A maioria de nossas decisões em relação a outras pessoas não são feitas com base em doutrinas filosóficas, científicas ou religiosas, nem mesmo com base em algum raciocínio profundo. Essas decisões geralmente são rápidas ou habituais demais para isso e parecem fáceis, além de tudo. Isso simplesmente não se oculta, nem mesmo quando narramos nossos atos como se a explicação tivesse gerado ação. Os impulsos, as emoções e mesmo a falta de atenção controlam boa parte das decisões exigidas de nós pelo passar do tempo. Uma ciência da ética capaz de regulamentar os impulsos exigiria tanto da teoria quanto dos seus praticantes uma coerência que simplesmente nunca existe. Todos praticam aquilo que chamam de mal diversas vezes ao longo de suas vidas, mesmo que isso nunca faça parte de suas intenções, mesmo que sejam honestamente leais a seus princípios.
Existem decisões que não são tão rápidas e habituais, que permitem a um sujeito um tempo para refletir previamente, tanto porque as consequências são mais numerosas e duradouras quanto porque ocorrem em situações complexas que levam naturalmente ao raciocínio. São essas as decisões para as quais filósofos costumam construir doutrinas e conceitos, como o utilitarismo e o imperativo categórico. São, em sua maioria, decisões tomadas na esfera pública evidente como as decisões tomadas por servidores públicos, por prestadores de serviços privados de extrema importância e por usuários desses serviços, além das relações interpessoais com consequências numerosas e que refletem posicionamentos em relação aos valores fundamentais de uma dada cultura. Um movimento que pode ser observado na filosofia contemporânea é o abandono da ética como conceituação do bem e do mal e sua substituição pela ética como ciência da justiça e do direito. Isso tem relação, entre outros fatores, com as demandas geradas pelas guerras mundiais.
De fato, sempre existe racionalidade evidente no tipo público de decisão, mas isso não significa que uma ética universal possa ser estabelecida para essas situações. Os valores com que a racionalidade trabalha nesses casos se modificam frequentemente, em cada indivíduo e em cada cultura. Não é possível que alguém construa uma ética sistemática que possa ser rigorosamente aplicada a indivíduos e culturas que contém valores distintos. O fundamento moral da organização do público é o conceito de justiça, que independe de definições específicas de bem e mal e que não pode ser esclarecido por agentes externos a uma dada relação entre sujeitos ou grupos. Não afirmo com isso que o contato entre diferentes culturas ou indivíduos não pode modificar valores. Afirmo que essa modificação de valores não é determinada por qualquer sistema ético e que a tentativa de interferência em valores, individuais ou culturais, costuma provocar desastres. O campo do direito não é campo no qual ocorrem trocas de valores.
Existem algumas decisões especiais que não são imediatas e superficiais e que também não são públicas e objetivas. Decisões que tomamos sobre e para nós mesmos. Tais decisões definem o que nós pensamos de nós mesmos. Esse tipo de ideia depende da rotina e de interesses mundanos, depende da cultura e da política, mas não faz parte das discussões éticas mencionadas anteriormente porque contém elementos a mais e consequências diferentes. O aspecto existencial da ética, o estado da consciência antes e depois de uma decisão é a essência da ética e da moralidade
de qualquer espécie, e justamente por isso é tão facilmente esquecido nos diversos esforços sistemáticos que se voltam demais para fora e pouco para dentro. A noção de verdade como sinônimo de objetividade é adversa à investigação da esfera primordial e mais profunda da ética. Essa noção é justamente apoiada em argumentos que excluem a filosofia do domínio do que se considera conhecimento. É natural que a ciência contemporânea não possa dizer nada sobre a ética, embora a demanda por fundamentos morais para a sociedade permaneça clara.
Uma decisão pode despertar em um sujeito uma incrível riqueza de ideias e emoções, uma riqueza que se perde de vista quando a pergunta que temos em mente é "como fazer com que a moralidade não seja subjetiva?". O projeto dos sistemas morais objetivos, que foram transformados em instituições apesar de suas falhas práticas e conceituais, é encontrar alguma natureza humana, ou pelos menos alguma inevitabilidade da condição humana de tal forma que a moralidade possa ser registrada e ensinada como um conjunto de leis científicas. Condicionar para a liberdade através de imposições benevolentes é o projeto dessa linha de filosofia. Não é por coincidência que muitos estudiosos tenham hoje a impressão de que as alternativas possíveis na ética já foram exploradas e registradas. É claro que o número de formas possíveis de se construir regras para a conduta alheia ignorando a riqueza e a veracidade da subjetividade é relativamente pequeno. Restrições e possibilidades são afinal coisas opostas.
Se considerarmos, porém, a realidade da subjetividade e a parte da comunicação que não é limitada pela escolha de uma ou outra linguagem, compreendemos que existem ainda muitas possibilidades no campo da ética. A separação total, popular atualmente, entre subjetividade e objetividade empobrece a discussão sobre a moral de tal forma que as opções disponíveis são o relativismo moral ou o recurso constante a doutrinas populares entre os acadêmicos. Isso porque o campo da ética, em todas as culturas que se desenvolveram filosoficamente, sempre foi o estudo sobre como um ser humano pode viver a melhor possível e deixar um legado para as gerações posteriores. É simplesmente impossível acessar essa discussão a parir de uma negação do valor da subjetividade, sendo a ética a busca de sua afirmação máxima. É impossível acessar a ética a partir de uma postura absolutamente cética ou relativista, porque nesses casos não há nada para ser discutido, e a direção geral da discussão acadêmica sobre a ética é mais pertinente ao direito e tem suas possibilidades contadas. As normas são sempre uma sombra dos valores
Eu diria que a moral é em essência uma arte, e a ética uma estética do comportamento. Quando tomamos decisões sobre nós mesmos não usamos como base algo que pode ser compreendido em suas partes individualmente. Uma decisão moral pode se basear simultaneamente em normas, emoções, reações imediatas, acidentes, enfim, em uma infinidade de fatores que apenas como um todo têm um significado moral. Isso é muito semelhante à criação artística, que utiliza métodos, ferramentas, conhecimentos, intuições, ideais e sentimentos sem que cada um desses fatores defina particularmente o resultado final. Assim como um artista é capaz de comunicar com suas obras, nós nos comunicamos constantemente a partir de nossas escolhas. Assim como um artista cria a partir de uma visão artística, nós moldamos nossas interações a partir de uma imagem moral que temos de nós mesmos. O ideal de bem é intimamente ligado ao ideal de beleza. Religiões sempre utilizaram a beleza dos templos e dos rituais para evocar um sentimento de divindade e de pureza moral. Líderes políticos sempre utilizaram construções imponentes como demonstração de invencibilidade e de superioridade moral em relação a outras culturas, A força natural que as belas palavras têm sobre a razão se origina precisamente dessa ligação essencial entre beleza e virtude.
A pergunta central da ética não deve ser " como criar valores indiscutíveis?" e muito menos "como moldar nosso comportamento com a ciência?". Esses são projetos derrotados de início pelas fraquezas epistemológicas de nossos métodos usuais de investigação diante da variedade imensa do universo e da subjetividade, além do fato de que a cultura ao longo do tempo impõe grande mutabilidade aos valores. A pergunta central da ética é "como podemos viver uma vida digna?" Se trata de uma pergunta que dispensa a escolha entre uma escola de pensamento e outra oposta. O critério de verdade da ética não está na organização lógica de um sistema de conceitos, e sim na satisfação intelectual que temos e expressamos em nossas escolhas e palavras. A moral apenas se eleva acompanhada pela liberdade, porque depende intrinsecamente da vontade de cada indivíduo. A discussões morais acontecem em torno das diferenças entre as vontades, algo que, apesar do aspecto caótico, tende a fortalecer todas as visões individualmente.
A comunicação na moral é baseada em inspiração ou em repressão. Não sei se uma sociedade onde todos são inspirados simultaneamente é possível, mas sei que uma sociedade onde todos são reprimidos é, pois esta é precisamente a nossa. Quando a sociedade trata a reflexão séria como um exercício de negação da subjetividade e a afirmação da subjetividade como algo anti intelectual, as diferentes posturas morais se tornam rasas, baseadas em raciocínios que afastam a discussão do seu objeto mais importante. A maior parte de nossa população é afastada do pensamento profundo na ética pela forma como nossa educação funciona, baseada em cópia e reprodução em vez de auto descoberta. Isso certamente incluí nossos supostos intelectuais e suas discussões " de alto nível" sobre qual doutrina moral do passado é superior.
Em nossa sociedade a riqueza da subjetividade é escondida e, precisamente por isso, nossas verdades não passam truques e mentiras e nossas virtudes não encontram lugar.
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