quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

A Grande Obra

A criatividade não é uma ocorrência aleatória, uma espécie de talento com o qual uns indivíduos são abençoados e outros não. Criar consiste em entender e transformar. Compreender a situação atual de um objeto qualquer ( seja concreto ou abstrato ), entender suas propriedades, sua história e, portanto, vislumbrar algumas de suas possibilidades não exploradas. A partir disso, um indivíduo pode transformar o que observa segundo uma ideia sua, como quando um escultor faz de um bloco de mármore uma estátua de mármore, ou quando um cientista organiza experiências e conceitos relacionados na forma de teorias. Ter criatividade significa cultivar o hábito prático e intelectual de conhecer com o desejo de transformar, significa cultivar o amor pela renovação e, talvez acima de tudo, amar as ideias a ponto de se ter o desejo de torná-las vivas, plenamente efetivas na realidade.

As criações artísticas, filosóficas e científicas têm um papel de renovação. Mesmo as melhores ideias, sejam teoremas ou ideologias, se gastam com o tempo, deixam de fortalecer, esclarecer e possibilitar, eventualmente se tornam um fardo. Ideias criam laços entre indivíduos, dão um sentido ao mundo, destacam fenômenos difíceis de perceber, mas esse poder se desgasta e se inverte conforme os tempos mudam, conforme novos indivíduos com novas aspirações nascem, conforme novos entes do mundo são descobertos. Tome por exemplo o marxismo. A teoria marxista que um dia trouxe à humanidade toda uma nova discussão e que uma vez inflamou centenas de milhares de corações com o desejo de transformar o mundo hoje é um entulho conceitual que os acadêmicos arrastam e ensinam a arrastar precisamente para não mudar o mundo, simulando a mudança no discurso, como um prêmio de consolação.

Na área da sociologia, a seguinte afirmação é comum " Um sociólogo precisa conhecer Marx, Weber e Durkheim ". Mas por qual razão? Será porque as ideias importantes desses autores apenas podem ser acessadas lendo a obra dos mesmos -- e não observando a realidade que supostamente eles explicam tão bem? Ou será porque é impossível falar e ser respeitado no meio da sociologia sem se demonstrar extensiva leitura de determinadas obras que são associadas, culturalmente , à expertise nas questões sociais ?
Você realmente acredita que os termos " burguesia " e " proletariado " são suficientes ou mesmo úteis para entender e transformar as relações econômicas da nossa sociedade, hoje ? O materialismo histórico se tornou metafísica pura e de má qualidade, é hoje uma desculpa para se preferir os livros em vez da observação e da introspecção, uma desculpa para se enquadrar indivíduos em categorias ignorando a vontade e a opinião dos mesmos. A maioria dos cientistas sociais e economistas atuais não continua o trabalho de Marx, eles o tomam como coisa terminada, confirmada a priori. Hoje em dia o marxismo aliena e divide -- até mesmo gera lucro fácil.

Aqueles que são contaminados pelo cientificismo norte americano ou que persistem no positivismo desenvolvem um enorme apego por algum conjunto específico de argumentos e teorias, como se a verdade tivesse que ser expressa por aquelas palavras, como se aquelas palavras fossem a verdade. Uma observação geral da história do conhecimento mostra, porém, o grau de arbitrariedade presente na escolha de uns nomes em favor de outros, de uns argumentos em favor de outros. Dizem por exemplo que a cosmologia geocêntrica de Aristóteles começou a ser contestada na modernidade, porque apenas nessa época o avanço da discussão foi possível. Isso é inteiramente falso. Muitos filósofos já na Grécia antiga afirmavam que o Sol deveria estar imóvel, sem nenhuma evidência empírica, conceito filosófico ou fórmula matemática que estivesse indisponível aos defensores do geocentrismo. Porém, nenhum desses muitos filósofos foi mentor de Alexandre, tampouco tiveram suas teses adotadas como aquilo que melhor explicava a narrativa da bíblia. Não estou afirmando que nossas teorias são regras fúteis ou que não existe verdade. Estou chamando sua atenção para a enorme influência cultural, política e mesmo econômica que existe em uma história do conhecimento que tratamos como se fosse uma pura dialética entre argumentos que temos a obrigação de continuar. Se temos alguma obrigação em relação ao conhecimento, essa obrigação consiste em mantê-lo atual, em mantê-lo a favor dos vivos e da vida, algo que se faz com coragem e auto confiança, e não com adoração ao passado e ao alheio.

Uma resposta comum que alguns acadêmicos têm a essa questão é a convicção de que embora nossos conceitos e teoremas sejam em grande medida arbitrários e substituíveis por outros que poderiam refletir a verdade com igual ou maior potência, a grande maioria de nós cometeria apenas enganos embaraçosos ao divergir da norma, então é melhor que as teorias até então eficientes sejam ensinadas como a algo a ser reproduzido. Se trata de uma opção pela mediocridade geral como forma de prevenir erros graves. Esse tipo de resposta que aparece em todos os centros e cantos de nossa sociedade revela ao mesmo tempo uma enorme covardia e uma forte tendência autoritária. Esse medo mortal do erro dificilmente se trata de um compromisso moral com o bom desempenho, em quase todos os casos se trata do medo da humilhação que se segue quando erramos diante dos outros. Sob o peso desse terror narcisista, esses indivíduos ficam paralisados e envoltos por mentiras que eles reforçam uns nos outros. Qualquer um sabe que não se pode acertar sem se correr o risco de errar, e isso deveria fazer de todo sujeito invicto um objeto de suspeita, não de admiração. O autoritarismo se revela quando esses indivíduos aplicam essa restrição também sobre os outros, censurando com extrema severidade qualquer erro e concedendo muito pouco aos trabalhos que divergiram da norma com sucesso -- a não ser que o autor esteja morto há uns 200 anos ou esteja na moda. Hoje em dia o combate ao autoritarismo em diversos âmbitos está na pauta da maior parte dos movimentos sociais, e também nas discussões que eles provocam, como a do feminismo, por exemplo. Mas creio que enquanto esse cenário no qual temos medo e ensinamos o medo aos outros não for revertido, novas e mais elevadas relações sociais não serão construídas, porque nós ainda não estaremos à altura disso.

Quando eu lhe expliquei que as ideias se gastam ao longo do tempo, você talvez tenha se lembrado de algum texto ou obra antiga que mudou sua vida, e pensado no contraste desse poder com a irrelevância de inúmeras outras obras recentes que você quase se arrepende de ter contemplado. " Os clássicos são imortais ". Falso. Os clássicos são inspiradores. Note como os grandes artistas, cientistas e filósofos citam uns aos outros, como eles fazem de seus antecessores anjos e demônios e depois compare isso com o efeito que as citações têm em trabalhos medíocres. Uma citação de Platão, vinda de um espírito vazio, não vale mais que um anúncio da Coca-Cola ou algo do tipo. Platão está morto, não acessamos " as ideias de Platão " mas sim aquilo que fazemos com as palavras deixadas por ele. Suas obras são hoje uma sepultura, que serve para inspirar em nós a espécie de grandeza que ele atingiu em vida. Se você tem um interesse por resgatar as ideias de Platão ( ou de qualquer outro ) tais como foram, saiba que esse seu espírito arqueológico seria mais útil na procura por fósseis de dinossauros ou na escavação de ruínas -- na busca por algo do passado que você poderia de fato encontrar.

Os espíritos radiantes inspiram uns aos outros, a energia aplicada em uma obra não se dissipa, ela inspira outros indivíduos ao mesmo tipo de esforço, a cultivar o mesmo tipo de energia. A forma imediatamente observável da obra pouco importa na troca entre nós criadores, o que se transmite entre nós não é esta ou aquela opinião, mas o fervor pelas ideias. A inspiração não determina nem influencia, ela liberta. O contato com uma obra divina pode -- se você tiver a coragem -- incinerar seu espírito, reduzir a cinzas aquilo que há de fraco e falso na sua mente e te transformar em uma fonte dessa mesma chama. O contato com as palavras frívolas que consumimos aos montes hoje, seja nos posts do Facebook que repetem a mesma piada de mil maneiras ou nas polêmicas que nos desviam da verdadeira discussão apenas acumula mais entulho mental, mais ideias que gastam seu tempo e sua memória com nada. E, entre nós, é precisamente esse o plano e o objeto de consumo : perder tempo. Maquiavel notou antes de mim que " A virtude é mais admirada que imitada ". As grandes obras não são ignoradas, nós somos ignorados, nós nos ignoramos.

Você nota que eu trato de extremos, como em um mero exercício de pensamento. " Existem os criadores e os perdedores de tempo ". Mas isso não pode ser verdade. Pessoas são influenciadas por grandes obras o tempo todo, diretamente e indiretamente por intermédio de outras pessoas, inclusive nessas trocas que eu chamei de frívolas e nesses espaços acadêmicos que eu chamo de autoritários e covardes. Repare no termo " influência ". Você diria que Platão influenciou Agostinho, que Schopenhauer influenciou Nietzsche. Onde você aprendeu isso? Eis porque eu crio esses extremos, porque carrego os termos de significado com uma narrativa que eu invento. Isso é metafísica, isso pode salvar ou enlouquecer -- e pouco me importa qual dos dois será o resultado final, me importa apenas que o resultado intermediário é a liberdade. Você pode falar em influências e determinar seu universo mental segundo aquilo com o qual você por acaso teve contato, você pode falar em inspiração e cultivar suas próprias ideias a partir do contato com o fervor de certas outras, você pode ignorar todos esses termos e pode criar ainda outros ou carregar outros termos comuns com seus próprios significados arbitrários. A escolha é por inteiro sua, meu papel aqui é apenas lhe lembrar que suas palavras e sua linguagem tem esse poder existencial, que existe uma arte incompreendida do pensamento que podemos chamar de " metafísica " que não é ensinada ( nem bem compreendida ) pelos seus professores de filosofia. " Kant e o fim da metafísica " é uma excelente perda de tempo, entre muitas outras do mesmo tipo, caso você prefira a Matrix.

No texto que considero a primeira parte deste, afirmei que nós não, efetivamente, criamos nada, apenas rearranjamos as possibilidades infinitas do mundo segundo nossas ideias. Agora, depois de mais ou menos um ano, percebo que essa afirmação precisa de um esclarecimento fundamental. Podemos falar em criação no sentido teológico, no qual um ser superior originou a natureza com seu poder, e podemos falar em criação no sentido humanista, no sentido de que um ser humano coloca seu espírito em uma porção dessa natureza para abrir novas possibilidades em si mesmo e nos outros, para ampliar capacidades emocionais, abrir novos horizontes, etc. Creio que está claro agora em que sentido eu afirmei que a criação não é humanamente possível, e em que sentido afirmei que a criação não é nada menos que uma necessidade. A determinação do universo é absoluta, de tal forma em sua escala cósmica que as ações de um indivíduo são irrelevantes para a manutenção dessa determinação, e precisamente essa indiferença permite que exista a liberdade. Se a ordem do universo dependesse de suas ações, você seria determinado(a) a agir da forma que afirma essa ordem ao máximo. Mas não existe tal dependência, então você pode agir desta ou daquela forma, segundo seu arbítrio. A inspiração fortalece justamente esse arbítrio, seja qual for a sua fonte.

Uma última coisa importante de se notar sobre a inspiração é que ela é o total oposto da depressão. Da mesma forma que algumas pessoas, obras e ideias são inspiradas e inspiradoras, existem aquelas que são igualmente deprimidas e deprimentes. Hoje à noite, revisite sua obra favorita, fique com o coração cheio de fogo e luz e, na manhã seguinte, vá ao seu trabalho, veja toda aquela resignação, veja onde sua inspiração vai parar. A histeria era uma doença extremamente comum nas mulheres da Era Vitoriana, mas hoje é bastante rara, sem que nenhum medicamento preventivo tenha sido desenvolvido, sem que a doença tenha sido completamente compreendida. A depressão é uma doença extremamente comum atualmente, sem que a sociedade tenha realmente descoberto novos terrores. Coincidência? Assim como a peste negra não poderia ter sido o que foi se na Baixa Idade Média a esmagadora maioria da população não vivesse praticamente no lixo e a igreja não levasse ninguém a consultar os céus em vez de observar os fatos, a histeria não poderia ter sido tão comum na Era Vitoriana sem aquela peculiar moralização do sexo que criava entre os impulsos e os pensamentos a pior relação possível.

A depressão suicida é tão comum hoje porque por um lado deixamos aquele autoritarismo explícito que designava a cada um seu papel, enquanto por outro mantemos um autoritarismo implícito que impede que cada um faça o que quer fazer com sua liberdade, através do medo da humilhação. Ninguém determina para nós quem somos, mas aprendemos a colocar mil barreiras entre nós e aquilo que queremos ser, e assim passamos os dias sentindo como se fossemos nada. A sensação que se pode notar nos registros do século 20, de um mundo em estado transitório entre a civilização de sempre e um novo mundo livre, se foi. O passado foi destruído e ridicularizado, mas a falta de coragem fez com que o futuro se perdesse de vista, fez com que os sonhos evaporassem. E assim continuamos arrastando este limbo. Nada deprime mais que o tédio. Todos aqueles que são honestos o bastante para ver que os rebuliços das redes sociais são tolices e fachadas podem ver nossa sociedade como está: hipocrisia e tédio, com alguns lampejos de inspiração. Cabe a nós multiplicá-los -- ou entupir todos os depressivos com remédios. " É um distúrbio químico! Não faz sentido de outra forma ! " ...

Somos todos únicos, repletos de potencial e de ideias que podem ser cultivadas ou reprimidas. Quando um indivíduo cria algo, seu potencial se realiza e uma ideia sua se efetiva como parte do mundo. Existe nisso um profundo poder que fortalece o indivíduo e melhora o coletivo. O indivíduo que cria não precisa ser validado por outros, não precisa viver buscando a opinião alheia, mendigando elogios e temendo a humilhação, ele encontra a segurança em seu caminho, naquilo que decidiu fazer. E aquilo que ele decidiu fazer traz beleza ao mundo, traz a sua beleza ao mundo. Alguns tratam a criatividade como instrumento, afirmando que surge periodicamente um tipo excêntrico que cria algo grandioso que compensa os anos de letargia por parte dos demais, que nós podemos ( e devemos ) simplesmente apreciar os resultados dos grandes, sem preocupar-nos com isso tudo. Minha objeção a isso, que poucos parecem entender, é artística e ética. É injusto com os grandes incumbi-los dos tantos sacrifícios que ir contra tudo e todos envolve, e é grotesco organizar a sociedade dessa forma, como um vasto campo frígido no qual explosões vulcânicas ocorrem esporadicamente. A futilidade e a gravidade poderiam ser melhor equilibradas entre os dois lados, não? Os gênios não precisam ser privados das coisas mundanas e as coisas mundanas não precisam ser tão frívolas. O valor absoluto do indivíduo não precisa ser algo abstrato, um " direito " seja lá o que isso for. Esse valor pode se dar através da afirmação artística, filosófica e afetiva do indivíduo.

É neste sentido que a humanidade pode evoluir, no indivíduo e na espécie : Elevando a força, o amor e a diversidade ao limite, e elevando também esse limite. E isso não se realiza entre narcisistas, que cultivam a certeza na própria identidade e nada mais, nem entre aqueles que abandonam a razão em favor da liberdade que é apenas um meio para que a determinação venha de dentro ( isso é poder ), nem entre cínicos que não têm olhos para o que está latente , nem entre fracos que usam a comunicação constante como forma de disfarçar o vazio, nem entre santos que prometem e buscam outro mundo se negando a dar beleza a este, nem entre os examinadores frios e superficiais que querem despojar todas a belezas do mundo chamado-as de ilusões, nem entre os agitadores que escondem o fato de que amam o caos e a violência, e não a sociedade ou " os direitos ", nem entre os mestres da torre de marfim que inventam mil razões para tudo e censuram outras mil, mas nunca fazem ou criam nada de valor, nada honesto, e isso também não se realiza entre os resignados que acreditam que todo desejo de mudança passa com a juventude, uma forma de propagar os próprios erros em vez de corrigi-los. Um mundo livre, forte e belo -- todos temos muito a fazer e mudar em nós e na sociedade até que isso seja completamente criado, nossa Magnum Opus.

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*1 - Sem ofensa, Lebrun! Alguém precisa dizer " o espírito francês chegou à décadence ". Mas os mortos, incluindo aqueles que ainda respiram por aí, podem descansar em paz... Eu vivo.

*2 - Não ignoro que existem barreiras práticas para que nos tornemos quem queremos ser. Certamente uma pessoa criada sem liberdade civil nenhuma, seja por razões políticas ou econômicas, se resigna por uma razão distinta do medo da humilhação. Note, porém, que depressão e sofrimento são diferentes, e que a condição para a depressão é a liberdade sem propósito. Somos educados para cultivar a liberdade como um ideal e como uma necessidade do ego, mas não somos educados para tomar decisões por conta própria e assumir compromissos. Em outras palavras, a sociedade não nos ensina a obter poder, apenas a sonhar com possibilidades, e esse sonhar sem agir nos devora.

*3 - Foi isso que os defensores da ética deontológica, do valor absoluto do indivíduo como causa e fundamento do restante da moralidade, não perceberam ou souberam expressar. Isso também é mal compreendido pelas éticas pragmáticas e utilitaristas, que trocam ouro por cobre, subestimando esse potencial em favor de ganhos simples. O valor do indivíduo não é abstrato nem é uma convenção necessária. A intensidade intelectual e emocional que cada indivíduo pode trazer ao mundo é insubstituível. Disso decorre que a sociedade tem o dever de dar ao indivíduo ferramentas, de não lhe ser uma ameaça, de não lhe tornar vazio, nem lhe dar razões para ser violento e destrutivo com os outros indivíduos, porque desse valor absoluto se segue que o amor é o único caminho para a sociedade, que tudo aquilo que destrói e separa os indivíduos, por dentro ou por fora, é por essência perverso, fraco e grotesco. Nenhuma lei pode substituir esse conhecimento, o fundamento único da justiça.

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