Em cada cultura, existem certas palavras que provocam reações imediatamente boas ou ruins. Esses termos, geralmente expressos na forma de adjetivos, fazem com que indivíduos adotem ou recusem posições independentemente de argumentos. Alguns exemplos atuais são: democrático, inovador, crítico, científico, plural, positivista, reacionário, radical, racista e sexista. Existem muitos e muitos outros termos dessa espécie sendo usados amplamente, e uma grande parte daqueles que se envolvem em debates usam esses adjetivos mais frequentemente que argumentos ou que referências a fatos.
Em geral isso é um problema sério. As reações emocionais que esses termos provocam atrapalham o raciocínio. Termos como "democrático" e "crítico" são usados frequentemente sem nenhuma definição ou significado claro. As reações a esses termos são frequentemente manipuladas de maneira maliciosa ou irresponsável, fazendo com que o foco nos argumentos se perca. Mesmo nos casos em que um indivíduo não tem suas posses ou sua reputação dependentes de uma determinada tese, a tendência é que esse indivíduo tente "ganhar" o debate, mesmo quando se trata de uma discussão com implicações importantes.
O termo "crítico" é particularmente um bom exemplo. "Criticar" quer dizer algo como "fazer distinções", ou seja, analisar um raciocínio, uma obra, um indivíduo, etc. Mas em geral nos debates atuais o termo crítico é utilizado de maneira vazia, como um meme entre pretensos intelectuais. Nessas discussões a palavra acaba se tornando pela prática um sinônimo de insultar ou depreciar, refletindo a baixeza e a falta de conteúdo próprio. Ao mesmo tempo, termos como pensamento crítico e senso crítico são usados como positivos, adornando posturas irresponsáveis como a de se criticar um indivíduo ou mesmo um grupo em vez de se criticar suas obras. Ninguém deveria tomar tão rapidamente a liberdade de criticar um sujeito como se sua totalidade fosse tão fácil de conhecer. Além disso, não acredito como muitos que nos falte pensamento crítico, e sim pensamento propositivo, criativo ou afirmativo. Atualmente, reclamações sobram em comparação com boas atitudes e bons trabalhos.
Mas a questão da valoração das palavras não é tão simples. Se por um lado palavras como "inovação" são usadas para defender práticas dúbias, por outro palavras como "racista" e "sexista" combatem práticas dúbias. O fato do racismo ser considerado intrinsecamente negativo é uma grande vitória política, que significa que qualquer um que propor o regresso à escravidão ou qualquer coisa do tipo será alvo de escárnio público imediato. Mesmo no caso mencionado do termo "crítico", é algo positivo que a crítica não seja reconhecida em si como algo a ser punido, ou seja, a valoração positiva impede que a valoração negativa ocorra. É claro que isso não impede que críticas pertinentes sejam suprimidas de várias formas, mas é ao menos um avanço entre os diversos que ainda não realizamos. Além disso, existe um caso que é, talvez, pior que a valoração positiva ou negativa de um termo. Quando um termo é trivializado, como acontece hoje com a palavra "filosofia" que não tem mais significado, temos uma grande perda. Nesses casos, o termo desaparece dos debates e por consequência das memórias, ou é usado muito facilmente de maneira inadequada sem que isso seja aparente. Se um termo tem um significado trivial, ele pode caber em qualquer forma lógica, ou seja, ele pode ser usado em argumentos aparentemente coerentes, o que torna certas falácias mais difíceis de detectar ou desconstruir.
A forma como as palavras são colocadas em em evidência ou em descaso reflete os desenvolvimentos da política e, portanto, do poder. Sendo o poder, no seu sentido natural, algo com o qual inevitavelmente temos que lidar, acredito que as valorações das palavras sejam também algo inevitável. Entretanto, isso não significa que estamos entregues à correnteza de acusações, falácias e confusão em geral. Se o poder é inevitável, podemos ao menos conhecê-lo, e o mesmo vale para a valoração das palavras. Nós podemos manter a consciência de que certas palavras são permeadas pelo jogo político e que não tem o mesmo uso, epistemologicamente falando, que as demais. Por exemplo, quando apontamos que a opinião de alguém é racista, sexista, conservadora ou radical, não estamos fazendo a descrição de um fenômeno ou expressando alguma implicação lógica da opinião expressada, a não ser que ela seja declaradamente inclusa nessas categorias. Quando fazemos esses julgamentos, fazemos uma ação política, de trazer o jogo de poder em torno de certas palavras para a direção que acreditamos ser melhor, ou apenas conveniente.
É principalmente por esse motivo que, em nossa época na qual todos precisam fingir a democracia, ocorrem tantas brigas em torno da definição de palavras. Acadêmicos dogmáticos quanto à autoridade e relativistas quanto ao conhecimento (a maioria) não reprimem o ato de criticar explicitamente, mas manipulam a definição de crítica para algo que inevitavelmente os apoia. Políticos não falam em público contra a democracia, mas nos fazem acreditar que democracia é sinônimo de liberalismo, de marxismo, etc.
Por isso muito me preocupa que a filosofia esteja trivializada no Brasil.
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