas entrelinhas -- por isso as brigas e desafetos nos debates muitas vezes parecem repentinos e sem explicação. Cada palavra dita nesse tipo de debate obscurece a razão das partes envolvidas, especialmente pela abundância de estratagemas como a tentativa de provar que a natureza humana é desta ou daquela forma, como um método tolo e inseguro de se coagir um interlocutor a uma determinada opinião.

Devo deixar claro que compreendo bem que razões também afetam nossos desejos e inclinações. Ainda naquele exemplo que dei sobre minha simpatia ao feminismo, essa inclinação talvez desaparecesse ou não tivesse efeito prático se eu não tivesse também encontrado razões para isso. Mas é notável que nossa civilização comete o erro de tentar excluir o fundo subjetivo das discussões, sob efeito do dogma de que a subjetividade não é fonte de conhecimento e não faz parte dos assuntos sérios. Os valores e desejos não são excluídos com sucesso, apenas mascarados com sofismas. Pessoas com desejos diferentes apenas podem entrar em harmonia através da empatia uma pela outra. Quando uma tenta destruir o desejo da outra, isso cria apenas ódio e violência. Nossos debates com desejos mascarados e que ocorrem como uma disputa polarizada tem exatamente esse resultado. As ideias de nossos debates são carregadas de violência, e as pessoas se habituam a valorar automaticamente determinadas palavras e posições. Por exemplo, se você falar contra ou a favor sobre o sistema de cotas, você terá das pessoas ao seu redor reações emocionais e você será avaliado (a) no formatoad hominem, independentemente do que você diga. Certos debates se tornam gatilhos para esse turbilhão de desejos mal resolvidos e de demandas ocultas, e nossa insistência nesse formato de debate e nessas crenças é o que faz das discussões políticas algo simplesmente insuportável.

Esse fundo subjetivo também existe na noção de meritocracia. Indivíduos muito frequentemente mostram a demanda de que o universo seja justo com eles de alguma forma. Por exemplo, homens que não costumam atrair as mulheres por quem eles se atraem frequentemente acabam pensando coisas como " eu não acredito que ela saiu com aquele imbecil mas não me deu uma chance " ou " é muito injusto que aquele tipo de cara tenha uma chance e eu não ". " Ser um cara legal " deveria fazer com que um indivíduo " tenha uma chance ". Mas essa ou qualquer outra noção de justiça não faz o menor sentido no jogo das paixões, apenas muito posteriormente em uma relação já estabelecida pelo passo anterior, e acredito que quase todo indivíduo entenda isso de alguma maneira. Mesmo assim, indivíduos, quase sempre homens, muitas vezes são surpreendidos reclamando de como o amor é injusto. Poderia ser justo? Quando surge uma relação entre dois indivíduos, isso ocorre em função de suas respectivas vontades. Dizer que um indivíduo conquista o outro implica em afirmar que um é o sujeito da relação enquanto o outro é o objeto. Não há e não faz sentido procurar justiça ou merecimento no amor, como se fosse algo planejável. Mas pessoas insistem nisso, porque organizar memórias no formato " eu fiz X então mereço Y " cria conforto diante da ideia de que aquilo que desejamos ter está fora de nosso controle ( por depender de outros indivíduos ).

Nossa cultura nos ensina que " mulher não se ganha, se conquista ". Uma parte da mensagem é importante: Sua alma gêmea não vai aparecer de surpresa na sua cama um dia desses. Mas a segunda parte da mensagem é enganosa: ninguém " ganha " uma mulher, ou um homem. Relações minimamente saudáveis e positivas sempre começam de ambas as partes, e muitas vezes para a surpresa de ambas, sem nenhum tipo de plano ou tática de conquista. Mas a civilização educa homens narcisistas e mulheres sem conteúdo; o homem devem dar o sentido para a vida de uma mulher e a mulher deve aceitar um homem digno de dar o valor a sua vida. Nesse sistema de crenças, o amor vira um teste -- não se trata de se ter uma boa relação com alguém mas de se satisfazer a necessidade de aprovação social e emocional do ego. Muitos homens não apenas falam de seus encontros sexuais como falam insuportavelmente deles, mendigando a aprovação de suas masculinidades, e muito raramente falam dos atributos não sexuais de suas parceiras. Muitas mulheres, não por coincidência as parceiras dos mencionados anteriormente , fazem todo infeliz ser humano disponível ouvir absolutamente tudo sobre o quanto seus parceiros são os os caras mais fodas do planeta e muito, muito raramente falam com orgulho de algum encontro sexual. Com isso cada um satisfaz as compulsões do superego ; a mulher prova à sociedade que sua beleza e temperamento agradável atraiu um homem virtuoso e o homem prova que sua virtude atraiu uma bela mulher. Quando essa história acaba bem, ela termina em um divórcio antes do terceiro filho. Do contrário ela dura uns quarenta anos e mais uma geração aprende que o amor é uma união entre dois seres superficiais e inseguros, entre um que precisa mandar e outro que precisa obedecer.

" Mas o que isso tem a ver com meritocracia ? " Nada, foi apenas uma digressão. Você continua lendo, então não reclame. Talvez você continue lendo não por tédio mas por ter percebido que eu me aproximo de alguma questão importante...

Podemos construir socialmente a noção de que determinada faixa de preço é justa para determinado produto, ou de que determinada punição é justa como resposta a uma determinada ação. Mas esperar que uma sociedade na qual indivíduos tão diferentes possuem algum grau de liberdade civil resulte em um arranjo particular que possa ser chamado objetivamente de justo é uma expectativa semelhante a exigir que a natureza seja justa no amor. Por exemplo, nossos oficiais de justiça se orgulham de trancafiar assassinos, estupradores, golpistas, traficantes, etc, cada um sendo enjaulado por um tempo proporcional à gravidade do crime e à falta de fatores atenuantes. Nossa sociedade parece satisfeita com isso, levantando objeções apenas à falta de políticos corruptos sendo punidos. Mas pense por um momento: Se esses crimes são qualitativamente diferentes, por quê a punição varia apenas em quantidade ? Ou seja, se um ladrão não causa o mesmo tipo de aversão que um assassino, porque a única diferença no tratamento entre os dois está na quantidade de tempo em cárcere ? Não deveriam ser aplicados também tipos de punição diferentes nesses e em outros casos que são tratados da mesma forma ?

Observe com atenção os discursos nos quais o termo justiça é utilizado, e você perceberá o forte apelo estético do termo -- ele se apoia em afetos tanto quanto em razões. Colecionar criminosos em penitenciárias não faz sentido, mas não deixa de satisfazer o desejo de justiça de muitos, porque não se trata de uma consequência lógica mas de um desejo e de sua construção psicológica e cultural. Essa construção varia entre grupos de indivíduos e uma única sociedade na qual esses grupos distintos convivem nunca poderia satisfazer a demanda por justiça em todos eles ao mesmo tempo, o que levanta sérias dúvidas sobre a demanda em si mesma. Mesmo no plano mais particular, existem vantagens e desvantagens que um indivíduo carrega a partir do momento que nasce onde nasce, assim que nasce com sua herança genética e histórica e não com outras. Sendo a sociedade uma coleção desses indivíduos que não apenas tem vantagens e desvantagens hereditárias mas estão fadados a competir uns com os outros e a ver suas vontades colidindo com outras opostas, a expectativa de que a sociedade seja justa é de fato semelhante àquela de que o universo seja justo com o sujeito.

Supostamente possuímos uma série de " direitos humanos " com a função de colocar os diversos indivíduos na mesma situação básica, uma situação na qual o indivíduo tem oportunidades e um grau suficiente de segurança. Mas o que são efetivamente esses direitos ? Veja aqui a lista de todos os seus direitos. " Todo indivíduo tem direito à vida. " O que isso significa ? O que isso poderia significar? Todas as vezes nas quais um indivíduo evoca seus " direitos " para obter algo, seus interlocutores mostram concepções distintas daqueles direitos, e as autoridades se mostram por completo inflexíveis a esse discurso. O fato de que temos " direitos " não torna a justiça social mais plausível. A filosofia política indiana nos ensina : " A força faz o direito ". " Força " nesse contexto não significa estritamente força militar ou força bruta individual, mas o conjunto geral das qualidades que são capazes de influenciar e coagir, como a inteligência, a riqueza material, a beleza, etc. Se você observar seus professores, por exemplo, você notará que alguns têm naturalmente poder e autoridade enquanto outros não, apesar de todos terem o mesmo título e os mesmos direitos. Uns precisam desesperadamente ameaçar e fazer chantagens emocionais para conseguir alguma coisa dos seus supostos subordinados ( subordinados por direito apenas ), enquanto outros conseguem tudo o que esperam naturalmente daqueles que, por vontade própria, são seus discípulos. A força faz o direito, porque o verdadeiro direito chama-se poder -- convencer a população a pedir direitos em vez de ensiná-la a obter poder é mais um mecanismo de perpetuação do status quo.

Cada indivíduo tem o potencial para ter poder de uma forma que é, se não absolutamente singular, muito rara e memorável. Se todos somos ou deveríamos ser iguais diante da lei, essa é ainda mais uma razão pela qual a lei é algo a ser superado, mais um resto das sociedades arcaicas que insistimos em arrastar para além da vida útil. Muitos indivíduos hoje clamam por uma sociedade mais justa, sem miséria, sem discriminação, etc. Mas na enorme maioria dos casos os indivíduos hoje não cultivam a própria interioridade o bastante, não cultivam a própria criatividade, não sabem ter poder, apenas reclamar e exigir " direitos ". Uma verdadeira superação das relações sociais como são hoje irá exigir um novo conceito de justiça, algo mais vigoroso e recente que as velharias marxistas e iluministas que os intelectuais fracassadosensinam e a juventude aprende a reproduzir como um rebanho -- como a sociedade poderá mudar através da reciclagem infinita das mesmas acusações e reclamações ? Para que a filosofia de um indivíduo tenha poder sobre a realidade, ela precisa ser vivida, mais do que falada e pensada. Kantianos ou hegelianos, por exemplo, que simplesmente leem as obras e escrevem textos de comentário a esses autores nunca poderiam realizar nada na sociedade, porque eles não podem viver a filosofia de alguém que morreu a mais de dois séculos e que deixou apenas os livros e a poeira dos ossos para traz. Os comentadores e seguidores de intelectuais deveriam, se não são inúteis e preguiçosos como eu desconfio, tomar suas obras prediletas como fonte de inspiração para suas próprias obras, que poderiam ser inspiradoras em nosso tempo. Sempre acho profundamente irônico que kantianos tomem Kant como um tutor em vez de pensarem com a própria razão, que eles citem de maneira estagnada e resignada em seus artigos-para-ninguém palavras como " Sapere aude! ". Dizem que os " seguidores " dos filósofos ( e outros tipos de autores ) têm a função de mostrar a relevância de tais obras, mas note que cada palavra que eles escrevem transformam esses maravilhosos e poderosos discursos em apenas palavras e citações. A torre de marfim banaliza o conhecimento, ela está ainda cem metros abaixo do " senso comum " que tanto repreende.

Vou lhe oferecer meu conceito de justiça, como inspiração. Se um indivíduo é admiravelmente inteligente, é injusto tratá-lo como imbecil, subestimando suas habilidades. Se um indivíduo não tem uma virtude, mas é capaz de tê-la, é injusto aprisioná-lo na situação atual e impedir que ele tente realizar seu potencial. Se um indivíduo é sinceramente afetuoso, é injusto tratá-lo com frieza, ferindo seus sentimentos nobres. Se uma autoridade é de direito apenas, sem poder, é tolo e injusto tratá-la como se tivesse ou merecesse poder, alimentando seu narcisismo. Se alguém diz ou faz uma tolice, essa tolice deve ser corrigida e repreendida em justa medida, mas é injusto definir um ser humano com base na observação de uma ação, seja valorosa ou desprezível. Todo ser humano pode se esclarecer e evoluir ( ou decair ) , então suas ações devem ser respondidas com isso em mente. É injusto tratar intelectuais como deuses da sabedoria acima de nós porque isso ao mesmo tempo lhes confere um status não merecido ( Kant racista, Heidegger nazista, etc. ) e nos rebaixa, nos tira da posição de realizar o nosso potencial como eles realizaram o deles. Também é injusto tratar um ser humano, qualquer um que seja, como se nunca fosse possível que ele dissesse algo genial ou fizesse algo valoroso, isso é colocar sobre alguém a nossa visão limitada sobre o seu ser como se fosse uma verdadeira limitação do seu ser e da sua vida, que apenas ele mesmo pode julgar. A balança da justiça pesa as virtudes e vícios de cada um. O entulho conceitual que é arrastado em grande parte das discussões sobre justiça social é desprovido de auto-conhecimento e não diz respeito a nada que possa medir ou elevar a dignidade humana. Justiça não é igualdade, justiça é digna retribuição. Não se encontra o que é justo pela via da demagogia, mas pela via da razão e da empatia.

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Notas:

*1 : Argumentos que se baseiam na natureza humana muitas vezes são falaciosos ou confusos e escondem o verdadeiro ponto da discussão. Por exemplo, nos debates sobre a aprovação do casamento homossexual e do projeto conhecido como " cura gay ", ambos os lados caíram na discussão sobre a homossexualidade ser uma escolha ou algo inato do indivíduo. Aqueles que queriam tratar a homossexualidade como um distúrbio afirmavam que se trata de uma escolha ou de uma corrupção reversível, porque a natureza humana prescreve relações entre sexos opostos, segundo a bíblia. Aqueles que queriam afirmar que a homossexualidade é algo a ser respeitado afirmavam que não se trata de uma escolha, com o respaldo de cientistas que tentavam explicar como na evolução a homossexualidade foi passada de geração e geração, chegando a discussões patéticas ( mesmo de um ponto de vista estritamente científico ) como a do " gene gay ". Ambos os lados queriam provar que a natureza humana é desta ou daquela forma para coagir aqueles que discordavam de suas idiossincrasias. Suponha que fosse provado em absoluto que ser gay é uma escolha. Isso provaria realmente que a homossexualidade é ruim para a sociedade ? E suponha que fosse provado em absoluto que não é uma escolha. Isso provaria que não é imoral ? Se eu faço um piercing ou uma tatuagem ninguém irá afirmar que isso é imoral porque eu me desviei da forma natural do meu corpo. Se um sujeito mata outro por ter alguma doença cerebral que lhe tira o controle sobre seus impulsos, isso não muda o fato de que o sujeito cometeu assassinato, de que ele é perigoso. A discussão sobre a escolha ou determinação da homossexualidade é no fundo irrelevante, porque o que importa nas políticas públicas e mudanças na legislação é avaliar as consequências sociais da prática, não a natureza humana, um objeto que talvez seja em si falso ou irrazoável.

*2 : Creio que o principal papel da racionalidade nessas questões é organizar e examinar as experiências e vivências para que possamos aprender algo a partir delas. Se eu me prendesse simplesmente à inclinação de ver o feminismo de maneira favorável, bastaria uma série de experiências desagradáveis com mulheres ( que de fato tive ) para reverter o quadro. Mas observando mulheres competentes cheguei a fórmulas, noções mais gerais e abstratas sobre em quais situações e com qual base um indivíduo pode ser julgado. A hipocrisia dos debates objetivos está em afirmar que a racionalidade na política é a priori. Por outro lado, também discordo daqueles que tratam as " vivências de opressão " como posição de autoridade, afirmando que ter ou não essas vivências distingue quem entende ou não a questão em discussão. Esse tipo de discurso parece implicar que não existe racionalidade nem empatia possível entre os indivíduos, e não por coincidência essas qualidades faltam nas discussões em que esse discurso surge ou tem que surgir.

*3 : Aqueles que chegam na posição de autoridade intelectual sem obter poder ( no caso, sabedoria ) durante o processo, fracassaram. Isso não é um julgamento, é uma constatação. Se um intelectual não consegue entrar na história que ele estuda, não consegue realizar sua própria obra, ele não tem valor em si na sua profissão, ele é apenas uma ferramenta. Professores com rica sabedoria lotam salas sem cobrar presença, professores com mero acúmulo de conteúdo precisam cobrar presença e fazer chantagens práticas e emocionais . Sábios atraem pessoas interessadas em dialogar com eles sobre questões filosóficas, artísticas e científicas como um fim em si, ferramentas humanas atraem alunos interessados em ganhar um salário para estudar ou em cumprir os requisitos da carreira acadêmica. Os pretensos intelectuais que não conseguem inspirar novas e poderosas ideias e que como agravante transformam palavras de liberdade em citações a serem reproduzidas em uma estrutura autoritária chegaram precisamente nisso -- em um fracasso. " Não julgue, não seja maldoso " me dizem. Será melhor deixar, então, que um indivíduo continue apodrecendo na realidade enquanto contempla sua bela imagem na superfície de um lago de sonhos?
Fingir que ninguém erra ou fracassa não é tolerância nem humildade.

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