Nossas relações sociais e possibilidades criativas não são influenciadas apenas por fatores econômicos e biológicos mas também, e talvez de maneira decisiva, por aspectos culturais que são muito mais sutis. A construção da linguagem, as reformas pelas quais cada linguagem passa e a relação entre umas linguagens e outras escondem do observador desatento um vasto domínio
de relações de poder. Diante de todas as formas grosseiras de controle que observamos na atualidade,
como o sistema carcerário a nível nacional e as campanhas militares a nível internacional, diante
de todo o espetáculo das relações internacionais contemporâneas e das mídias locais dominadas
pelo sensacionalismo, muitas vezes não olhamos para coisas sutis como as palavras
que aprendemos a usar e, principalmente, por quê passamos a usá-las.
Uma das línguas oficiais na Africa do Sul é o Afrikaans, também encontrado em uma variação chamada Africâner. O nome sugere que se trata de uma língua nativa, originada pela cultura local,
assim como o português veio de Portugal ou o espanhol da Espanha, etc. Na verdade, o Afrikaans é
uma criação européia elaborada no período colonial, principalmente por holandeses, mas com forte influência das línguas alemã e inglesa. Estudamos nos livros que o Afrikaans é um resultado do encontro cultural entre os colonizadores europeus e a população local, mas pense por um momento
sobre como esse tipo de "encontro" geralmente ocorria nas colônias de exploração*1. De maneira semelhante ao que se sucedeu no Brasil e na Austrália, a Africa do Sul não era um território único e tanto menos uma nação, mas sim uma multiplicidade de povos separados por fronteiras estabelecidas culturalmente, inclusive por motivos religiosos, em alguns casos. Por exemplo, para os povos que organizavam suas famílias em culturas totemistas, nas quais o parentesco não era dado entre consanguíneos mas sim entre indivíduos categorizados sob o mesmo clã (ex. família do lobo, família da tartaruga,etc.), a organização territorial vigente era fundamental para que se evitasse a desorganização dos costumes e hierarquias locais. Qualquer tentativa externa de reconfigurar a organização territorial desses povos certamente seria um precedente para terríveis conflitos no futuro.
Mas os colonizadores não queriam que essa diversidade permanecesse, pois era difícil de organizar e, portanto, difícil de explorar. Os costumes, as crenças e as fronteiras dessa multiplicidade de povos eram um problema para os exploradores europeus. A solução encontrada foi a unificação dos locais sob uma única linguagem. A unificação da vida espiritual e da moralidade através do cristianismo da igreja católica e a redistribuição dos territórios de acordo com os conhecimentos e interesses europeus foram mudanças efetivadas e consolidadas pela unificação de todos os dialetos tribais sob uma única linguagem.
A transformação de centenas de povos em um único nome, a redução de uma enorme diversidade cultural a um conjunto estrito de palavras, criado por um povo dominador com uma semântica voltada especificamente para seus fins. Não houve uma troca cultural entre as tribos africanas, indígenas e aborígenes e os colonizadores europeus *2, apenas a destruição da cultura
política e religiosa desses nativos, realizada pela reforma forçada da linguagem tanto quanto pelo
exercício da força bruta. Com essa abordagem dupla se controlava tanto o corpo quanto o pensamento dos povos nativos. O controle da linguagem sempre fez parte das grandes campanhas
militares porque os conceitos, as categorias e até mesmo as lembranças são crucialmente dependentes das palavras e das regras de sentido estabelecidas entre elas. A subjugação de uns povos perante outros não é um fenômeno exclusivo do período colonial, evidentemente. Na atualidade, podemos flagrar muitas intrusões de umas línguas em outras, e minha opinião é que deveríamos fazê-lo com grande alarme. Notemos por um momento os anglicismos, modificações que algumas línguas sofrem em adaptação à cultura de países de língua inglesa, quase sempre em reação ao que se observa na cultura estadunidense. Essas estranhas mudanças na língua local em função de uma cultura estrangeira ocorrem em diversos tipos. Vamos discutir três.
O primeiro é, ao menos aparentemente, mais inocente. Se trata da absorção direta de expressões da
língua inglesa, como mouse, shopping, etc. Embora a presença constante dessas palavras em conversas e na mídia fortaleçam nossa tendência a imitar o modo de vida americano (como posto pela propaganda), essas mudanças não distorcem a sintaxe ou a semântica das expressões originais de
nossa língua e não soam estranhas em frases como "Preciso ir comprar outro mouse". Mesmo
assim, é interessante notar que os portugueses não adotam anglicismos, dizendo "Preciso ir comprar
outro rato" e, na Espanha, além de muitas de suas ex-colonias, não apenas se recusam anglicismos como nomes estrangeiros são traduzidos para as versões locais*3, para preservar a língua. O segundo tipo é mais grotesco e expressa melhor o objeto que quero expor. Principalmente na academia e no meio artístico, a admiração cega ao estrangeiro chega a um ponto no qual falsos cognatos são popularizados e transformados em jargão. Por exemplo, o termo "revisão de literatura". Nas academias norte-americanas, em uma resposta hipócrita às críticas ao sistema universitário hierárquico que sufocava todo o ímpeto inquisitivo e criativo dos alunos de graduação, o termo "review" passou a ser empregado como nome para os resumos de textos cobrados pelos professores. Esse termo não significa "revisão", nem nada parecido, mas sim crítica ou avaliação de obras, produtos e estabelecimentos. Entretanto, professores de ciências naturais no Brasil, como muitas vezes estudam apenas na lingua franca da ciência contemporânea, importaram além do pensamento norte-americano algumas de suas práticas didáticas, através do termo "literature review" ou , traduzido horrivelmente, "revisão de literatura". O termo "resenha" já cumpria exatamente a mesma função por aqui, inclusive em toda sua hipocrisia*4. Também importamos com isso a tendência de fazer referência à literatura como se fosse uma entidade, com frases como "você deve estudar a literatura". Ora, a literatura? Com esse erro de pensamento e de linguagem professores fingem que os autores a serem lidos não são um recorte arbitrário entre outros mil possíveis, mas, simplesmente, "a literatura". O terceiro tipo é menos acessível, porque requer uma observação atenta, conhecimento profundo da língua inglesa e algum incômodo com essas questões. Se trata de quando podemos observar que, embora um indivíduo esteja falando em português (por exemplo), a sintaxe de suas falas está em inglês. Quando um indivíduo chega a esse ponto, ele muitas vezes já pensa em fazer as malas e migrar para a terra da oportunidade.
Esse tipo de intrusão linguística certamente não ocorre apenas com o inglês, embora esse caso seja um tanto peculiar graças ao fenômeno sem precedentes que é a propaganda internacional da mídia estadunidense. Quem cursou filosofia ou esteve em algum tipo de encontro tipicamente frequentado por acadêmicos em filosofia quase certamente teve a oportunidade de observar os supostos filósofos falando palavras em francês ou alemão com seriedade e orgulho -- geralmente termos pronunciados de maneira incorreta e, muitas vezes, termos que são absolutamente
cotidianos nas línguas mencionadas, mas que são tratados pelos acadêmicos locais como se fossem as palavras mágicas do mais poderoso grimório. Esse é um fenômeno muito estranho se levarmos em consideração que toda língua tem seus prós e contras. Por exemplo, o inglês não tem o inconveniente de atribuir inutilmente gênero a praticamente todos os substantivos como o português. Em inglês não se diz a operária ou o professor, mas simplesmente the worker e the teacher. Por outro lado, em português nós temos os verbos ser e estar, enquanto o inglês tem apenas o verbo to be. No português eu posso dizer sem ambiguidades que sou feliz ou que estou feliz, enquanto no inglês e em muitas outras línguas sempre existe ambiguidade entre esses dois tipos de proposição, algo que atrapalha significativamente a comunicação em debates antropológicos e filosóficos. A ideia de que certas línguas são absolutamente superiores, popular por exemplo na Alemanha e entre seus idólatras*5, pode apenas partir de um tradicionalismo cego. Se o alemão permite a união de várias palavras sem perda de sentido, o português permite distinções ausentes em outras línguas, o japonês tem um alfabeto específico para conceitos*6 e outro específico para expressões estrangeiras, etc. A diversidade que há entre as línguas deveria servir como um incentivo a mais para que os intelectuais de cada nação criem obras em suas línguas nativas, para suas línguas nativas.
Não deve ser por coincidência que os acadêmicos que mostram essa tendência mostram também o mais profundo desprezo pela originalidade e pela autenticidade -- quando está próxima. O hábito doente de sempre ceder o próprio juízo a autoridades intelectuais estrangeiras não poderia existir
sem ser acompanhado pelo sintoma que é o desprezo pelas palavras nativas em comparação com aquelas das figuras idolatradas. A razão dada pelos acadêmicos locais para essa obsessão é o suposto fato de que ler uma obra na linguagem em que foi escrita é melhor que ler uma tradução. Certamente não é uma justificativa absurda, mas não é completamente correta. Primeiramente tenhamos em mente que ninguém que lê um livro visualiza a mente do autor tal como estava no momento da escrita. Para que alguém possa entender absolutamente o sentido de uma obra, é necessário que o indivíduo seja ninguém além do próprio autor, com todas suas experiências, suas memórias, seus impulsos. Cientistas, filósofos e artistas buscam a obra de outros intelectuais com o objetivo implícito de obter inspiração para a própria obra, nunca com o objetivo de citar as obras alheias até o fim da vida, como os acadêmicos fazem. Inspiração, não influência. Para aqueles com esse objetivo mais elevado, a diferença de utilidade entre a obra original e a traduzida é muito pequena, embora eu deva reconhecer que o prazer proporcionado pelas nuances das grandes obras costuma ser reduzido na tradução, ou seja, que existe diferença de valor. Mas isso não justifica a obsessão dos acadêmicos por disputas como "Qual é a melhor tradução de Ubermensch?". Carreiras inteiras desperdiçadas com questões que simplesmente não tem resposta, porque não são questões para ninguém que tenha alguma criatividade no espírito. Antes fossem dedicadas a uma produção própria na língua local, mesmo que não fosse algo ao nível dos clássicos, porque isso seria um investimento nas gerações futuras de intelectuais nacionais, em uma mudança decisiva em nosso cenário cultural atualmente entediante.
Mas certamente não é apenas por aqui que se compreende mal o peso político da linguagem. Existem em todos os países dos quais a história não me é desconhecida diversos termos nascidos de segregações extremamente violentas entre determinados grupos em cada cultura, e em muitos desses países os esforços para eliminar esses termos não é compreendido pela maioria da população. Nos Estados Unidos existem termos como nigger e faggot, o primeiro usado para acusar os negros de serem parte de uma única raça ruim de procedência impura, e o segundo usado para acusar os homossexuais, especificamente homens, de serem degenerados irrelevantes. São duas demandas que podemos observar com clareza na história da homofobia e do racismo nos EUA. Note que não existe um termo pejorativo estadunidense específico para as lésbicas, principalmente porque nessa história elas foram tomadas como objetos sexuais. Em vários outros lugares do mundo nos quais a homofobia foi administrada mais de perto por instituições religiosas existem termos pejorativos específicos para esse grupo também. No Japão, existe o termo gajin que se refere a estrangeiros de maneira extremamente pejorativa. Esse termo é um resultado do encontro entre o sonho de um mundo unificado e japonês e as interações desastrosas com os europeus, algo que pode ser observado desde o encontro entre as explorações ocidentais e o Nippon até o final da segunda guerra mundial. Mesmo hoje, muitos japoneses são racistas com estrangeiros, apesar de não terem relação nenhuma com a ideologia patriota extrema que era universal entre os vários feudos que disputaram a era Sengoku , que resultou na forma atual do império japonês. Isso talvez se deva ao impacto cultural das imposições feitas ao Japão quando foi derrotado na segunda guerra mundial, além da cicatriz deixada
pelos bombardeios atômicos. Cada cultura tem alguns termos destinados especificamente à violência psicológica e social, e os alvos desses termos mudam de acordo com cada história da violência. Não tenho uma opinião sobre quais são os melhores mecanismos institucionais para corrigir o lado
corrupto de cada linguagem*7, inclusive porque não acredito muito em instituições. Mas deve ser evidente para qualquer um que considere o peso da história nas palavras que termos como nigger não são apenas gírias, e que seu uso é de fato uma decisão política, no mínimo uma opção pela cínica indiferença diante do estigma que outros carregam.
As palavras não são apenas ferramentas para a construção de proposições, e não são apenas efeitos secundários dos fenômenos principais das culturas. Palavras definem possibilidades de pensamento, palavras mudam pensamentos, provocam sensações, inspiram e reprimem. Palavras são ações em todos os sentidos. Por esse motivo penso que o estudo da linguagem merece um esforço além do analítico, um esforço capaz de revelar esses jogos linguísticos de poder e de revelar problemas e possibilidades que atualmente ignoramos. Se consideramos que ceder as palavras é o mesmo que ceder as ações, que ceder o direito de discurso é o mesmo que ceder o poder, a escolha das palavras ganha novamente a gravidade e o impacto que tem-se perdido na profusão de comunicações irrelevantes que a mídia virtual promove. Quantas verdadeiras possibilidades se abririam se o termo "história da filosofia" desaparecesse de nossas mentes ? Se todas as palavras forçadas para dentro de nossas jornadas intelectuais por idolatras cegos e autoritários se tornassem para sempre mudas? O discurso pode ser uma arte de criação, uma arma de destruição em massa, um chamado à ordem ou um retorno ao caos. De qualquer forma, as palavras merecem mais respeito do que têm recebido por aqui. A adoração cega das línguas europeias
é um resíduo do período colonial que preserva antigas relações de poder que empobrecem nossa cultura.
*1- Em geral, livros de história se referem às colonias australianas como de povoamento, em semelhança às do Canada. Mas muitos historiadores questionam esse termo, por razões que deveriam ser obvias. Penso que os aborígines perseguidos, mortos ou doutrinados, concordariam que o termo
precisa ser revisto, no caso da Austrália ao menos.
*2- Não quero dizer com essa afirmação que a cultura européia não incorporou absolutamente nenhum elemento das culturas tribais em questão. Quero dizer que as partes envolvidas não aprenderam coisas uma com a outra em uma relação benéfica de troca, mas sim em um processo violento de subjugação. Pense sobre o quanto a linguagem nas regiões colonizadas mudou em comparação com as línguas oficiais dos povos dominantes como o inglês e o francês.
*3- Me chamariam de Enrique, assim como chamam Friedrich Nietzsche de Frederico.
*4- A resposta é hipócrita porque demandar que os alunos façam uma "avaliação crítica" de textos pré-determinados pelo cânone acadêmico não é nenhum sinal de liberdade intelectual e criativa, porque os critérios de "rigor" que os acadêmicos geralmente estabelecem resultam na impossibilidade de se criticar alguma posição sem estudá-la exaustivamente, além dos comentadores famosos associados a ela. A manutenção do corporativismo acadêmico permanece em primazia nas universidades sobre os problemas do mundo atual e sobre as novas gerações com seus anseios.
A propósito, a tradução correta do termo é "crítica literária", um termo bem estranho de se empregar no meio científico contemporâneo no qual o empirismo é uma desculpa para se escrever mal. Acrescento ainda que o sentido do termo foi distorcido pelos acadêmicos norte-americanos como
mais um sinal da decadência de seu sistema educacional , e copiado cegamente por brasileiros como se fosse parte do melhor modelo educacional do mundo. Para quem quiser ver por conta própria: http://writingcenter.unc.edu/handouts/literature-reviews/. Comecem a copiar o sistema educacional cubano ou o finlandês e eu certamente terei menos problemas para reclamar sobre.
*5- Heidegger disse uma vez que só se faz filosofa em alemão. Eu imagino que um sujeito esclarecido como ele deve ter feito esse comentário como uma brincadeira, fazendo alusão à sintaxe muito peculiar da língua alemã e à capacidade de juntar palavras que ela proporciona. Aqui vai, então, um lembrete para aqueles que também tem uma fixação por essas peculiaridades do alemão. Em português ninguém precisa perder tempo com junções mirabolantes de palavras para expressar a ideia de ser em diferentes tipos. Um brasileiro deslumbrado com coisas como palavrasunidasemconceitos é como um alemão fascinado com a diferença nos artigos entre a pedra e o pedregulho, com a multiplicidade de sonoridades diferentes frases que tem exatamente o mesmo sentido podem ter em português. Só se faz poesia em português.
*6- Kanji (ideogramas). Em japonês, a palavra amor é gramaticalmente diferente do conceito amor.
*7- A criminalização de termos pejorativos é um tópico muito difícil porque a história de certos termos é inequivocamente a história da violência, mas indivíduos não nascem com toda a história em suas mentes e são capazes de usar essas palavras sem violência. Deixo de lado a questão aqui porque ela requer um ensaio próprio.
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