O que se encontra no anarquismo em geral e em todas as suas derivações é uma crítica da
autoridade, que podemos observar sob duas perspectivas, entre outras. A primeira é a da rejeição da
validade moral da autoridade, de seu papel como algo natural e positivo nas relações humanas. A
segunda é da desconstrução da efetividade da autoridade, da noção de que, uma que o indivíduo está
sob efeito da autoridade alheia, há pouco que ele possa fazer até que algum evento externo a essa
relação lhe traga uma oportunidade.
Em linhas gerais, os argumentos morais a favor da autoridade são: A autoridade faz parte da
natureza humana e, portanto, seu uso é correto e necessário, principalmente por razões de
segurança; A autoridade proporciona diversos benefícios e possibilidades que seriam impossíveis
de outra forma, como a proteção dos direitos dos indivíduos e a garantia de que iniciativas coletivas
sejam conduzidas da forma mais eficiente, por exemplo o trabalho industrial; A autoridade do tipo
estatal é uma continuação da autoridade familiar, e tem um papel de semelhante importância na
construção e preservação de valores que não existiriam de outra forma; A autoridade do tipo
intelectual garante a preservação do legado cultural, em todos os sentidos, e sua continuidade.
Certamente existem outros aspectos a serem considerados, mas me deterei nesses. Estamos tratando
de argumentos que naturalizam a autoridade, argumentos que atribuem à autoridade as
características desejáveis das sociedades modernas, argumentos que atribuem à autoridade a boa
constituição psíquica dos indivíduos e argumentos que atribuem à autoridade a continuidade dos
grandes projetos intelectuais da humanidade.
Podemos definir a autoridade como uma relação de poder sublimada, de duração mais extensa que
os afetos relacionados às relações simples de poder . Por exemplo, se eu impor, através de uma
ameaça, um comando a alguém, esse indivíduo precisará seguir minha ordem apenas enquanto eu
ainda estiver apto a exercer violência sobre ele. Com um pouco de meditação, podemos ver como
essa relação é efêmera, como ela pode ser facilmente revertida, abandonada e esquecida. Entretanto,
se o indivíduo que eu comando atribui a mim uma figura de poder, se ele imagina que eu sempre
teria o poder de exercer a violência e que eu sempre tomaria conhecimento de sua desobediência, de
uma forma ou de outra, eu não tenho apenas força, mas também autoridade, porque posso comandá-lo
sem fazer recurso constante ao poder concreto da força bruta – meu subordinado interiorizou meu
poder, e pode inclusive exercê-lo sobre outros indivíduos como meu representante, meu delegado.
Esse foi apenas um exemplo, talvez o mais clássico, mas a autoridade não se dá apenas pela força
bruta. Se é uma crença comum que apenas um determinado indivíduo pode providenciar um
determinado objeto de desejo, esse indivíduo ganha autoridade sobre os demais. Por exemplo, na
nossa cultura de especialistas, cada especialista é uma autoridade intelectual em seu próprio campo
de atuação. Se trata de uma relação de autoridade baseada em privações em vez de ataques.
Não é por acaso que muitos pensadores como Weber definiram a autoridade estatal como,
simplesmente, o monopólio da violência e da força. Com essa definição, difícil de questionar com
contra exemplos ou outras hipóteses, podemos analisar os argumentos comuns esboçados acima, da
perspectiva de que a autoridade depende de uma idealização das relações de poder imediatas, de que
a autoridade não é dada pelos eventos, mas pela memória e pela interpretação destes.
Os argumentos naturalistas em geral têm um histórico de serem mostrados como falsos pela simples
mudança das culturas ao longo do tempo, além da descoberta de povos com outros costumes.
Por exemplo, na civilização ocidental tendemos a acreditar que o arranjo usual de nossas famílias é
biologicamente natural, e alguns de nós se ocupam de explicar qual é o papel desse arranjo na
evolução. Entretanto, existem muitas culturas tribais que se organizam em algo que chamamos de
“totemismo”. Nessas culturas, as famílias não são definidas como “um homem, uma mulher, seus
filhos e seus associados como avós, tios, etc”. Em culturas totemistas, as famílias são definidas pela
associação de alguns indivíduos a totens que representam animais. Existe um grupo de indivíduos
pertencente ao totem do lobo, outro ao do touro, e assim por diante. Não é a relação sanguínea que
agrupa esses indivíduos, mas diversos fatores contextuais ao nascimento de cada indivíduo, que
variam de tribo para tribo. Nessas culturas, a repulsa pelo incesto também existe, mas não por
consanguíneos, e sim por membros do mesmo totem. Note que nossa biologia talvez tenha razão
sobre o mecanismo fisiológico que causa essa repulsa, mas meu ponto é que a sensação de que
conhecemos a natureza biologicamente determinada da família é apenas resultado da uniformidade
de nossos costumes, dado que nossa civilização dialoga apenas com outras que mantém famílias
com estruturas iguais ou muito semelhantes. Freud discutiu esses casos e questão do incesto
extensivamente ainda no século 20, apoiado em trabalhos feitos em séculos anteriores. As
evidências antropológicas de que a afirmação “esse costume faz parte da natureza humana” tende a
ser enviesada no pior sentido são abundantes. Além disso, eu posso acrescentar que o racismo e o
sexismo foram também defendidos por argumentos que tomavam o status quo como fenômeno da
natureza humana. Será estranho dizer que algo semelhante se aplica à autoridade?
É claro que é natural que nós tenhamos influência uns sobre os outros e que essa influência não seja
sempre simétrica. Em outras palavras, é natural que existam relações de poder entre os seres
humanos assim como elas existem entre quaisquer seres vivos dotados de consciência. Mas a
autoridade não é tão simples, nossas hierarquias são compostas por títulos de autoridade, pelas
instituições reguladoras desses títulos, pela propaganda que cerca as figuras de autoridade, por
desigualdades econômicas, etc. Esses são apenas exemplos de fatores, entre diversos outros, que
certamente poderiam estar organizados de outra maneira, porque de fato existem de outras formas
em sociedades diferentes, e ainda sequer existem em algumas outras. Um exemplo de pressuposto
que é desfeito por esse conhecimento é a noção de que o trabalho não existiria sem autoridade. Nas
sociedades industrializadas, o trabalho foi moralmente justificado de uma maneira em particular,
entre muitas outras possíveis. Muitas pessoas argumentam que em um espaço de liberdade o
trabalho industrial necessário seria abandonado, esquecendo de que isso é principalmente um
resultado de como nossa filosofia do trabalho se desenvolveu em torno de um elogio do sujeito
egoísta que usa do trabalho como fim para obter propriedade. Em torno do pensamento burguês,
como diriam os marxistas. Nós organizamos o trabalho, na prática e na teoria, como um desprazer
para todos, como uma disputa agressiva por recursos. Nossas indústrias são construídas com o
pressuposto de que o trabalho por si mesmo não pode e não deve estimular nada além da produção e
da competição. Em nossa civilização, mesmo que um indivíduo não seja ensinado pelos seus
responsáveis a seguir essa lógica de sofrer (ou fazer sofrer) por dinheiro, o indivíduo será ensinado
dessa maneira pelo mercado de trabalho, que perpetua essa forma de pensar através da prática.
É por esse motivo que a noção de que o trabalho é um sofrimento com fins egoístas nos parece tão
natural, quando de fato em povos não industrializados, ou povos que vivem às margens da
civilização industrial, o trabalho ocorre de maneira muito mais espontânea e por vezes ocorre como
uma forma de arte, de expressão e até mesmo de puro entretenimento. É bem provável que a noção
de que o trabalho precisa ser forçado por alguma autoridade seja mantida quase que exclusivamente
pelos próprios responsáveis pelo funcionamento do mercado de trabalho, dessa estrutura sofisticada
de autoridade que muitos intelectuais erroneamente consideram como um espaço de liberdade.
Eu certamente não sou o único a sustentar que nossas autoridades provocam os problemas que
prometem solucionar, e há muitas evidências para isso. O exemplo mais claro é a questão da
segurança, tanto no sentido civil quanto no sentido militar. A existência de uma polícia, no caso do
Brasil uma polícia militarizada, costuma ser justificada com base na ameaça que são os “marginais
armados”. Mas tomando o Brasil como exemplo, devemos nos perguntar: Por que existem favelas?
E ainda: Por que existe no Brasil um poder armado paralelo ao Estado? Ora, justamente porque o
Estado, do qual o mercado por essência faz parte, criou um grupo enorme de indivíduos privados de
diversos direitos (educação, saúde, etc.) que ao longo do tempo se organizou em comunidades das
quais criminosos faziam parte, criminosos que ao longo do tempo se tornaram figuras de influência
dentro dessas comunidades, inclusive por providenciarem segurança interna em muitos casos. Os
criminosos que aparecem nas estórias de horror diárias que surgem em nossas mídias não servem
como base para a explicação da criminalidade em geral, um problema de uma parcela gigantesca da
população mundial que não segue as mesmas regras dos casos bizarros apresentados diariamente
pelos sensacionalistas. O Estado brasileiro marginaliza o indivíduo e depois o prende por seus
crimes, usando outros indivíduos particularmente perversos como desculpa para tratar de todos os
criminosos como se fossem vilões. O “livre mercado”, um antigo dogma da economia ocidental que
na verdade é um simples reflexo da incompetência administrativa de nossas elites, permite que
armas altamente destrutivas cheguem às mãos de organizações criminosas, permitindo que o crime
organizado se torne uma ameaça efetiva que precisa ser contida através de uma polícia altamente
violenta. Com as ameaças militares, ocorre praticamente o mesmo. Governos como o dos Estados
Unidos permitem através do “livre mercado” que a industria bélica lucre com armamentos vendidos
a milícias africanas e ditadores no oriente médio, por exemplo. Posteriormente, surgem frases como
aquelas de G.W. Bush “nós ainda vivemos em um mundo perigoso”, que sustentam a ação militar,
o desenvolvimento da indústria bélica e a suposta impossibilidade de um mundo em paz.
O estado de natureza de Hobbes, a “guerra de todos contra todos”, quase certamente é mais um
entre os preconceitos antropológicos que estou tentando expor, porque podemos observar que a
violência não surge em massa como uma misteriosa corrupção da mente humana, mas como uma
resposta a problemas concretos que é validada por diversos discursos, especialmente esses de
caráter misantropo, que causam parte daquilo que criticam. Eis a fórmula para a banalização do mal.
A relação do indivíduo com o mundo por intermédio de figuras de autoridade é realmente um fator
importante para a formação da subjetividade tal como a conhecemos. O patriotismo, por exemplo,
leva indivíduos a se importarem com causas que de outra forma lhes seriam alheias, e fornece um
senso de pertencimento cuja falta atormenta muitos. A existência da autoridades oferece um apoio
psicológico, e esse é um dos motivos pelos quais os indivíduos interiorizam as figuras de
autoridades e passam a defendê-las. É verdade que isso ocorre, mas não seria isso tudo justamente
mais uma base para argumentos contra a preservação das autoridades? Mesmo se Freud tinha razão
sobre a origem das figuras de autoridade, nas figuras do pai e da mãe, temos de manter em mente
que o fato de que os indivíduos são levados naturalmente a uma analogia inconsciente entre os pais
e os professores, por exemplo, não significa que essa analogia seja correta ou positiva. Naturalidade
nem sempre implica em bem ou perfeição como alguns imaginam. O apoio psicológico resultante
da confiança em autoridades bloqueia, a meu ver, o desenvolvimento intelectual e moral do
indivíduo, Por exemplo, é mais fácil ler os textos de um kantiano do que ler uma autêntica obra do
próprio, mas o enfrentamento direto de tais dificuldades permite que o indivíduo entenda suas
limitações intelectuais e trabalhe para superá-las, enquanto a delegação do problema gera apenas
uma ilusão de sucesso. Por extensão, é mais fácil ler Kant que escrever obras como as suas, mas
vale novamente o raciocínio. Ser patriota, ter um partido, ter uma ideologia são todas coisas que
dependem de autoridades e que resultam em uma confortável simplificação do mundo. Mas
justamente isso é um sinal de corrupção. Se dois países estão em guerra, o que nos leva a acreditar
que os soldados de um país merecem a morte mais que os de outro? Nenhum fato, se a história nos
ensina qualquer coisa sobre a questão. O que nos leva a estarmos de acordo com tudo que um
determinado grupo sustenta e a recusarmos tudo que alguns outros sustentam? Nenhuma boa razão,
se as discussões atuais são algum exemplo significativo. A confiança em autoridades intelectuais
coloca barreiras confortáveis em nosso próprio raciocínio, a confiança em autoridades morais faz o
mesmo e ainda transforma o mundo em uma fantasia de heróis e vilões.
Levando em consideração esses efeitos negativos do Estado, e que existem muitos outros, devemos
nos perguntar: O que é exatamente o Estado? De qualquer perspectiva, o Estado é uma abstração,
um produto ideal de uma série de estruturas concretas que não teriam por si mesmas ou mesmo em
combinação (na ausência do conceito) o poder sobre cada indivíduo que o Estado tem. Se, por
exemplo, o poder sobre o corpo que a polícia tem sobre mim existe em forma de abstração – porque
ela não é onipresente nem onisciente – se o poder sobre a mente que os doutos tem sobre mim
existe em forma de abstração, se a influência do Estado me atinge por intermédio de minha própria
mente e, portanto, de minhas ideias, o poder do Estado é um fantasma, que eu escolho continuar
imaginando. A coerção não vem dessa abstração, mas de indivíduos que assim como eu continuam
imaginando que esse fantasma exerce sobre eles sua vontade. Os serviços públicos também não são
prestados por um fantasma, mas por pessoas, que aprenderam com seus professores que alguma
espécie de orientação externa é necessária para que o indivíduo entenda qual ação ou trabalho é
pertinente a cada contexto. Esses professores também escolhem a servidão pela crença no mesmo
fantasma, quando ensinam aquilo que são forçados a ensinar não pelos seus diretores – que,
novamente, não são onipresentes ou oniscientes – mas pelas suas próprias memórias desses
diretores, e de seus antigos professores. São as condições materiais e as interações reais entre
indivíduos que exercem nossas relações de poder. Não existe mercado, existem pessoas vendendo e
comprando coisas (e outras pessoas). Ninguém é afetado pelo mercado, cada um é afetado por
transações específicas. Dessa forma, tudo aquilo que é providenciado ou privado pelo Estado é, na
verdade, realizado por indivíduos que atribuem suas ações a uma instância superior de presença
imaginária, indivíduos que sustentam juntos um fantasma.
A autoridade em geral funciona de forma semelhante. Um exemplo. Se um especialista, uma
autoridade intelectual, resolve um problema, não foi seu título (mestre, doutor , etc.) que gerou
resultados, mas uma ideia ou ação especificamente, não essa garantia imaginária de sucesso mas o
sucesso na contingência, em constante risco. Sendo assim, sendo o sucesso ou fracasso
características de ações específicas e não características que um indivíduo realmente possa manter
dentro de si através de um título bom ou mau, alguém sem aquela autoridade poderia também
resolver o problema, mesmo que de outra forma. Será mesmo tão estranho afirmar que a autoridade
e as hierarquias são dispensáveis e, no fundo, imorais? A autoridade como a conhecemos é exercida
através de ideias, porque não poderia ser duradoura de outra forma, e me parece difícil negar que
muitas de nossas ideias são erros, dogmas e mentiras. Penso que o espírito questionador que
enaltecemos hoje apenas pode ser autêntico se complementado por uma postura desobediente.
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