O propósito desta
apresentação é expor uma tese e propor um debate sobre a liberdade
intelectual no meio acadêmico. A tese que venho apresentar é a de
que o meio acadêmico contemporâneo é profundamente corporativista,
que nas universidades existe uma estrutura de poder que racionaliza a
reprodução cega de um determinado padrão através de noções
dúbias de objetividade, subjetividade, rigor, racionalidade, etc.
Para explicar essa tese, alguns passos são necessários.
Primeiramente, a definição
de corporação. Uma corporação é um grupo de indivíduos ou um
conjunto de instituições que partilha de interesses que são
privados em relação ao público em geral. Em outras palavras, se
trata de uma organização que defende os interesses de seus membros
independentemente do que isso possa causar para aqueles que não são
membros. A Coca-Cola, por exemplo, é uma corporação, porque é
composta por um conjunto de empresas organizadas sob uma direção única.
Essas empresas não concorrem entre si, como em um modelo de livre-mercado.
Em vez disso, elas garantem que o grupo como um todo permanecerá
bem sucedido no mercado através de medidas como a divisão de
tarefas entre essas empresas, para que o grupo cubra uma grande
quantidade de produtos distintos para ocupar o máximo possível do
mercado, e também medidas como a compra de pequenas e
médias empresas de fora do grupo que poderiam em algum momento
concorrer efetivamente com algumas das empresas do grupo. Esse é o
aspecto econômico de uma corporação, o monopólio de uma porção
do mercado por parte de um determinado grupo que é capaz de exercer
poder sobre o mercado em si. Grupos como esse não apenas atendem as
demandas do mercado com seus produtos, eles influenciam a formação
das demandas através da propaganda coordenada pelas diversas
instâncias aparentemente autônomas que formam uma corporação. O
fenômeno do consumismo não pode ser explicado sem a compreensão de
que existem grupos de grande influência na esfera pública e no
mercado que são interessados, por razões óbvias, na criação de
uma cultura de consumo extremo.
Existe também o aspecto
ideológico de uma corporação, que é frequentemente ignorado pelos
estudiosos do tema. Isso ocorre porque se o lucro ou a obtenção de
autoridade fosse o interesse único entre os membros de uma dada
corporação, esse egoísmo forçaria esses indivíduos a alguma
concorrência, cedo ou tarde. Corporações são mantidas na prática
pelos benefícios exclusivos que essas associações oferecem, mas no
discurso as corporações são mantidas por ideais homogêneos.
Por exemplo, como poderíamos
explicar a estranha mas comum associação entre uma determinada
forma da religião cristã e uma determinada corrente de ideias
liberais? O cristianismo chamado de fundamentalista e o
neo-liberalismo são em seus fundamentos mutuamente exclusivos; No
neo-liberalismo a caridade é facultativa e a desigualdade é
considerada natural, enquanto no cristianismo a caridade é um dever
e todos são nada mais e nada menos que filhos de Deus. No
cristianismo a moral sexual e "os valores da família" são
necessariamente um assunto público, enquanto no neo-liberalismo,
muitas vezes chamado de anarcocapitalismo, todas essas questões
devem ser deixadas
por conta dos indivíduos e
suas idiossincrasias. No cristianismo a propriedade é irrelevante
diante dos bens do espírito, no neo-liberalismo o espírito somente
se mostra em termos de propriedade.
A explicação para essa
associação que compõe os mais diversos grupos de políticos
corporativistas ao redor do mundo variando da bancada evangélica no
Brasil ao partido republicano nos EUA está no poder de união que
existe em uma ideologia. Um grupo que é unido porque cada membro
deseja lucrar e ganhar autoridade se desfaz assim que uns membros
encontram uma oportunidade de ter sucesso sem os outros, enquanto um
grupo que é unido também em torno de ideais como os cristãos
muito dificilmente se dissolve, porque os lucros e os outros
benefícios práticos conquistados pelo grupo passam a representar
para seus membros e diante da sociedade o sucesso de uma visão de
mundo. Assim o dinheiro é associado a uma supremacia moral e
intelectual, e a profundidade dessa associação define a força das
corporações que dominam o mercado e a política.
Mas como o meio acadêmico
onde trabalham as nossas louváveis vanguardas intelectuais poderia
ser comparado a uma corporação como a Coca-Cola? Como uma postura
corporativista poderia existir na Torre de Marfim sem ser
imediatamente criticada e repudiada pela nossa eminente classe de
mestres e doutores? Um indivíduo começa a desconstruir a pureza do
meio intelectual uma vez que percebe que as universidades são
apoiadas em uma infraestrutura, tanto quanto quaisquer outras
instituições. Uma universidade existe em um terreno, consome
energia elétrica, contrata e rejeita profissionais, financia
projetos, depende de parcerias econômicas e políticas, etc. No meio
acadêmico ocorre circulação de capital, e esse capital é
circulado em torno de determinados interesses – não poderia
circular em torno de algo que fosse "um fim em si mesmo".
Qual é a finalidade de uma
universidade? Não pode ser o cultivo do conhecimento como um fim em
si mesmo, porque é inconcebível que tal finalidade seja financiada
em uma sociedade capitalista. Uma instituição é financiada para
produzir e regular. Uma universidade produz profissionais, produz
tecnologia, produz teoria e produz arte. E que essa produção não
seja subestimada! Uma das maiores fontes de renda dos EUA é
justamente a propriedade intelectual. Uma produção de tamanha
importância não poderia ser desorganizada, ninguém investiria uma
quantidade enorme de recursos em uma instituição que apenas talvez
alcance seus objetivos. Especialmente por estarmos tratando de uma
produção associada ao conhecimento, qualquer instituição de
ensino superior atual tem em sua estrutura uma burocracia e uma
hierarquia destinadas a garantir os resultados dos cursos, das
pesquisas, dos projetos de extensão, etc. Assim temos que um
pesquisador deve garantir que seu projeto merece ser financiado, e
também que um professor deve garantir que seus cursos resultem na
formação de profissionais capazes de dar garantias tal como ele
mesmo é.
Eu pergunto: como é
possível que alguém dê garantias de que sua pesquisa trará
resultados? Uma pesquisa é diferente de um estudo. Em um estudo um
sujeito obtém conhecimentos que ele em particular não tinha, mas
que já eram disponíveis a muitos outros indivíduos e grupos. Uma
pesquisa, porém, tem como objetivo expor algo que até o momento não
era conhecido. Se uma pesquisa realmente tem chance revelar algo
desconhecido, ela também tem chance de não encontrar absolutamente
nada – sua hipótese inovadora pode ser revelada tanto como imbecil
quanto como genial, porque precisa ser afastada significativamente
daquilo que já foi produzido na área em questão. Do contrário
seria um estudo, uma retomada, uma revisão de literatura mas não
uma pesquisa. A partir disso, eu repito a pergunta. Como alguém
poderia garantir os resultados de sua pesquisa, se uma pesquisa é
exatamente uma busca por algo novo, algo a acrescentar? Existem duas
respostas, uma honesta e simples e outra que é desonesta e apenas
soa complexa. A resposta honesta é que não é possível oferecer
essa garantia porque a descoberta e a criação envolvem grande risco
de fracasso. A resposta acadêmica é que através do estudo rigoroso
das referências indispensáveis do meio intelectual um indivíduo se
forma como um profissional metódico que avança o conhecimento sem
chance efetiva de fracasso. Essa resposta é desonesta porque ela
obscurece a distinção entre estudo e pesquisa; Um doutor em
filosofia, por exemplo, publica um artigo comparando a filosofia
política de Rousseau e a ética de Kant como se isso fosse o
resultado de uma pesquisa. Não importa qual espécie de comparação
seja essa, se trata de um estudo, de uma revisão, porque essas são
teorias de autores que analisaram fenômenos, teorias já registradas
no meio acadêmico. Porém, o fato dessa revisão conter um ou dois
parágrafos de interpretação peculiar sobre os textos basta para
que esse trabalho seja considerado uma pesquisa, uma pesquisa
inovadora (interdisciplinar!) além de tudo. Pense por um momento
nisto: Quem pagaria alguém para fazer uma pesquisa se uma pesquisa
fosse apenas o estudo de algo já bem conhecido?
Um burocrata que não
entende aquilo que está financiando. Nossa cultura, no que concerne
ao trabalho e ao estudo, é uma cultura de especialistas.
Especialistas se tornam autoridades em seus respectivos campos de
atuação por uma questão de privação. Um determinado trabalho ou
analise se faz necessário e apenas alguns indivíduos são
capacitados para atender essa demanda. Uma vez que os administradores
e os burocratas não são especialistas nas áreas que regulam, os
critérios de racionalidade, objetividade, ciência, inovação e
excelência são definidos pelos especialistas...
Chego com isso a outra
pergunta: Como é possível que algum plano de ensino, seja lá qual
for, garanta que ao menos um terço dos alunos submetidos a ele serão
formados como intelectuais excelentes, criativos, metódicos e
virtuosos? Acrescento ainda outra pergunta: Como alguém, seja lá
quem for, seria capaz de definir em que consiste ou deve consistir a
formação de inúmeros indivíduos? Assim como na pergunta feita
anteriormente, existe para essa uma resposta honesta e uma resposta
acadêmica. A resposta honesta é que não é possível que um plano
de ensino tenha resultados previsíveis e que a própria ideia de
formação é um tanto dúbia. Um professor que expõe seu conteúdo
durante duas horas a uma turma silenciosa pode imaginar que inseriu
determinados conteúdos nas mentes de todos os alunos que prestaram
atenção e que um dos desdobramentos dessa inserção de conteúdos
– pretensão que também existe em "dinâmicas dialógicas"
– é a formação intelectual desses alunos. Pobres alunos e pobre
professor! Para que tal transmissão ocorra ela precisa ser uma
doutrinação e um esvaziamento, e é justamente a isso que
professores e alunos se submetem, por covardia, ignorância e tolice.
Como um indivíduo que conclui seu doutorado pode garantir que
aquelas regras às quais se conformou durante tantos anos o
transformaram em um intelectual do mais alto nível e não
simplesmente em um reprodutor cego de uma estrutura de poder?
Acredito que não preciso repetir o padrão.
Se a garantia de excelência
que toda a estrutura de poder das universidades visa efetivar é
fundamentalmente um erro, porque o fracasso faz parte do processo mas
não pode ser reconhecido (financiado) o que essa estrutura está de
fato garantindo? Qualquer coisa que seja conveniente aos
especialistas encarregados de determinar o que significa objetividade
e racionalidade em cada área de atuação. Em geral, aquilo que é
mais confortável é aquilo que parece mais conveniente. Um sujeito
com mestrado ou doutorado se submeteu durante um longo tempo a uma
disciplina e a um esforço, sob a promessa explicita de que ele mesmo
se tornaria como seus professores algum dia e sob a promessa implícita
de que seus professores eram de fato competentes e bons exemplos.
Por um lado, os resultados
do envolvimento no meio intelectual são necessariamente incertos,
sendo o intelecto diretamente conectado à vontade, e por outro a
promessa que permeia esse meio intelectual é de uma garantia de que
a excelência se encontra na academia.
Uma vez que o sujeito é
colocado em uma posição (doutor) que não necessariamente merece
ocupar, por ser um grande privilégio em relação a indivíduos que
talvez sejam mais competentes, esse sujeito precisa, inclusive para
manter a consciência em paz, garantir para si mesmo e para os outros
que a hierarquia é válida e necessária e que ele merece sua
posição. Como um sujeito, por exemplo, que não foi "formado"
como um filósofo pode passar por filósofo? Trabalhando com
indivíduos que foram enganados da mesma forma e que agora precisam
enganar a próxima geração. Trocando seus trabalhos
inférteis com colegas que também produzem trabalhos desse tipo.
Formando alunos para que
eles reproduzam essa estrutura. Recusando trabalhos que tenham
qualidade mas que não se adequem aos critérios que regulam esse
teatro. Construindo a ideia de que essa operacionalidade é prova de
uma verdade. Mantendo uma posição de privilégio através de uma
postura que se pretende como objetiva e científica. Em um conceito,
corporativismo acadêmico.
Um corporativismo baseado
não no acúmulo de capital mas na ocupação de determinadas
posições de autoridade intelectual, um corporativismo que faz o
monopólio da ciência e da filosofia.
Um indivíduo qualquer que
queira propor uma pesquisa de fato na universidade não irá
encontrar um orientador, porque os professores irão recusar sua
proposta inédita ou, pior, transforma-la em uma proposta comum
através de "pequenos ajustes para que o projeto seja aprovado".
A mercantilização do conhecimento, através das patentes no campo
da tecnologia e da propriedade intelectual no campo das ciências faz
com que a reputação e a sobrevivência de inúmeros indivíduos
passe a depender, fundamentalmente, de mentiras, e disso se segue a
conduta corporativa que preserva a qualquer custo a hierarquia
obsoleta do meio acadêmico internacionalmente.
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