O avanço da tecnologia é geralmente tratado como algo intrinsecamente positivo, como o tipo de coisa que demonstra o valor de uma determinada sociedade. Afinal, com o avanço tecnológico tarefas se tornam mais fáceis e eficientes, novas formas de mídia e de arte são possíveis, a pesquisa científica avança e a segurança aumenta. Essa noção simplificada de progresso esconde, porém, que toda tecnologia, assim como toda teoria científica, têm seu verdadeiro impacto desenvolvido a longo prazo. Diante de uma nova possibilidade tecnológica, engenheiros, cientistas, empresas e consumidores muito raramente mostram resistência. Essa adesão geralmente é motivada pela falta de pensamento profundo ou simplesmente por demandas egoístas que não trazem para a sociedade nenhum progresso.
Cientistas contemporâneos não são os heróis sábios mostrados na propaganda que cerca as universidades. Não são heróis porque a motivação principal incentivada pelo meio acadêmico não é o avanço da humanidade, mas sim a produção e obtenção de propriedade intelectual. Cientistas trabalham principalmente tentando descobrir ou elaborar algo que possa ser patenteado, uma tese ou produto que possa gerar lucro e orgulho. Não são sábios porque as áreas de atuação científica são especializadas e cada uma adota critérios distintos de verdade. Um indivíduo que se torna um excelente biólogo, por exemplo, não terá tempo para se manter educado em sociologia, antropologia, filosofia, física, etc. A rotina acadêmica exige que o indivíduo persista na sua área de escolha, revisitando conhecimentos, ministrando aulas, produzindo material didático e fazendo traduções. A cultura acadêmica faz com que um indivíduo possa publicar trabalhos apenas na área na qual ele é considerado qualificado. Os diletantes, considerados nesse meio amadores, são ignorados. Somando esses fatores e outros, podemos entender que os cientistas de hoje são formados, digamos, com uma visão em túnel.
As virtudes particulares de cada cientista não significam muito nesse cenário, Para que teorias sejam incorporadas na produção acadêmica, avaliadas como verdadeiras e utilizadas no avanço tecnológico, a superestrutura como um todo deve colaborar para isso. Mesmo que o indivíduo por traz de uma descoberta seja um verdadeiro filantropo, ele dependerá de um grupo e de uma estrutura que simplesmente não funcionam nessa direção. A tecnologia é desenvolvida e testada principalmente nesse meio, o que significa que a implementação de uma tecnologia na sociedade corre grande risco de ser feita independentemente de suas consequências a longo prazo. O meio científico é movido pelo lucro e pelo egocentrismo. Não vejo outra explicação possível para que o desenvolvimento de armas de destruição em massa e de armas biológicas esteja sempre em alta enquanto o desenvolvimento de curas para doenças genéticas esteja sempre em atraso. Não existe justificativa moral para o aumento constante no poder de destruição de nossas armas, e se os cientistas não trabalhassem de maneira tão fragmentada, certamente teríamos mais avanços na medicina e em outras áreas. A verdade não é dada em fragmentos, como nossas áreas de especialização.
Os aparelhos tecnológicos não trazem apenas soluções e possibilidades, mas também novos problemas e dependência, A partir do ponto que um determinado produto é divulgado ao seu público alvo, surge uma demanda e um mercado para supri-la. A partir disso, se torna necessária a obtenção constante de diversas formas de matéria prima e fontes de energia, além de algum espaço para que os produtos sejam descartados após perderem a utilidade. Uma vez que a cultura se desenvolve em torno da existência de determinados aparelhos, não há volta. Dos hábitos de lazer da população
até a infraestrutura das instituições do estado, a sociedade se torna dependente da continuidade de determinados serviços. Uma pessoa nascida no século XXI dificilmente imagina uma sociedade sem eletricidade e sem mídia digital, apesar da maior parte da história humana ter se passado dessa forma e da maior parte de nossos bens culturais terem sido criados independentemente dessas tecnologias.
Existem muitos discursos na internet sobre como a mesma traz mais liberdade individual e coletiva em relação ao estado. O exemplo mais comum utilizado como argumento é a primavera árabe, uma revolução supostamente organizada em redes sociais. Essa linha de raciocínio não é falsa, mas é incompleta. De fato é praticamente impossível evitar que indivíduos com acesso á internet se comuniquem. Mas a comunicação constante não tem apenas implicações positivas. Em qualquer sociedade, os indivíduos exercem pressão uns sobre os outros para que determinados costumes sejam mantidos, especialmente sobre aqueles manifestam o desejo de agir de maneira peculiar. Os governantes e as empresas geralmente fazem uso dessa tendência, manipulando os valores que os constituem e mantém, às vezes aproveitando os valores já presentes na população com pequenos acréscimos e às vezes gerando na sociedade valores intencionalmente artificiais, tudo por meio da propaganda, que hoje financia praticamente todos os serviços da internet. Além disso, os fenômenos da internet são efêmeros em comparação com os do mundo concreto. O exemplo da primavera árabe, nos lembra que a internet não deve ser subestimada, mas também que sua memória é de curto prazo. Me pergunto qual é a situação política atual resultante dessa revolução. Mas isso não está mais nas notícias e debates. Me resta apenas imaginar quem exatamente foi beneficiado pelo fenômeno.
Conforme nossos aparelhos se tornam cada vez mais uteis e interativos, também ocorrem mudanças psicológicas na população que os utiliza constantemente. A existência de espaços virtuais um dia foi uma ferramenta para a organização de informações, mas atualmente é fácil observar no cotidiano sinais de que o espaço virtual se tornou um plano da realidade. A partir do ponto em que uma ferramenta passa a ser usada obsessivamente, como se fosse uma parte da mente, seus benefícios passam a ter um efeito menor e seus problemas são ampliados. Por exemplo, uma das grandes vantagens da internet em relação às mídias anteriores é que nela o usuário pode ser ativo, ele pode escolher o que quer ver, pode produzir seu conteúdo e interagir com outros usuários. Porém, a partir do ponto em que chegamos, com o acesso à internet sendo parte obrigatória da rotina da maioria da população, voltamos em grande medida ao formato anterior de mídia. Nós não temos uma população em massa de produtores de obras artísticas e teóricas, uma população de indivíduos bem informados e de mente aberta, nós temos em vez disso uma massa que troca memes, com a atenção de cada indivíduo guiada passivamente pela expansão "viral" de certos fenômenos no espaço digital. O humor bem pensado muitas vezes diz muito sobre nossa sociedade. Confira este vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=9oagLOyopRw
O avanço da tecnologia também atrapalhou a filosofia e a ciência em diversos pontos. Com o avanço da inteligência artificial surgiu nos estudos sobre a mente uma estranha metáfora, que logo saiu do controle. Frequentemente, intelectuais contemporâneos tratam a verdadeira inteligência, a dos humanos e dos demais animais, como um software. A "inteligência" artificial nada mais é que uma complexa combinação de operações binárias (0 ou 1). .Máquinas não tem nenhuma vontade, nenhum impulso interno. Os componentes eletrônicos que conduzem ou impedem corrente elétrica em determinados pontos de um circuito não são como os neurônios, que são células vivas, parte de um organismo vivo capaz de ambivalência emocional, de criatividade e de aprendizado para além da simples absorção de conteúdo. Além de confusões conceituais como essa, a obsessão pela ferramenta descrita anteriormente também ocorre na relação entre os cientistas e os aparelhos utilizados em experimentos. Inicialmente, aparelhos como microscópios permitiram que os cientistas observassem fenômenos para além dos sentidos naturais. Atualmente, porém, a dependência da verificação empírica tal como convencionada entre os "especialistas" faz com que o avanço da ciência dependa demais do avanço tecnológico, simplesmente porque os cientistas contemporâneos, em especial os acadêmicos, se recusam a usar o cérebro em vez de alguma ferramenta externa. Mesmo a noção atualmente popular de verdade, a "objetividade", é um produto da desconfiança que a maioria dos intelectuais contemporâneos têm em relação
as faculdades que ergueram a humanidade desde os seus primórdios.
Habilidades são mais importantes que ferramentas. O desenvolvimento de cada indivíduo deveria ser a prioridade, e o desenvolvimento de artífices apenas um complemento. Isso é válido tanto para o campo prático quanto para o campo teórico. Muitos artistas e cientistas especularam ao longo da história sobre a possibilidade de que um dia o artificial supere por completo o natural e tome controle. Quando observo nossos intelectuais passivos, que se comportam como máquinas de sintaxe, assim como os computadores, não vejo esse grupo avançando muito além do ponto em que chegamos hoje. Também não acredito muito na ideia de que estamos em uma era de comunicação, porque algumas habilidades psicológicas básicas como a empatia e a simpatia não aumentaram em proporção com nossas ferramentas de comunicação, e talvez tenham diminuído em geral. Enquanto não tivermos uma sociedade com uma administração inteligente o bastante para implementar a tecnologia com estratégias de desenvolvimento e preservação dos verdadeiros bens da humanidade, podemos apenas utilizar dessas estratégias em nossas vidas particulares.
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